03 maio 2007

Carta para o Senhor Presidente da República, Armando Emílio Guebuza


Presidente

Permita-me que, uma vez mais, lhe escreva uma carta, aqui, neste modesto canto.
Diz-me o cérebro que o Presidente não tem tempo para ler cartas como esta. Mas diz-me a alma que pode acontecer que alguém lha faça chegar.
O Presidente esteve ou está ainda em Cabo Delgado. Aqui lhe disseram que as exportações decaíram num ano em 66% porque foi interdita a exportação de madeira em toros.
Ora, a propósito disso, o Presidente colocou três problemas fundamentais, criticando publicamente o governo provincial: (1) A concepção que a vários níveis fazemos passar das estatísticas; (2) A questão da transformação local dos toros; (3) O consumo da madeira no país.
Parabéns, Presidente. Ao colocar o problema da transformação interna dos toros e, especialmente, ao colocar o problema do aproveitamento local da nossa madeira, o Presidente furtou-se à nossa mentalidade de exportadores felizes e integrais de matérias-primas. Já reparou, por exemplo, quanto as nossas escolas públicas estão privadas de carteiras e de portas no preciso nomento em que tecemos glosas à madeira que exportamos e que depois recebemos sob forma de mobílias que compramos?
Mas deixe-me ir mais longe e ser mais audaz.
As estatísticas são mais do que indicadores positivos ou negativos neutros. As estatísticas podem não reflectir a realidade, podem deliberadamente ocultá-la ou falseá-la.
Assim, Presidente, as exportações de madeira podem ter diminuído oficialmente e aumentado informalmente. Pode acontecer, Presidente, que não só saia madeira a granel ilegalmente pelos nossos portos maiores, como, até, pelos menores, com pequenos barcos fazendo o transbordo para barcos maiores em alto mar.
E quem diz madeira, Presidente, pode dizer ainda, por exemplo, marfim, barbatanas de tubarão, magajojo, corais, búzios raros, camarão pescado por mega-barcos de pesca de arrastão (com redes metálicas de malha pequena na nossas águas, mas bem longe da costa), etc.
Saiba, Presidente, que já por duas vezes apenas telefonemas anónimos para as sedes de dois governos provinciais impediram que saísse madeira em grande quantidade de forma ilegal pelos portos.
Saiba, Presidente, que existem testemunhos públicos de corte ilegal de árvores sem que ele conste das imperturbáveis estatísticas que, ano após ano, nos procuram tranquilizar afirmando que o corte é feito abaixo do legislado. E foi apenas há dias que uma reportagem da STV mostrou essa ilegalidade justamente em Cabo Delgado.
Finalmente, Presidente: todo o presidente da República visita locais em percursos definidos por equipas especiais. De alguma maneira os presidentes são reféns desses percursos oficiais que, quantas vezes!, ocultam aquilo que devia ser visto para apenas deixarem à disposição aquilo que é conveniente ser visto.
Presidente, sei que a sugestão que vou fazer é incómoda, mas faço-a: sempre que puder, contorne os percursos oficiais e apareça de supresa lá onde estão ou deviam estar os governos. Os governos e os actos reais. Talvez aí encontre o país que está fora das estatísticas.
Perdoe-me tê-lo, uma vez mais, incomodado.
Receba os meus mais respeitosos cumprimentos.
A luta continua.
Maputo, 3 de Maio de 2007.
Carlos Serra
Centro de Estudos Africanos
Universidade Eduardo Mondlane
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04/05/07: carta reproduzida no mediafax de hoje.

12 comentários:

Patricio Langa disse...

