(Extracto do meu livro com o título Combates pela mentalidade sociológica. Maputo: Imprensa Universitária, 2003, 2ª edição)
Cada um de nós é o exercício diário do que vou chamar duplo constrangimento. Por um lado somos o produto de hábitos, quer dizer, de normas de comportamento (aí incluídos os prejuízos[1]) interiorizadas e sedimentadas nos processos de socialização por que passamos ao longo da vida (família, escola, grupos de pertença, de referência, etc.[2]); por outro, somos a desconstrução (ou a sua pretensão) das diferentes sedimentações, somos ou tentamos ser a inovação, somos ou tentamos ser o desvio, a marginalidade. As sedimentações dos hábitos são a nossa carta de referência, o nosso refúgio, a nossa protecção psicológica; pelo contrário, a desconstrução é a novidade, é o jogo, é a apetência, o reajuste, o romper das fronteiras. Estudai-vos e estudai os outros com atenção: encontrareis essa permanente tensão. É nessa tensão e com a consciência dela que, se quisermos fazer da investigação social uma constante da nossa vida, devemos procurar romper com tudo aquilo que tolhe o que uns chamam verdade e eu, aproximação ao real.
O que se segue tem a estrutura de um semáforo: sugere-vos que pareis ou passeis em determinados momentos da vossa actividade como investigadores. Tem, também, o espírito da predicação. A vós a escolha.
Evitai:
1. Confundir evidência com ciência. Se vos dizem, por exemplo, que muitos camponeses vêm para a cidade porque são atraídos por ela ou se encontrais escrito que os Moçambicanos são «fundamentalmente tradicionais» (elegante forma de os retirar da história), duvidai e investigai.
2. Confundir imaginação com investigação. Se vos dizem que os homens batem nas mulheres porque são «maus» ou que as mulheres são levianas porque lhes está «no sangue» sê-lo, duvidai e investigai. Se vos dizem que um ponto de vista é uma investigação, que uma investigação dispensa teoria ou que uma teoria dispensa comprovação, duvidai e investigai.
3. Confundir juízo de valor com juízo de facto. «Ele bebe uma cerveja» é um juízo de facto; «esta cerveja é boa» é um juízo de valor. Se encontrarem uma «análise científica» que faça passar juízos de valor por juízos de facto, duvidai e investigai.
4. Confundir investigação com filosofia. Não compete ao cientista social investigar, por exemplo, qual «a finalidade da vida na cidade de Maputo». Também dará ele um mau exemplo se esquecer que os homens[3] não são os «Os homens» ou «Os Homens em Geral» ou «A natureza Humana», mas que são «reais», que vivem numa dada época histórica, em determinadas condições sociais, em percursos de assimetria social precisos, que trabalham, que lutam, que sofrem ou se alegram e morrem, que precisam de se alimentar, de se alojar, de cuidar da família, de ter tratamento médico, de se sentirem compreendidos e protegidos, etc. Se vos dizem que é de forma diferente que as coisas devem ser, duvidai e investigai.
5. Confundir ciência com prejuízo ou com julgamento estereotipado. Se vos dizem que «os Manhambane são desprezíveis porque é assim mesmo» ou que «esta gente do Norte é atrasada» ou se lêem que «os funcionários do sector X atendem mal o público porque são malcriados», duvidai e investigai.
6. Confundir ciência com axiologia. Compete ao cientista social investigar, por exemplo, qual a relação entre o abandono de fetos nas latas de lixo e as condições sociais em que vivem as mães. Mas não lhe compete transformar essa investigação num receituário de preceitos morais, não lhe compete trabalhar para os «fins», subordinar a investigação aos «fins últimos e nobres». Não se deve fazer uma investigação sobre etnicidade, por exemplo, para saber se ela é «boa», mas para saber o que ela é ou foi. Não é do foro do cientista investigar o que uma coisa deve ser, mas o que ela é ou foi. Aos moralistas o que é dos moralistas, aos cientistas sociais o que é dos cientistas sociais. Se vos tentarem convencer do contrário, duvidai e investigai.
