04 maio 2006

Ainda a sociedade civil

Vamos lá aceitar esta expressão tão docemente ambígua: sociedade civil. E prestemos atenção ao exercício que se segue.
Gostaríamos de propor, provisoriamente, quatro níveis analíticos para o conceito, a saber: interacção, associação, relação com o Estado e com o mercado e mestiçagem cultural[1].
A sociedade civil implica, em primeiro lugar, uma coisa óbvia: interacção social. Interacção social significa ao mesmo tempo solidariedade e luta social[2].
A sociedade civil implica, em segundo lugar, a existência de actores que se associam para defender os seus interesses, interesses que colidem, que são frequentemente antagónicos e cuja natureza não tem de ser, necessariamente, institucional[3].
A sociedade civil implica, em terceiro lugar, quer uma relativa autonomia em relação ao Estado e ao mercado[4], quer uma relação dialéctica e frequentemente conflitual com essas instâncias[5].
Em quarto lugar, a sociedade civil implica a existência de actores e de associações em situação, intensamente processual e contraditória, de mestiçagem cultural, agrupando estilos de vida, temporalidades, representações sociais e espaços que pertencem ao mesmo tempo ao passado e ao futuro, ao local e ao global (tal como exemplificam as nossas cidades de caniço, os dumba-nengues, as barracas, os chapas, etc.), aos mundos colonial, revolucionário e neo-liberal, ao campo e à cidade, actores e associações que combinam tradições que se modernizam e modernidades que se tradicionalizam, lógicas formais que se informalizam e lógicas informais que se formalizam, etc.
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[1] Esses níveis foram produzidos tomando em conta a realidade política africana.
[2] Uma parte significativa dessa interacção é, em África, infra-estatall e infra-institucional.
[3] É através do emaranhado cultural de instâncias privadas e frequentemente informais que o Estado procura, nos termos de Gramsci, exercer a sua função hegemónica, por exemplo através do aparelho escolar, o que implica considerar, uma vez mais, a complexidade das lutas sociais.
[4] Estamos conscientes de quão vago é exprimir assim estas categorias substantivas.
[v] Ver a sociedade civil como qualquer coisa de estrangeiro ao Estado, por exemplo, é ilusório. A sociedade civil é, também, afinal, uma sociedade eminentemente política ou politizada.
[5] A nossa aposta consiste exactamente em estudar os actores culturalmente mistos, transfronteiriços, que habitam as cidades de caniço, os dumba-nengues, as barracas, os chapas, etc. Muito mais do que expressões “africanas” de vida, defendemos como hipótese que esses locais combinam em permanente interacção processos de reconstrução social (cujos actores são os excluídos sociais) e processos de acumulação (cujos actores são muitas vezes funcionários do Estado, comerciantes do “formal”, etc.).

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