10 maio 2006

Investigadores e interpelados: o jogo dos espelhos, das cegueiras e dos pontos de vista

Tentar saber o que sentem e pensam as pessoas é sempre um grande problema.
Tudo começa com dois fenómenos: a suposta inocência epistemológica do investigador e a ilusão de transparência do entrevistado.
De facto, quando o investigador elabora um plano de entrevista ou um questionário, ele objectiva o alvo do seu trabalho, ele veste-o ou cria-o com uma bateria de questões que são as suas próprias questões, questões que vão determinar o padrão de resposta do alvo e encaminhá-lo para contextos que, regra geral, não são os do entrevistado ou inquirido. Muito raramente o investigador (seja o erudito dos departamentos e dos institutos de pesquisa, seja o funcionário dos questionários das grandes agências mundiais) põe em causa as suas pré-construções, os seus enlatados epistemológicos, os seus pressupostos, os seus a priori.
Frequentemente, nas sessões de construção colectiva da arquitectura da pesquisa, os investigadores ficam sintonizados no mesmo diapasão, o diapasão dos demiurgos, daqueles que julgam saber sem saber, daqueles que têm a amnésia das suas determinações sociais e epocais. Por outras palavras, frequentemente o verdadeiro mais nada é do que uma saudação que endereçamos às nossas asserções, como diria Richard Rorty.
Em segundo lugar, se os investigadores partem para os alvos convencidos da naturalidade e da inocência das questões que construíram, os alvos recebem as perguntas ou as questões no interior de possíveis padrões de resposta com três níveis: o nível do discurso corrente, o nível do discurso de pré-construção e o nível do discurso de defesa.
No discurso corrente nós entramos no jogo das respostas com uma grande facilidade (as frases curtas, as interjeições, as perguntas, as surpresas, o lufa-lufa). No discurso de pré-construção, nós articulamos as respostas em função dos nossos contextos sociais, elaboramos construções do social com alguma precisão avaliativa, teórica e conceitual (“o Estado não nos ajuda”, a “Câmara Municipal não limpa o lixo porque não se preocupa connosco”). Finalmente, no discurso de defesa, consciente ou inconsciente, nós vedamos as respostas que desejamos dar em função do cálculo estratégico, eminentemente político, dos riscos, dos possíveis ganhos, etc. (“sabe, isso eu não sei” ou “acho que há pessoas mais capazes de falar sobre isso” ou “se o senhor der alguma coisa...enfim..sabe como está a vida....”).
Claro que esses três níveis não aparecem separados, eles estão profundamente irmanados e tudo dependerá da capacidade dos investigadores em perceberem qual deles ou quantos deles estão em jogo no momento da confrontação pergunta/resposta, qual a sua densidade, o seu coeficiente de visibilidade e consistência, etc.
Por outro lado, temos ainda de ter em conta as variadas perdas de sentido quando utilizamos os tradutores. E, aqui, temos mais um enorme capítulo de problemas de todo o tipo. Isto significa que podemos ficar na posse de um trabalho com inúmeras janelas abertas e portas fechadas ao mesmo tempo
Quando as coisas terminaram e na mesa dos investigadores se encontram montes de entrevistas transcritas e montes de questionários preenchidos, pode acontecer e acontece que eles, os investigadores, se esqueçam, nas suas laboriosas sessões de interpelação do encontrado, de que, frequentemente, se limitaram a construir pontos de vista (os seus) que mais não são do que pontos de vista sobre outros pontos de vista (os dos inquiridos).
Finalmente, acabada a escrita, pronto o livro, o público ledor provavelmente o aceitará sem conhecer o que esteve à retaguarda do que leu ou vai ler. Terá o produto como algo acabado, algo que contém tudo o que é suposto ser a verdade. Não são os cientistas deuses profanos?

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