7. Confundir ciência com «magia». Sempre que vemos nas coisas e nos fenómenos essências inamovíveis, processos «naturalizados» e absolutos auto determinados, estamos perante um sistema cognitivo «mágico». Perguntas do género «que é isto?», apelam para respostas «mágicas» do género «isto é...», para respostas que «fixam» as coisas, que lhes extraem o movimento, que as dotam de um auto poder inalterável. Também, o actor X não está doente porque um mau espírito actua nele; não há um «espírito do vinho» no vinho. Não vos admireis de que pessoas e coisas mudem, porque se vos admirardes estareis a admitir que as essências existem e não mudam[4]. Se quiserdes ser cientistas sociais, rompei com a veneração para com supostos portadores da essência do «sagrado»
(textos, ditos, dogmas, fenómenos, indivíduos). Deveis partir da hipótese de que tudo está em relação e em movimento, de que tudo é mutável na história que os homens constroem e nas circunstâncias e nos limites que são os deles. Se vos disserem que é não é assim que as coisas devem ser, duvidai e investigai.
8. Confundir compreensão com assimilação. Compreender outrem não é assimilá-lo ao que somos, aos valores de que somos portadores, à nossa identidade. É «metermo-nos» nele, é tentarmos «ser» ele como propuseram Simmel e Weber. E, como escreveu Jean Pouillon, esse outrem também é humano não na, mas apesar da diferença. A diferença não é a máscara de uma semelhança, a sua «ideologia», a sua imagem invertida de «câmara escura». A alteridade não é uma barreira, mas uma relação. Mas pode tornar-se numa barreira se formos «assimilacionistas». Se vos tentarem persuadir do contrário, duvidai e investigai.
9. Confundir ciência com neutralidade cognitiva ou axiológica. Na verdade, nenhum cientista está imune aos «erros», aos juízos de valor, aos prejuízos. Não é possível, perante os fenómenos sociais, ter o mesmo rigor, a mesma frieza, a mesma distanciação que temos ou podemos ter face aos fenómenos naturais. Se estivermos conscientes disso, será mais fácil reduzir o impacto dos nossos capitais prenocionais e dos nossos engajamentos extra cognitivos. Se vos disserem o contrário, duvidai e investigai.
Mas:
10. Não confundais jamais ciência com abdicação social. Se um dia vos for necessário tomar partido face a qualquer coisa que seja criminosa, que ponha em causa o respeito que tendes por vós próprios e o respeito que a humanidade e as diferenças humanas certamente vos merecem, então tomai posição firme. Então não duvidai nem investigai. Sejai !
[1]Julgamentos estereotipados interiorizados. Lembrai-vos, a propósito, dos idola de Bacon e dos comentários de Durkheim.
[2]Um grupo de pertença é o grupo social do actor; um grupo de referência é o grupo social pelo qual o actor pauta ou ajusta o seu comportamento e a sua opinião.
[3]Sei quão perturbadora pode ser esta expressão masculinizada. Mas eu refiro-me aos homens e às mulheres. Assiste a estas, porém, o direito de se perguntarem por que razão se não diz, por exemplo, «os homens e as mulheres» ou por que razão se não diz «as mulheres e os homens». Mas não só nem principalmente, claro, dizer: mas fazer.
[4]Reparai nestes dois exemplos: o actor X era conhecido por beber em excesso. Cada um de nós aprendeu a formar dele um «quadro psicológico» fixo, o de alcoólico. Mas suponhamos que um dia ele deixou de beber: teremos, então, dificuldade em formar um novo quadro dele porque já não é «ele», porque nos tínhamos «definitivamente» convencido de que «ele» era aquele tipo comportamental anterior, aquela «essência» imutável ligada ao álcool. Segundo exemplo: muitas pessoas têm dificuldade em aceitar quer que os quadros da RENAMO acreditam na democracia, quer que a FRELIMO já não seja marxista. Para muitos, a RENAMO é o conjunto «essencial» e imutável dos «bandidos armados» e a FRELIMO, o conjunto «essencial» e imutável dos «marxistas».
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
1 comentário:
seu idealismo é comovente...
a maneira como se expressa expõe a Ciências Sociais como algo complexo e ao mesmo tempo de necessário entendimento para as relações e compreensões humanas...
eu sou apenas um aspirante à sociólogo brasileiro e seu texto me ajudou a perceber o lado mais amplo e teórico da sociologia e não apenas aquilo que no geral é passado para nós estudantes e vestibulando sequiosos em exercer tal profissão.
parabens!
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