Sim, o posicionamento do PR é importante.
Mas a tomada de partido do PR não autoriza nenhum dos argumentos. O da existência ou o da não existência do fenómeno desmatamento/desflorestamento. Não autoriza, simplesmente, porque não é da competência do chefe do estado estabelecer a existência de tais fenómenos. As estatísticas não oficiais não adquirem o estatuto de verdade porque o presidente tomou o posicionamento que tomou. Nem as estatísticas oficiais passam a estar correctas ou erradas pelas mesmas razões. Esta-se num campo de luta pela definição de risco ambiental. Essa luta simbólica pela definição do risco ambiental passa pela definição do que é o desmatamento/desflorestamento. Mas esse exercício ainda não foi feito por nenhuma das partes envolvidas. E aqui não importa a perspectiva disciplinar. O tema se polemizou e polarizou. Uns acusam outros de mandatários de sei-lá quem. E os outros usando a caricatura do argumento conspiratório desqualificam o argumento opositor para defender a existência do mal. A mim, como sociólogo, essa luta pela definição do risco ambiental por via das implicações do efeito (probabilístico) do desmatamento/desflorestamento é mais interessante que qualquer tomada de partido. Nessa luta pela definição do risco ambiental é importante olhar-se para as características sociológicas, para as trajectórias e origens sociais dos intervenientes de ambos os lados. Não é qualquer pessoa que corta legal ou ilegalmente, transporta, comercializa e por ai em diante a madeira. Assim como não é qualquer um que decidi iniciar um movimento de protesto contra a degradação ambiental. Todos esses factores são convocados na definição do risco. O risco ambiental não dado, mas construído. É fundamentalmente construído pela via argumentativa. Aquele que conseguir esgrimir o “melhor argumento”, ganha. Mas isso não quer dizer que tudo termina por ai. A definição dos riscos é permanentemente negociada com recursos a novas evidencias sustentando um ou outro argumento. Nos, provavelmente, caminhamos rumo aquilo que os sociólogos Alemão e Britânico Ulrich Beck e Anthony Giddens designaram de sociedade de risco (no meu blog vou detalhar este aspecto). Historicamente, e no contexto das sociedades ocidentais, os movimentos de defesa do ambiente surgiram de grupos sociais sem preocupações de ordem material (o que comer, onde dormir, o que vestir etc).Pelo menos, nesses grupos a consciência ambiental era mais acentuada do que naqueles outros com preocupações materiais. Claro que não se trata de uma teoria geral, mas é preciso considerar. Por exemplo, explorar clandestinamente ou não a madeira pode trazer benesses (materiais e simbólicas) tanto quanto constituir movimentos sociais de defesa do ambiente.
Este é apenas o meu, modesto, posicionamento como sociólogo.
Vamos debater? Vamos! Desde que não me coloquem em nenhum dos lados do debate, emotivo, que tem vindo a ser feito até agora.

Anónimo disse...

Quem se posiciona de imediato é você, ilustre Patrício, e, pelos vistos, sempre do mesmo lado, independentemente da questão e da razão. Considere bem e verá se não é assim. Acresce até que a força da sua capacidade discursiva,num país com tão pouca massa crítica como é Moçambique, se torna, ela própria, um risco político e, no caso em questão, também ambiental. "Explorar clandestinamente ou não a madeira pode trazer benesses(materiais e simbólicas) tanto quanto constituir movimentos sociais de defesa do ambiente", mas o potencial de benesses em posições como esta que está agora a tomar pode ser muito maior.

Patricio Langa disse...

Caro anónimo.
Obrigado pelo seu comentário.
Realmente eu tomo posição. Eu não escondo o meu interesse. Todos, afinal os têm. E isso, em si, não é problemático. O meu interesse, sempre o afirmei explícita e abertamente como sendo o do entendimento do problema numa determinada perspectiva. A sociológica. O cerne da questão não está no facto de cada um de nós trazer consigo seus interesses explícitos ou implícitos. O cerne da questão, no meu entendimento, encontra-se na ideia de que o risco ambiental não é um dado adquirido. Não existe, antes que alguém o crie por via discursiva e argumentativa. É a plausibilidade dos argumentos apresentados para justificar a existência ou não de risco ambiental causado pelo “desmatamento”/“desflorestamento” que deve ser avaliada. Não é convincente a ideia de que a autoridade legal do P.R sancione a existência ou não do fenómeno em causa. Da mesma maneira que as estatísticas oficiais não representam a realidade. Mas enquanto os académicos estiverem ainda envolvidos na mobilização politica, poucos vão restar para analisar o fenómeno. E ai corre-se o risco de tomar discursos políticos por “verdade”!
N.B: Eu estou a dar a cara, mas respeito a sua opção de se fazer anónimo!

