22 maio 2007

Os jogadores de xadrez



Acontece-me por vezes ter uma severa inveja de não ser poeta. Todavia, longe de mim a bárbara ideia de atribuir aos poetas a perversa convicção de que os jogadores de xadrez até podem ou podiam ser outras coisas, determinados cientistas por exemplo - doces, plácidos, calmos, distantes, cépticos das acções, estetas do bem, amantes da bela ciência incontaminada pelo senso-comum, analistas en profondeur do esforçado e inglório viver dos peões. Longe de mim, portanto, a ideia de atribuir tão maligna ideia a Ricardo Reis, um dos Fernandos Pessoas. Porque - quem duvida? - apenas lhe interessaram dois jogadores de xadrez e mais ninguém:


Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra,
E agora esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo os filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro,
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indiferentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranquilos e os avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganhaa um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada
Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele, os parceiros e o xadrez
A sua indiferença.
(1916)
Ricardo Reis

2 comentários:

Anónimo disse...

Bem a propósito do jogo de algumas discussões(nomeadamente sobre a existência ou não de devastação das florestas e de corrupção em Moçambique)que pela blogosfera vão ocorrendo. Enquanto se esgrimem doutos agumentos defendendo o indefensável, que deliciam seus autores, no terreno, tudo se permite que aconteça, e mais, com o aval de ilustes jogadores. O que importa parece ser, sim senhor, proteger reis e rainhas, mantendo-os no alto das suas torres e cavalos.
Rogério

Carlos Serra disse...

Por exemplo, deve ser especialmente fascinante jogar xadrez sem ouvirmos as árvores tombarem. E entre o avanço de um cavalo e o recuo estratégico de um bispo (numa combinação à Capablanca de um lado, do lado de Yates na partida de 1924 não falarei, claro), sempre acharemos que a deflorestação é apenas fogo fátuo e somente merece a xadrezeira hermenêutica do ludismo científico.