02 março 2008

Linchamentos, eclipse do social e bodes expiatórios (9) (fim)

“O linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de questionamento da desordem. Ao mesmo tempo, é questionamento do poder e das instituições que, justamente em nome da impessoalidade da lei, deveriam assegurar a manutenção dos valores e dos códigos” (sociólogo brasileiro José de Souza Martins)
E assim cheguei ao fim sem a ele ter ainda chegado, pois estou no princípio do estudo, como sempre estou em tudo na vida. Desejo que este pequeno trabalho possa contribuir para reflectirmos profundamente sobre um fenómeno que é mais do que súbito e único: é cíclico e habita as entranhas das preocupações populares.
Como repararam, furtei-me completamente ao coro das vozes que no país apenas pedem o fim da violência sem a estudarem e, portanto, sem a compreenderem. E estou certo de que há gente que nem precisa de compreender o que quer que seja, salvo a linguagem do bastão, da repressão ou da opinião disfarçada de ciência.
Por outro lado, eu não estive nem estou a dar razão aos linchadores. Condeno veementemente todo o acto linchatório, todo o atentado à lei e à ordem pública, tudo aquilo que retira ao ser humano a sua dignidade, o seu direito à vida e à defesa.
Mas como sociólogo, competia-me e compete-me perceber a lógica que organiza o perfil do comportamento linchatório, mesmo que os resultados do estudo firam a minha moral de cidadão. E fazendo-o, estou certo de que nem todos me darão razão. O que é compreensível e salutar.
Aqui, nesta série, nesta construção teórica, o produto final foi uma sociedade cujas lógicas de funcionamento poderão não corresponder às lógicas quer da consciência imediata dos actores sociais em geral, quer da consciência interessada dos produtores oficiais de opinião. Por isso nem sempre a construção sociológica agrada às lógicas de uns e de outros.
Nota: foto cuja história pode ser lida ou recordada aqui.

12 comentários:

Anónimo disse...

Bela narrativa professor, mas como esta no comeco quital pensarmos a forma como estas pessoass desses bairros pensam as pessoas de outros bairros, sobretudo aquelas dos mercedes e que nao sao assaltados porque tem alfas e PRM em suas portas desde a casa aos carros, conseguidos com impostos que eles tambem pagam, sobretudo depois do 22 de Marco quando sentiram na pele as implicacoes das indecisoes na sua pele, com efeitos que seguem ainda hoje? Porque acho que essas pessoas visualizam-se tambem na relacao com pessoa de outros bairros, nos quais muitas trabalham na maioria das vezes e das quais dependem de forma directa.

Carlos Serra disse...

Sim, uma parte das percepções que sugere encontram-se nas respostas a um questionário, respostas que estão a ser trabalhadas por um dos colegas da minha equipa.

chapa100 disse...

professor! parece curioso que a construcao do "outro" nao e um previlegio do "discurso" oficial aqui denominada de mao "externa" ou invisivel. nota-se com base na exposicao do professor, que a crenca popular tambem assenta neste exercicio de bodes expiatorios. interessante ainda este "outro" ou a sua "mao invisivel" deve se revestir de uma forca extrema, contaminadora que possa justificar tambem a maneira como nos armamos e o investimento que fazemos as nossa forcas de reacao e defesa contra esse "mal" social. vejo um conflito social entre a ordem esperada/pretendida e a ordem adquirida.
mas como diz o professor o desafio esta em compreender a logica deste fenomeno linchatorio, mas acho dificil estudar a logica deste fenomeno partindo dos elementos de uma sociedade perfeita.

acho o comentario do anonimo bastante interessante, em minha opiniao a co-existencia no nosso pais destes dois mundos (os que nao tem e os que tem) ainda nao resultou num confronto directo, isto por varias razoes 1) ainda nao temos no pais uma elite politica e rica que se tenha desligado completamento da sua biografia rural ou suburbana, 2) ainda nao encontramos elementos que permitem identificar que a vivencia no suburbio faz das pessoas inferiores em termos de status social em relacao aos que vivem na cidade de "cimento", 3)os niveis de investimento que os chamados ricos e previlegiados fazem em sistemas e mecanismos de seguranca mostra que o factor criminalidade influencia a vida de de todos sem distincao de statuas ou endereco postal, e 4) existe o factor urbanizacao bastante importante: porque os fenomenos como linchamento, "gradeacao" das casas, contratacao de curandeiros, proliferacao de guardas, etc promove sentimentos de solidariedade comunitaria, onde os simbolos de violencia e da sua ameaca sao usados para impor a "purificacao" comunitaria, glorificar as conquistas da relacao de vizinhanca e como elemento que legitima a cultura do silencio pos-linchamento?

