Quando, durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 1994, um político hábil como Carlos Reis, por exemplo, procedia a generosas distribuições de dinheiro na Zambézia, sua província natal, ele não estava, naturalmente, a tentar resolver as carências dos seus conterrâneos, nada nele tinha a ver com um Robin Hood zambeziano.
Ele estava, na verdade, a ser um protótipo ou, melhor, uma antecipação do Big Man[1], um daqueles, permitam-me a comparação, produtores de potlatch (=alimentar, consumir) da antiga história do noroeste norte-americano. Em dura concorrência com outros candidatos, ele fazia o dom, ele semeava o dinheiro para receber mais tarde a lealdade, o clientelismo político, a retribuição votal, em última análise o «poder», numa relação na qual os destinatários não estavam em condições de retribuir e de entrar, portanto, numa troca recíproca de dons. E tal como observaria Marcel Mauss, «ele não podia provar a sua fortuna senão dispensando-a, distribuindo-a, humilhando os outros, metendo-os «à sombra do seu nome»[2].
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[1]Faço aqui uso de um termo que Sahlins consagrou e que Médard retomou. Veja Médard, Jean-François, Le «Big Man» en Afrique: Esquisse d'analyse du politicien entrepeneur, Année Sociologique (42), 1992, pp.167-192.
[2]Mauss, Marcel, Sociologie et anthropologie. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 1993, 4e éd, p. 206.
4 comentários:
Caro prof.,
Até sou bem partidário do paradigma de Médard na análise das relações de poder em africa, mas depois da sua crítica ao essencialismo de Templs, de Hegel ou de L. Bruhl, será que os africanos são (neo)patrimonialista e pronto! Recentemente, em são Tomé e Príncipe, o procedimento dos candidatos às eleições seguiram o exemplo do C. Reis. E o Potlach é apenas materializável atravês de bens ou podemos encontrar formas simbólicas do mesmo procedimento.
cumprimentos
Carlos Bavo
Compra de votos, dizem!
O exemplo mais caricato que conheço de “compra de votos”passou-se na Argentina onde, segundo Annia Tizziani, o candidato de um dos partidos destribui pelos mais carenciados apenas 1 pé de sapato. O outro pé seria remetido à pessoa em questao se o candidato ganha-se.
Em Sao Tomé e Principe (STP) as eleiçoes sucedem-se como os multiplos cursos de agua que a natureza brindou estas Ilhas. Se o dito “sufragio universal” fosse sinonimo de democracia ou de boa governança. Entao os organismos internacionais teriam ganho a sua a aposta e estariamos perante o pais mais “desenvolvido” do mundo ...
Infelizmente o fenomeno de clientelismo é indiscutivel. Entretanto o que se revela mais interessante para mim é a analise da circulaçao de “coisas” entre os agentes sociais. Nomeadamente a relaçao entre o dom e endividamento moral do Estado. Noutros termos o que me interessa sao as estratégias desenvolvidas pela populaçao face a esse “manà” eleitoral. Concretamente, qo que me interessa é analysar por um lado, o lugar do “dom sazonal” (campanhas politicas) na construçao de coesão social nas “comunidades rurais”, e por outro lado, o poder simbolico do “cidadao comum”
Exemplo, nas campanhas eleitorias em STP é corrente existir o “banho” que é nem mais nem menos distribuiçao de bebidas alcoolicas à populaçao. Numa das muitas campanhas ocorridas em STP, uma das “comunidades rurais” nas quais tenho o prazer de trabalhar, o presidente da associaçao negociou o “banho” para obter um gerador electrico. Noutra “comunidade”, o presidente da dita associaçao ao negociar em torno do “banho” obteve, na mesma campanha, o seguinte: um televisor e uma maquina de costura do partido ADI e um gerador do patido MLSTP/PSD.
Evidentemente que com estes exemplos, nao pretendo legitimar o “clientelismo” mas mostrar que o “povo nao é burro” . Pois segundo paradigma do dom e da divida, os partidos politicos ao distribuirem “coisas” têm inteçao de criar um endividamento moral do eleitorado afim de obter votos. Ora, a populaçao apercebeu-se que durante as campanhas pode adquirir bens materiais em prol da “comunidade”. Revertendo-se assim os papeis, passando desta forma o “doador” a “devedor”. Assim, a populaçao cobra aos “banhistas” (doadores) o “absentismo dos politicos” e o isolamento (falta de centros de saude, transportes, assistencia tecnica...) a que sao votadas. Isolamento este, com consequencias graves para desenvolvimento da “agricultura familiar”, por exemplo.
Ha petroleo, gritarão uns!
Sim, mas nao estou a ver os cerca de 150 000 habitantes de STP, numa plataforma da Chevron, atendendo que as Ilhas de STP, sao de origem volcanica, nao vejo a “chevron com cara de volcão!
Retornemos à “vaca fria”, como diria o meu pai, deitando um ultimo olhar para a “compra de votos”, pode-se dizer que o clientelismo nao nasceu certamente com o multipartidarismo. Mas utlisou a logica clientelista como principal vector de mobilisaçao eleitoral. Por isto, o periodo eleitoral é visto pela maioria da populaçao como o momento em que se pode “meter a mao” no “cofre forte” dos politicos. Logo, a estratégia da populaçao consite em tentar recuperar esse dinheiro, de qualquer forma. Assim, a logica de don e redistruiçao estrutura a o campo de acçao eleitoral.
Com estes exemplos pretendo mostrar que no plano simbolico, a ruptura introduzida pelo voto pluralista é importante. O campo clientelista que se institui, permite reverter as relaçoes de dependecia entre os difrentes actores, nomeadamente entre o “cidadao comum” e os “ homens politicos”. Os primeiros apoderam-se temporariamente do poder, impondo-lhes as suas estratégias, invertendo assim a relaçao de forças governante/governado. Como me disse um agricultor em STP “derram-nos as terras e abandonaram-nos (...) na altura da campanha eles vao ver”.
A desigualdade de recursos propria da relaçao clientelista, nao é evidentemente profundamente transformada. Entretanto, ao longo dos multiplos escrutinios, os eleitores saotomenses aperceberam-se que poderiam exercer o seu “poder” sobre os homens politicos ou sobre os governates. Pois neste pequeno país a “roda das cadeiras” é corrente, por isto oposiçao e governantes formam um só “grupo coral”
Iolanda Aguiar
Olá, Carlos Bavo! Eu não afirmei que todos os Africanos são neo-patrimoniais. Há uma entrada no diário onde eu me refiro ao neo-patrimonialismo (a “política do ventre” de Bayart) como prática política corrente. Aqui apenas me limitei a ensaiar a hipótese de Reis ser um exemplo sedutor do potlatch abordado por Mauss na sua busca de pequenos clientelismos imediatos. Apenas mais um pormenor: Reis, o comerciante de Milange, lançou muitas notas de quinhentos meticais (na altura havia-as) do alto de um prédio de dois andares no gigantesco mercado informal do Brandão. Um perfeito e moderno exemplo de tentar comandar o real pelo simbólico do futuro desejado. Os vendedores corriam, apanhavam-nas em delicioso alarido e retomavam rapidamente os seus múltiplos e fantásticos negócios, como as ondas do mar em fluxo e refluxo. Nesse mesmo mercado, mo mesmo período, uma importante funcionária do STAE central queixou-se amargamente de os vendedores preferirem os negócios a escutá-la. No meu livro “Eleitorado incapturável” existem muitos exemplos de teatrocracia, como diria Balandier. Abraço sociológico!
Excelente comentário, Iolanda.
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