Em 1999 dirigi uma equipa de jovens investigadores, que procurou estudar o racismo e a etnicidade no nosso país.
Entre as várias técnicas que utilizámos, destaca-se um questionário administrado a 523 pessoas, de várias profissões, nas cidades de Lichinga, Beira, Tete, Inhambane e Maputo (excluo aqui os pormenores da construção da amostra, do tipo não-probabilístico).
Uma das frases-estímulo usada foi a seguinte: Os negros são racistas, para a qual esperávamos uma concordância nula e ausência de dúvida e de desconhecimento.
Porém, a percentagem de concordância situou-se nos 22% (especialmente ao nível das mulheres). A discordância foi 59%, a percentagem de dúvida de 11% e a do desconhecimento, de 8%. A concordância foi directamente proporcional à idade e inversamente proporcional à escolaridade. Professores e atletas federados foram os que mais discordaram (68 e 65%, respectivamente). Os camponeses (muito em particular as camponesas das periferias urbanas de Beira e Tete, no Centro do país) foram, curiosamente, os que mais concordaram (37%) e os que menos dúvidas tiveram (3%).
Interrogados sobre as razões da sua tão singular posição, eles (melhor dito: elas) disseram, regra geral, o seguinte: "Quando os negros se apanham lá em cima, deixam de pensar em nós".
Assim, camponeses consideraram racistas os "negros" que eram "negros" como eles.
Essa atitude mostrou que o "estrangeiro" não era apenas aquele que estava fora do grupo racial, mas aquele que estava dentro dele. O "estrangeiro" não tinha, afinal, cor.
Contra a racialização do social por parte dos grandes produtores de opinião de Maputo, opuseram os camponeses a socialização da raça.
Assim, a raça é um fenómeno social e não é a partir dela que chegamos ao racismo. Pelo contrário: chegamos a ela a partir da construção social que a racialização opera mas que a socialização, afinal, desmonta.
Verificámos existir uma clara associação entre percepções sobre racismo e percepções sobre distribuição de riqueza. Para uma larga maioria das pessoas, o racismo não foi concebido como uma natureza em si, mas como um fenómeno que dependia ao mesmo tempo da educação, da classe social e da fracção de riqueza social que recebemos.
Na pesquisa em causa, os "Indianos", por exemplo, foram vistos como racistas não por serem "Indianos", mas especialmente por terem muito dinheiro e/ou por pagarem pouco. "Não pagam bem o negro", como afirmou um vendedor informal na cidade de Maputo. Os atributos que lhes foram dados e que pareciam ser autónomos, tinham a ver, regra geral, com a posse de riqueza.
Os "Mulatos", segundo exemplo, não foram vistos como "Mulatos" em si, mas como estando do lado dos que eram beneficiados pela riqueza social.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
3 comentários:
Muito interessantes as conclusões que apresenta do estudo.
Vêm de encontro a algumas suspeitas empirícas que possuía.
Cumprimentos
É mais uma evidência de que se pensarmos do ponto de vista da democracia, a racial está directamente ligada à democracia social, e, de facto, opõem-se muito mais os desvalidos e os abastados, do que os “negross” e os “indianos”/”mulatos”/“brancos”.
Mas enquanto a democracia social não acontece, a raça tem sido emblemática, isto é, traz consigo uma carga de significação atribuída, cujos atributos variam de sociedade em sociedade (por exemplo, quando o dono da loja resolve chamar o seu trabalhador de “seu preto”, estão aí considerados todos os atributos que ele acha que os “pretos” têm, o que inclui o facto do empregado ser pobre, sem dúvidas). Aos de um grupo cabem-lhes atributos como endinheirados, civilizados, cultos, etc., e aos do outro grupo, o contrário disso. Se o outro grupo for o dos “negros”, na nossa praça, estes podem também ser assim descritos e incluídos na “classe superior”. Nesse caso, a questão que me ocorre é de saber em que medida essa inserção custa um preço adicional aos do outro grupo pelo facto deles serem “negros” e até que ponto é que, a partir disso, podemos pensar na racialização do social.
PS: mais uma vez, obrigado pelas sugestões de autores.
Abraços,
Lembro-me do Julian, ao ver uma four by four dupla cabine só com o motorista na cabine e um rapaz sentado numa das extremidades do bagageiro, ter comentado: “esses brancos são racistas...”. Entretanto, ainda no portão da sua casa, outras duas four by four (parece que são muitos os emergentes com interesses pelos lados do ferroviário e que lá vão aos sábados pela manhã) passaram na mesma situação, só que eram negros na cabine. Na altura, não me ocorreu perguntar se não seriam também os negros racistas, porque estávamos mais atentos e a comentar sobre o aumento no fluxo de carros por lá, especialmente nos fins-de-semana. Fiquei agora curioso em saber qual seria a sua resposta; se não ou se sim; sim porque, embora estes fossem negros, teriam já absorvido o jeito branco de levar pessoas (já que foi a partir disso que ele fez o comentário).
Não sei se procede!
Abraços,
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