Os investigadores e os políticos partem sempre de uma posição muito cómoda e incontornável: a de que os observados não sabem.
E como não sabem, é necessário ensinar-lhes o que não sabem. Somos, para todos os efeitos, os olhos de Deus.
Os observados, os interpelados, os outros, precisam a todo o momento de doses de conhecimento, do nosso conhecimento exemplar.
E quando, por exemplo, nas chamadas campanha de educação cívica, nos pomos a ensinar o que decidimos que os outros não sabem, sempre nos esquecemos de nos fazer algumas perguntas básicas, a saber:
- O que está em causa para se saber?
- O que nós, investigadores e políticos, sabemos?
- Por que razão achamos que sabemos?
- O que sabemos que os interpelados sabem?
- Por que sabemos que os interpelados não sabem?
- Em que contexto nós sabemos e os outros não sabem?
- Em que medida os outros sabem que não sabemos?
- Por que meios os dois não-saberes não vistos pelo nosso único suposto saber se cruzam, colidem ou se ignoram?
- De que maneira diferentes olhos de Deus fazem o não-saber do saber e o saber do não-saber?
E por aí fora.
Por exemplo: queremos explicar que o HIV/Sida é uma coisa muito perigosa num contexto que não é o nosso. Primeiro fazemos uma reunião de preparação no Hotel Polana, por exemplo na sala Bazaruto, depois partimos para o “terreno” num four by four, depois explicamos aos que não sabem que a doença é mesmo perigosa e que importa tomar medidas, depois regressamos a casa, fazemos o balanço e escrevemos um belo relatório sobre o que ensinámos, sobre os problemas que encontrámos, com mais uma sessão de gala no Hotel Polana, etc.
Enquanto isso, a vida continua e as crianças transformam os preservativos (por exemplo) em bolas de futebol.
Nós, olhos de Deus, acreditamos que podemos mudar as pessoas sem mudar os contextos nas quais elas vivem. E assim dormimos tranquilos no conforto da cidade do cimento.
Somos, afinal, como aquele herói de Charles Chaplin que, apanhado por uma tempestade de neve quando dormia na sua cabana, vê esta de repente na borda de um precipício. Ao acordar, ele quer sair. Mas se avança para o lado do precipício, a cabana tomba; se recua e pretende sair, a tempestade aguarda-o. O herói de Chaplin não pode nem habitar a cabana nem deixá-la.
É assim connosco, os olhos de Deus: não podemos nem viver com a ignorância dos outros (desconhecendo ou não querendo conhecer a nossa própria ignorância), nem deixar de a tentar eliminar.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
3 comentários:
A respeito das armadilhas de ordem cultural que cercam as acções humanitarias dos actores do Estado moderno (politicos e cientistas)nas comunidades rurais perifericas, Dom Adams usa uma fabula oriental, que nos dá pistas da razão do fracasso de muitas politicas humanitárias, desencadeando consequencias imprevistas na mudanca cultural planejada, devido ao desprezo das racionalidades autoctenes:
"Certa vez um macaco e um peixe foram colhidos por uma grande enchente. o macaco, agil e experimentado, teve a boa sorte de trepar a uma arvore e salvr-se. Olhando la abaixo as águas turbulentas, viu o peixe debatendo-se contra a corrente rapida. movido por um desejo humanitario de ajudar o seu companheiro menos afortunado, estendeu a mão e tirou o peixe da água. Com surpresa para o macaco, o peixe nao ficou muito agradecido do auxilio"
Conclusão:As accões humanitárias profundamente impregnadas da racionalidade ocidental (que se autorepresenta-etnocentricamente-como superior) na construcão dos problemas e na proposta de soluções nao lograra atingir os seus objectivos se nao dialogar com o "ponto de vista nativo". Assim, academicos e politicos se acomodarão na freseologia simplista de que as comunidades rurais periféricas são "pré-logicas", dando novo alento às construções teóricas de levy-bruhl que admitem que a humanidade pode ser dividida entre aqueles que possuem o pensamento lógico e os que estão na fase pré-lógica. Nao compreenderão certamente os ilustres modernos que esta aparente "irracionalidade", a luz do princípio carteziano de causa e efeito,reflecte antes e antropologicamente, uma "outra racionalidade" e compreensível quando enquadrando no seu sistema simbólico.
Excelente entrada a tua, Joaquim, muito obrigado, aparece sempre. Abraço sociológico!