o facto de alguns viverem dos nossos importos nao implica que eles estao imunes a problemas sociais como o crime e outros fenomenos de convulsao social como a manifestacao da grande terca mostrou. interessa saber se eles vao investir mais na gradecao dos seus condiminios ou na sociedade.

chapa100 disse...

professor! desculpa a corrida na escrita, entre atropelos e "come palavras", escrecver p os blogues via mobil e uma tortura, entre um alfabeto checo, ingles e frances, o portugues sempre sai a perder, como dizem os poetas o portugues e uma lingua romantica e nao p pressas. uma vez mas as minhas desulpas, assim como gradeacao arrepia entenda-se gradeamento pela harmonia.porque nao afinal e domingo

Carlos Serra disse...

Obrigado pelo comentário. E não se preocupe com a escrita.

Ivone Soares disse...

O "seriado" que nos trouxe com o título: Linchamentos, eclipse do social e bodes expiatórios foi citado no Meu Ser Original e noutros seres que preocupados com os Linchamentos, espero que não se importe.

chapa100 disse...

professor! o tribunal supremo fez um comunicado condenando o linchamento e fazendo apelos a ordem. se a policia, o governador, os bispos, o ministro, e ate o tribunal supremo entao estamos mal. agora so falta assembleia da republica fazer um comunicado. custa dizer isto mas o cidadao esta entregue a bicharada. nao ha responsabilizacao neste pais.

http://allafrica.com/stories/200803020012.html

Carlos Serra disse...

Li o comunicado do Supremo hoje no "Domingo".

Anónimo disse...

Caro chapa 100, se prestar atencao a medida que sobre da zona da portagem ao centro da cidade vai evoluindo de casas de canico com portas de pano, papel ou de madeira, chega a zona de cimento para la da junta comecam as grades. Na zona da Julyus Nyerere as grades desaparecem para dar lugar a agentes PRM e ou empresas privadas de seguranca, dos quais pedacos consideraveis sao pagos via impostos. Sim todo mundo esta exposto a ser assaltado, mas convenhamos quanto mais periferico maior e o risco de ser vitima de assaltos. Tente mapear mentalmente as zonas mais quentes de assalto.

Carlos Serra disse...

Sucedem-se as condenações oficiais, com as quais estou, como cidadão, inteiramente de acordo. com as quais estamos todos, creio, de acordo, mesmo os linchadores. O problema, porém, consiste em saber como é que o problema vai ser resolvido, consiste em saber qual o conjunto causal à sua retaguarda e de que maneira esse conjunto causal pode ser avaliado e desactivado.

chapa100 disse...

caro anonimo! tenho observado a "geografia" da pobreza e as manifestacoes de riqueza, nao e possivel no nosso pais fugir a isso. o meu comentario nao pretende omitir essa realidade, o que pretendo comentar tem a haver com a duvida que tenho: ate que ponto a geografia dos espacos urbanos pressupoe "imunidade" em relacao ao crime. e gente com responsabilidade politica, moral, civica, e governativa investe num ideal de um povo pacifico e nao violento, e ao mesmo vive enjaulado em quarteiroes protegidos por aparato publico e privado de seguranca, porque? voltamos ao caso da ordem esperada versus ordem adquirida.

o teu ponto sobre a vulnerabilidade do cidadao em relacao ao crime estar ligado a precaridade das suas condicoes de vida e "supostamente valida" mas nao nos da um conhecimento apropriado sobre a escala do crime, suas vitimas, seus perpetores,seu objecto, etc. casos desses sobre a ligacao do crime com a pobreza ou certas categoriais sociais, quando mal estudados podem ser perigosos, o que alguns chamam do fenomeno labeling. varias perguntas, sobre as caracteristicas sociais, economicas, etc que um quarteirao/bairro deve ter para que este fenomeno de linchamento ocorra, a narracao do professor da-nos algumas interessantes reflexoes.

professor, parece que todos nos condenamos o linchamento. continuo achando que o ponto da responsabilidade esta ausente, neste e varios outros comunicados.

Anónimo disse...

De acordo chapa 100.