Anónimo disse...

vdzMas o senhor está em Moçambique ou na lua? Diga-me lá quantos (e quais, se possível) são os académicos em Moçambique que vêm a terreiro fazer algo mais que não seja esgrimir argumentos, deleitando-se no valor encantatório - e muitas vezes futilíssimo - das palavras? Será com essa atitude que se criará efectivamente um ambiente sustentável, que se valorizarão as riquezas nacionais, que se chegará a uma sociedade mais justa? Ou não deverão ser esses os objectivos dos académicos? O que falta é gente como Carlos Serra, que problematiza e age.

Patricio Langa disse...

Caro anónimo.
Repare que não estou a debater quem tem intenções mais nobres que o outro.
Se o quiser fazer, não encontrou melhor interlocutor. Não sei quem outorga a uns o direito de se sentirem mais patriotas que outros. De acharem que amam mais a pátria que outros. Nesse aspecto sou Rousseauano, acredito na bondade natural dos homens. Em nenhum momento defendi que devam delapidar as florestas. Deixemos de acusações e analisemos a plausibilidade dos argumentos que estão a serem levantados por ambas as partes. Eu vou descer ao nível que desceu e chamá-lo de lunático, por discordar de si. Respeito as suas ideias, mesmo que não concorde com elas. Podemos acordar em discordar. E não há mal algum nisso. Quanto a mim, o mero facto de existirem posições discordantes em relação a existência de determinado fenómeno é mais interessante do que as posições tomadas. Se está atento deve ter notado que em momento algum defendi que não existia ou existia “desmatamento”/”desflorestamento”. Estou a defender que esse fenómeno não existe, por si só. É criado. Complicado? Este debate é a prova disso. Está a criá-lo. O buraco de ozono não existe. É uma representação. Uma crença que orienta determinadas acções que denominados de ambientalistas. Os processos constitutivos dessas crenças interessam-me mais do que levantar bandeiras. O pior é levantar bandeiras por convicções pessoas de cidadão e legitimá-las como conhecimento científico. “NÃO HÁ NADA MAIS INGANADOR DO QUE OS FACTOS ÓBVIOS” dizia Sherlock Holmes.

Patricio Langa disse...

Onde escrevi: Eu vou descer ao mesmo nível..., queria escrever eu não vou descer ao mesmo nível...”.

Anónimo disse...

Aprecio verdadeiramente a sua capacidade para sustentar a discussão e a delicadeza com que o faz. Mas diga lá uma coisa: E a natureza existe? E Moçambique existe? E as florestas moçambicanas existem? (E a SIDA e a pobreza e...?) Não serão todas essas entidades puras representações?

Os problemas que Carlos Serra indica no domínio das florestas, mesmo que não o queira aceitar, estão mais do que minimamente documentados neste blog, e não será certamente Platão que os irá resolver. São esses problemas que devem ser aqui discutidos a partir desta carta com pontos tão concretos. Outra alternativa seria que documentasse também as suas teorias com recurso a factos e não apenas a filosofias.

Resta-me só agradecer toda a atenção que me deu.

Anónimo disse...

Parabens pela carta, mais uma vez tocando em questoes pertinentes.Espero que o PR leia. Sem querer desviar da questao principal para a qual irei debrucar-me depois de analisar detalhadamente uma serie de factos e os comentarios sobre a existencia ou nao da camada do ozono feitos pelo Patricio, nesta minha pequena caixola ingnorante, tenho certas duvidas em relacao a referencia que faz aos dados estatisticos quando diz: “As estatísticas são mais do que indicadores positivos ou negativos neutros. As estatísticas podem não reflectir a realidade, podem deliberadamente ocultá-la ou falseá-la.”

