15 julho 2014

Na cavidade das coisas

Nenhuma sociedade progrediu sem fazer a sua própria crítica, sem que os seus pensadores e os seus criadores se metessem contra a corrente dos bem-pensantes.” - Henri Lopès1
O nosso país é rico de trabalhos fortemente impregnados de eticidade, de moral, de casuística. O que passa por análise em público – estudem os nossos jornais, por exemplo - é, não raramente, mesmo a nível científico, um exercício de moral, uma apologia do que “deve ser”, uma predicação para consumo colectivo imediato. Por outras palavras, tendemos muitas vezes a substituir a investigação paciente pela moral e pela predicação pronta-a-vestir. Por outro lado, tal como dizia a Musky de Os Lobos de Kohm da série O vagabundo dos Limbos de Christian Godard e Julio Ribera, “podemos viver com perguntas...mas nem sempre podemos viver com as respostas...” Decididamente, o mais difícil não é perguntar, mas responder. Afastar o espesso monte de ideias, de clichés e de convicções prontas-a-vestir do dia-a-dia, ir à cavidade dos fenómenos, enfrentá-los de frente, levando o imediato do deve ser a ceder o lugar ao construído do é e do está a ser, não é tarefa fácil. “O pensamento científico contemporâneo começa (...) por colocar entre parêntesis a realidade” – escreveu um dia o filósofo Gaston Bachelard2. Acho que essa é uma excelente maneira de introduzir a ida à cavidade das coisas. O mundo está cheio de predicadores da ciência: chegou a altura de a aplicar.
1 Lopès, Henri, Mes trois identités, in Kandé, Sylvie (dir), Discours sur le métissage, identités métisses, En quête d´Ariel. Paris: L´Harmattan, 1999, pp. 141-142.
2 Bachelard, Gaston, A filosofia do não, Filosofia do novo espírito científico. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 32.

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