A racionalidade dos « Deuses »
A Noçao de racionalidade é polisemica. Assim para Pareto a économia era a ciencia das acçoes logicas enquanto que a sociologia era a ciencia das acçoes que ele qualificava de “nao logicas”. Enquanto que para Weber, a sociologia, é por defeniçao mais apta a destinguir factos racionais que irracionais. Weber estabelece uma racionalisaçao crescente das relaçoes socias sem no entanto ser evolucionista. Weber, foi uma referencia importante a analyse de fenomenos burucraticos de Michel Crozier. Entre estes 2 autores existe uma convergencia de ideias em relaçoa à racionalidade. E é com base nessa ideia que eu afirmo que todos os actores têm comportamentos racionais em relaçao as opurtunidades dadas.
Assim sendo, pergunto, em que condiçoes e a que preço a acçao dos “deuses” é racional?
A minha analise concentra-se-à sobretudo na acçao dos actores de intervençao externa.
Vou mais uma vez dar o exemplo de Sao Tomé e Principe (STP), país onde o povoamento e a gestao do territorio se fez a partir de plantaçoes agricolas, as reformas agrarias sucederam-se ao ritmo das mudanças politicas.
Por conseguinte, a adopçao de novas politicas agrarias, no quadro de politicas neo-liberais soldou-se num novo processo de territorializaçao. Entenda-se por territorialisaçao a dinamica de estruturaçao do espaço. Mas em STP, este processo alterou apenas a organizaçao do espaço rural. Assim, na sequencia da ultima reforma agraria (1991) as empresas estatais agricolas (EEA) foram dividadidas em pequenos lotes de terreno (entre 2,5 e 9 ha) e distribuidas pelos antigos trabalhadores das EEA e aos desempregados da funçao publica. Criando-se assim “comunidades rurais” por decreto. Em suma, houve uma desconcentraçao sem haver uma descentralizaçao. No entanto antes de se proceder a este processo, recorreu-se a um consultante international ( codjuvado por um acessor nacional) que percorreu as ilhas de lés a lés, dando no fim o seu aval positivo. Seu relatorio tornou-se um “livro sagrado” – imprescindivel empreender uma acçao sem ter em conta as referencias do “sacrossanto” rapport.
Entretanto cerca de 10 anos depois O MESMO CONSULTOR é convidado para fazer o balanço da reforma. Chegando à conclusao que o insucesso da reforma deveu-se ao facto de ter havido uma desconcentraçao sem haver uma descentralizaçao!!!! E escreve um outro relatorio onde dà todas dicas (como diriam os brasileiros) para se proceder a uma descentralizaçao, promovendo os governos locais, enquanto orgaos de suporte das “communidades rurais” para o desenvolvimento local.
Com este exemplo pretendo mostrar que a intervençao de actores externos em espaços locais nao se resume ao binomio racional/irracional; logico/nao logico; actores d’intervençoa externa/actores locais.
estou em querer que nao houve deprezo pelas populaçoes autoquenes (a que eu prefiro chamar actores locais) mas que o consultor agiu em funçao das opurtunidades que lhe foram dadas. Ele “dialogou” com os actores locais. No entanto as decisoes em termos de desconcentraçao/descentralisaçao, devem obdecer a uma decisao tecnocrata e nao a um método participativo, i.é associar de maneira formal e legitima os actores locais nesta tomada de decisao.
Considerando que tanto o consultante, como o assessor nacional sao actores d’intervençao externa, o problema poe-se sobretudo na concertaçao da acçao entre destes dois actores, e nao na confrontaçao entre comunidades rurais periféricas "pré-logicas" e aqueles que possuem o pensamento logico. Noutros termos o problema esta na complementaridade entre uma logica opurtunista e uma logica absentista no seio dos actores de intervençoa externa.
Parece-me que as accões de projetos humanitárias ou as acçoes de projetos de desenvolvimento, enqanto agentes de intervençao externa num espaço local, enquanto vectores de mudanças, para passar de um estado julgado desfavoravel para as populaçoes cibles, a um estado suposto designar melhores condiçoes de vida dessas mm populaçoes, nao se resume à ignorancia da racionalidade destas ultimas mas sim às dinamicas de disfuncionamento no seio dos actores de intervençoa externa. O problema esta na estratégia da acçoa no seio do actores de intervençao externa e na representaçao que se fazem deles mesmos. Representaçoes em tornos das motivaçoes pessoais e e de estratégias de poder coercivo.
Parece-me necessario que antes mesmo de dialogarem o “ponto de vista nativo” (como diz J. Fumo) os actores de intervençao externa deveriam dialogar entre eles, antes de emprenderem qualquer acçao pois a meu ver é ai que reside a “fragilidade” da racionalidade dos “Deuses”.
Assim sendo, a acçao dos “deuses” é racional no seio da construçao do seu proprio campo de acçao, reprimido pelo seu systema de organizaçao;
Iolanda Aguiar
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