05 maio 2006

Poder, saber e história africana

Talvez nunca como em países como os nossos se mostrou exemplar a asserção de Foucault, a saber, que não há relação de poder sem a constituição correlativa de um campo do saber, nem relação de saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, uma relação de poder. O poder-saber[1] é, pois, intrínseco aos campos profissionais dos cientistas sociais africanos.
Os cientistas sociais africanos são livres de fazer a sua própria história, mas muitos deles não a fazem arbitrariamente, nas condições por eles escolhidas, senão nas condições directamente determinadas pelas elites dirigentes dos seus países[2].
Assim se pode compreender o leito de procustes com o qual a maior parte dos cientistas sociais africanos, nomeadamente os historiadores, se encontra confrontada, a saber: encontrar não um passado, mas o passado de acordo, em geral e em particular, com as relações de poder em curso.
Esse passado é produzido a partir de três teses imperativas: a do partido demiurgo, a da harmonia primordial e a da espiritualidade.
Na verdade, ele começa por ter de estar em sintonia com a história do partido reinante ou com o líder reinante. Por isso a história do partido ou do líder tem de ser apresentada como uma estrada triunfal, natural e logicamente percorrida, onde os acidentes são marginalizados ou, não o podendo ser, atribuídos aos inimigos de vária e exterior( quase sempre) lavra. A história complotária é, tal como no passado, constitutiva das histórias dos principados modernos. Esta é a tese do partido demiurgo ou, para dizer as coisas à Achille Mbembe, do partido teólogo.
Esse passado tem de estar, também, de acordo com a universalidade de propósitos que as elites dominantes se atribuem na prossecução dos seus interesses particulares, nomeadamente os neo-patrimoniais[3]. A história de um passado onde interesses de dominantes e dominados confluam em harmonia e no bom-senso dos «parceiros sociais»[4] faz, assim, a sua aparição. Esta é a tese da harmonia primordial.
Em terceiro lugar, a história africana tem de ser apresentada nas suas especificidades culturais, irredutíveis à camisa de força colonial. É aqui que a etnofilosofia[5] surge como um prestes-a-vestir paradoxalmente bem hegeliano: os Africanos seriam portadores de uma espiritualidade harmoniosa[6], ao contrário da materialidade azafamada dos Europeus[7]. Esta é a tese da espiritualidade.
Assim, o passado é triplamente manipulado e romanticizado. Por um lado, temos um partido que é suposto atravessar sempre vitorioso os problemas agrestes do real; por outro, temos um passado pré-nacional onde a harmonia é suposta reinar; finalmente, temos uma africanidade permeada desde sempre, ao que se diz, pela espiritualidade. Perante este trifronte cenário idílico, apenas os inimigos, sejam os do exterior (imperialismo, forças externas), sejam as suas quinta-colunas internas, são responsáveis pelos males que aparecem.
A história africana aparece assim, numa rigorosa ontologia kantiano-cartesiana, como bem dirigida, harmónica e espiritual.
O quadro traçado[8] é esquemático e obriga a fazer duas observações em meu entender importantes: em primeiro lugar, o poder-saber existe em toda a parte e portanto, também, nos grandes centros capitalistas[9]; em segundo, nem todos os intelectuais têm sido ou são «intelectuais orgânicos» dos regimes instalados e das teorias apresentadas mais acima - um cientista social de tomo como Joseph Ki-Zerbo, por exemplo, não me parece que tenha estado alguma vez ao serviço do «poder» ao defender que os empreendimentos históricos africanos têm um «indiscutível ar de família»[10].
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[1]Foucault, Michel, Surveiller et punir, Naissance de la prison. Paris: Éditions Gallimard, 1975, p.32.
[2]Verificam que se trata de adaptar uma célebre fórmula marxiana: «Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições por eles escolhidas, mas nas condições directamente dadas e herdadas do passado.» - Marx, Karl, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. Paris: Éditions Sociales, 1969, p.15.
[3]A propósito do neo-patrimonialismo, veja Jean-François Médard, Patrimonialism, Patrimonialization, Neo-Patrimonialism and the Study of the Post-Colonial State in Subsaharian Africa, Seminar on Max Weber, Politics and Administration in the Third World (December 11th-12th 1995), Center for Development and Environment, University of Oslo.
[4]Certamente não fica mal fazer uso retrospectivo deste termo da modernidade, muito em uso no nosso País (mas não só).
[5]Veja considerações em Owomoyela, Oyekan, Africa and the imperative of philosophy: A skeptical consideration, The African Studies Review(30),no 1, March 1997, pp.79-99.
[6]Veja, por exemplo, as posições de Boia Efraime Júnior, psicólogo da AMOSAPU, in TEMPO, 26 de Janeiro de 1997, p.12.
[7]Para uma veemente apologia da «primitividade» e da «a-historicidade» africanas em oposição à defendida obra castradora e desumanizante do «homem branco», veja Diawara, Fodé, Manifesto do Homem Primitivo. Lisboa: Editorial Futura, 1973.
[8]Para o qual seria possível citar uma ampla bibliografia.
[9]Aqui, a aparência de modernidade tem a seu favor o facto de que após um passado de numerosas lutas sociais, uma gestão generalizada de bens de consumo diverso e uma narcotização sistemática dos eixos potenciais de fricção social mediante a manipulação de margens amplas de lazer e de protecção social, permitem ao Estado( ainda que crescentemente reduzido da sua providência) uma larga margem de liberdade criadora sem que esta ponha em causa as relações de poder.
[10]Ki-Zerbo, Joseph, Introdução geral, in Ki-Zerbo, Joseph( coord), História Geral da África, I. Metodologia e pré-história da África. Lisboa: Ática/Unesco, 1982, p.41.

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