Se for correcta a hipótese de que estamos perante uma nova visão do corpo e da sexualidade que armazena, expõe e sugere, então estamos, também, perante a capacidade de recebermos positivamente mensagens de sexualidade densa e imediata, como aquelas que o zicoísmo transporta (e apesar da sua evidente masculinocracia). O consumismo generalizado, os padrões de independência e de liberdade, o cinema em geral, o cd/dvd, a novela brasileira, a internet, a multiplicação de dancings, de parties, de discotecas, etc., tudo é um contexto propício ao zicoísmo. A hipótese: o zicoísmo não é apenas o ofertador de uma mensagem sexual surpreendente; é, igualmente, uma produção do imaginário social da juventude. Melhor: Zico não é somente ele, é também nós; se Zico nos produz, nós produzimo-o também, nós zicoamos a vida. Ora, o capitalismo, nas sua exterma complexidade - de que Zico é apenas um pequeníssimo peão -, é uma colonização permanente do sentidos, uma amputação permanente do cérebro, da capacidade de pensar. O zicoísmo é um produto do mercado, um momento da produção de mercadorias, faceta de uma luta pela hegemonia das mercadorias novas, diferentes, audaciosas, consumidas nem que seja pelo registo do pecado. E, claro, há quem goste desse tipo de produto, consumido pelo aplauso ou pela condenação.
II
A terminar a série, deixem-me enunciar uma hipótese banal e eventualmente certa: não há coisas mais importantes do que outras, há, apenas, coisas com valência diferente. Não, não está bem assim, é necessário ser mais preciso: há coisas importantes para A, B, C, N, consoante a coligação conjuntural de vários factores. A morte de 3000 pessoas num terramoto é, sem dúvida, algo de anormal, de importante, de fora de comum; mas a morte de duas pessoas da família de A ou B no mesmo momento pode ser tão ou mais importante, certamente é bem mais importante.
O combate à pobreza absoluta é, inegavelmente, um fenómeno importante. Mas discutir Zico - o teor das suas canções - é, igualmente, um fenómeno importante para muitos. E, eventualmente, mais importante até.
Portanto, parece-me legítimo defender que o zicoísmo é um fenómeno importante. Tão importante quanto o combate à pobreza absoluta.
Mas não só: temos ainda o dilema do que é justo e do que é verdadeiro. As crenças colectivas normativas ocupam um espaço vital em todos os nossos juízos. Regra geral, mesmo entre os cientistas (e muitas vezes especialmente neles), o que deve ser ultrapassa de longe o que é. Uma posição formalmente objectiva é, frequentemente, uma posição realmente subjectiva. Não são poucas as vezes em que lutamos pelo que achamos ser verdadeiro, mas que é, apenas, o que achamos ser justo. A árvore de todos é, quase sempre, afinal, a árvore de alguns ou de muitos. A verdade verdadeira nem sempre é a verdade social. Toda a verdade social é produto de uma luta pela hegemonia de um protocolo de verdade, de uma verdade normativa, ao nível das crenças.
O zicoísmo é um fenómeno no qual introduzimos, por inteiro - muitos de nós - o apodo do injusto, do imoral, da inverdade social. Não importa o que ele é: importa o que ele não deve ser. A condenação é, claro, imediata e bem mais fácil do que a análise fria (excepcionalmente difícil) do zicoísmo enquanto sistema, enquanto fenómeno a analisar fora dos valores normativos. Ninguém se opõe às canções de amor de Roberto Carlos, por exemplo. O amor aí tem recato, está trajado. No zicoísmo aparece desnudo e anormal, defendem muitos. E, já agora: o corpo, os requebros de Lizha James - a Dama do Bling - também constituíram, há tempos, motivo de ira e de condenação.
Estamos, afinal, confrontados com a diversidade das racionalidades causais e normativas. A crença de que eram mágicos, comandados por feiticeiros, os sete leões que em 2003/2004 comeram 47 pessoas em Muidumbe, lá em Cabo Delgado, é, naturalmente, uma crença falsa no protocolo causal da ciência. Mas é considerada verdadeira por quem dela partilha, é considerada justa, é considerada a única plausível no interior de um outro tipo de racionalidade, de uma outra visão da vida, visão da vida havida por sensata, por exclusiva.
Para uns, o zicoísmo é considerado irracional enquanto defesa, enquanto protocolo de uma sexualidade magoante, exposta em toda a sua nudez, em tudo o que os seres humanos procuram tornar privado, incólume aos olhos dos outros, ignorado, recalcado; para outros, o zicoísmo é produto dos males de uma sociedade em geral, não de Zico em particular; para outros, é o direito de afirmar o que se sente, de ir contra as ideias estabelecidas. Tudo isso nesta nossa sociedade em profunda mutação e irrigada por formas diferentes de ver a vida.
No que me concerne, procurei analisar - certamente de forma canhestra - o zicoísmo enquanto sistema, enquanto diagonal do que propõe e do que recebe como necessidade social. E falar do zicoísmo foi e é falar do corpo (especialmente do corpo feminino), do seu adestramento (social e político), da sexualidade socialmente permitida e reprimida.
Finalmente: ainda que me tenham solicitado amiúde que analise o vídeo considerado pornográfico que circula na net e no qual o cantor surge a manter relações sexuais com uma mulher, não o fiz nem o farei por duas razões: primeiro, porque não foi a causa desta série; segundo, porque parti da hipótese de que pertence a um universo privado do qual terá saído sem a vontade de Zico.
5 comentários:
Obrigado, assim terminei hoje no meu cafe sobre o Zicoismo, que acompanho aqui e post acola no meu blog. Sinto-me esclarecido cientificamente, ou seja, palavras que saem de um sabio.
Acredito eu, que nao ha comentario contra o argumentado acompanhado com as hipotese.
Abracos
Não estou certo de que esteja certo, mas enfim. Abraço.
Concordo consigo Dr. Serra ao se eximir de qualquer comentário relativamente ao vídeo que circula na net que tem como figura de destaque o nosso Ziqo... quero também acreditar que o mesmo terá vindo ao público sem o seu consentimento.
Relativamente ao seu artigo sobre o fenómeno Zicoismo, é importante antes de mais analisarmos a nossa actual Sociedade, é preciso não nos esquecermos que o Ziqo é produto dessa sociedade e tal como ele existem outros "Ziqos" por ai...
Tem razão quanto à necessidade de estudo da nossa sociedade.
Fausto disse
Enfim é o zico falado por todas mentes, é o zico que carrega a culpa por aquilo que fazemos nas escuras quando estamos fora de casa, é o zico que tornou publico ( sem intençao propria )o filme que existe dentro de cada um,
eu vejo o Zico como um inocente, por estar a fazer suas vontades e culpado quem tornou suas vontades PUBLICAS
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