02 maio 2006

Regressa o linchamento com pneu queimado em Maputo


O recorte aqui apresentado, extraído do “Notícias” de hoje, mostra o regresso do linchamento sumário de um suposto criminoso, queimado ontem em Maputo com um pneu à volta do pescoço, à moda sul-africana.
A propósito disso, vou mostrar-vos uma passagem de um livro meu, já referido várias vezes neste diário, o “Combates pela mentalidade sociológica”. Para facilitar a leitura, foram retiradas as numerosas notas de rodapé.

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Em Maputo a criminalidade tornou-se insuportável no iní­cio da década de 90. Desprotegidas, escreveu um jornalista, as pessoas tomaram a justiça em mãos: ninja ou suspeito de o ser era imedia­tamente morto. A «cremação» (sic) tornou-se espectáculo de massa e acto de solidariedade entre velhos, jovens e crianças.
Fazendo apelo à técnica, tida como importada da África do Sul, do pneu incendiado à volta do pescoço, multidões de Maputo e cercanias linchavam supostos meliantes sob o slogan popularizado de BP em cima.
Mas os alvos dos linchadores não eram apenas, nem principal­mente, os supostos meliantes. Simples suspeitos também não escapavam.
Entre grosso modo 1990 e 1992 vários fenómenos conjugados produ­ziram, em particular na cidade de Maputo, uma cultura de violência catárquica muito activa.
A imprensa refere, por exemplo, a emigração para as cidades de milhares de pessoas fugidas das zonas afectadas pela guerra, o retorno dos trabalhadores da RDA e de estudantes de Cuba, o acordo geral de paz de Outubro de 1992, a desmo­bi­li­zação, etc. nesse período que se registam as «greves da barriga», greves que tinham começado no fim de 1989.
Por outro lado, a inépcia e a conivência da polícia eram apon­tadas como causas decisivas das explosões populares.
Há indicações de que os linchamentos diminuíram, mas não desapa­re­ceram e tornaram-se de alguma maneira constitutivos da cultura maputense de violência urbana.
Mas, na realidade, não há uma relação objectiva e permanente de causa a efeito entre a ineficácia e a suposta conivência da polícia e os linchamentos. Argumentar que fossem quais fos­sem a eficácia e a incorruptibilidade da polícia a violência e os linchamentos não deixa­riam provavelmente de ocorrer, tam­bém não basta. Na verdade, a polícia era e continua a ser menos a causa objectiva dos linchamentos do que um dos bodes expiatórios da crise.
O problema tem de ser visto diferentemente. Defendo ser neces­sário considerar as seguintes cinco condições básicas da violência urbana:
· concentração urbana e desemprego
· inversão dos códigos e dos valores sociais
· diluição dos costumes
· distensão do cesarismo político
· individualização e contestação sociais
Quanto se tornou possível o questionamento público urbano do «poder», em especial após o 5ºCongresso da FRELIMO, as contra­dições decorrentes da concentração urbana, do desem­prego e da diluição da força reguladora dos costumes, conju­gadas com o processo da individualização e da contes­tação sociais, encon­tra­ram, então, a sua saída lógica e genera­lizada, moduladas e filtradas pela inversão referida. A anomia pôde manifestar-se mais lvremente.
O «modelo» anómico tinha e continua a ter a seguinte sequência:
· Indiferenciação social generalizada (imoral=moral, deso­nes­tidade= honestidade)
· Crimes «indiferenciadores» (o crime dilui e nivela todos os parâmetros e valores sociais, todas as vítimas, todas as idades)
· Busca de culpados e de sinais vitimárias
· Catarse e expressão plena de violência
Portanto, o linchamento urbano em Maputo só marginalmente era e é um protesto contra a ineficiência e a suposta coni­vên­cia da polícia. Ele era e continua a ser, embora agora atenua­do, uma forma plural de catarse, de purificação social.
Na verdade, o linchamento urbano parece representar um mecanismo de expurgação da poluição social acumulada.
O anti-ninjismo (seja o ninja real ou suposto) apresenta a seguinte estrutura:
· As fronteiras do crime que o sacrifício do ninja é suposto redimir estão muito para além daquelas que formalmente lhe são imputadas
· Como produto sinérgico, o ninja paga por todos os males sociais. Portanto, ele é, verdadeiramente, o bode expiatório
· Eliminando-o, as pessoas crêem eliminar a pluralidade de males sociais
Quando se acompanham os relatos da imprensa, é geralmente impos­sível apurar se o linchado era ou não um meliante. Na verdade, a minha hipótese é a de que o esquema mental fede­rador do lincha­mento era (e continua provavelmente a ser), regra geral, o conjunto difuso e instintual de sinais vitimários que sugerem a afinidade potencial da vítima com a crise: porte, roupa, dubiedade, furtividade, etc. importante não é, em última análise, a natureza criminal do meliante mas o paren­tesco súbito e irremediável dos portadores de sinais vitimários com a crise plural sentida como insuportável.
Finalmente, a festa linchatória que tanto choca os observa­do­res, tem, conjecturo, menos a ver com a evacuação dos senti­mentos e dos valores morais do que, justamente, com a crença de se ter podido eliminar a causa da anomia.

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