Sera que o problema esta na estatistica ou nos metodos como esses dados estatisticos nao colectados? Concordo que nao se deve ter uma fe a 100% nos dados estatisticos, mas a meu ver a frase acima parece querer atribuir falta de credibilidade a estatistica o que seria um erro, pois que ela nao deixa de ser uma ferramenta fundamental em qualquer analise. Creio que dever-se-ia, neste caso, centralizar-se a critica nos moldes que os dados sao colectados e nao centrar-se a critica na “estatitistica”.

Posso ter feito uma analise fora do contexto e desnecessaria, se assim for me desculpe por tal. Entretanto, tenho receio que os menos “conhecedores” ao lerem estas passagens sejam induzidos a descredibilizar a importancia dos dados estatisticos em qualquer que seja a area se investigacao, analise porque... “As estatísticas podem não reflectir a realidade, podem deliberadamente ocultá-la ou falseá-la.”

Anónimo disse...

Patricio, aprecio a sua capacidade de argumentacao entretanto sem entrar-mos em inumeras discussoes socilogicas creio que deveria-se estabelecer uma distincao entre o que é “desmatamento/desflorestamento” é a sua relacao com as alteracoes climaticas. Por um lado, se o Patricio argumenta que nada parece provar que essa relacao exista, o que ate posso concordar, o mesmo ja nao se pode dizer em relacao a questao do desmatamento/desflorestamento. No meu entender, desmatamento/desflorestamento, refere-se a eleminacao das florestas, abate indiscriminado das arvores isso independentemente das consequencias que ela pode trazer para a economia, o meio ambiente e tudo o resto. Para quantifica-la, podiamos ate olhar para a relacao abate/crescimento florestal ou definir qualquer outro parametro mais adequado. Sera que estamos eleminando mais e repondo menos? Portanto, nao se trata de um fenomeno abstracto e inquantificavel como o Patricio pretende querer discurtir atraves de citacoes e argumentos teoricos. Trata-se de um fenomeno real e e com factos observaveis. Como alguem aqui referiu, os dados tem sido documentados neste blogue.

No que concerne ao surgimentode grupos contestativos sobre o impacto ambiental, logicamente que as citacoes que apresenta ate que fazem algum sentido. O Patricio deve saber, como sociologo, que em qualquer sociedade exitem niveis de preocupacoes que sao motivadas por inumeros factores. Alias, se olhar para Mocambique as preocupacoes de ontem para muitos de nos deixaram de ser as preocupacoes de hoje. O que defne esses niveis? Talez teriamos que abrir uma outra discussao.

Abracos.

chapa100 disse...

espero que o comentario que o professor faz em relacao a estatistica nao induza as pessoas ao erro.
e o ponto relativo a visitas surpresas, espero que o presidente nao entre no estilo do ministro Ivo garrido, cacar preguicosos e corruptos e nao apoiando os dedicados, honestos e inovadores.

mas do qu nunca os gestores publicos e politicos estao a precisar de instrumentos eficazes de gestao e responsabilizacao com sancao.

Patricio Langa disse...

Caros interlocutores.
Não me furtei ao debate.
Escrevi longo para ser um comentário.
As vossas questões assim o exigiam.
Por isso, e sem querer retirar o debate deste espaço, com todo respeito que por ele nutro convido-os a visitarem o meu www.circulodesociologia.blogspot.com, onde postarei o meu longo comentário. Depois podemos regressar para aqui.
Obrigado.

Anónimo disse...

Lido o longo texto e respectivos comentários, parecem ficar perguntas no ar:
1. Não há, na opinião de Elíseo Macamo e Patrício Langa, qualquer interesse em averiguar as causas do não cumprimento dos regulamentos existentes? Dão o assunto por encerrado?
2. Considerando que têm sido praticamente ignoradas as denúncias e queixas das autoridades distritais e locais feitas até agora, será que a intenção de descentralização provém de alguma vontade genuína? Virá a ter algum efeito?
3. E até se conseguir um mínimo do chamado empowerment, em termos mais palpáveis do que a simples criação de estruturas e definição de funções, das comunidades distritais e locais, que se deverá fazer?