10 agosto 2006

Nós, os periféricos

Somos, nós, gentes das ciências sociais africanas, orgulhosos dos nossos feudos epistémicos: etnias, comércio, guerras, tradição, chefes tradicionais, boa governação, género, etc.
Foi necessário ir às universidades euro-americanas do Centro para nos especializarmos nisso.
Mas porque nos periferizámos, falta-nos a comparação, a permeabilidade, a cultura das grandes porosidades planetárias, a carne das hibridações transdisciplinares, a monitoria da horizontalidade epistémica.
Mestrámo-nos, doutorámo-nos em quê? Em temas da nossa periferia. E aqui reside a trágica condição da nossa subalternidade: o Centro estuda-nos, o Centro possui programas destinados a rito-iniciar os candidatos das Periferias, a maturizá-los e a reproduzi-los na sua condição única de produtores de matéria-prima informacional. Produzimos conhecimento, como, no nosso caso, produzimos caju e camarão.
Mas em nenhum de nós, em parte alguma das nossas universidades parece existir o projecto de sermos, também, sujeitos no processo de conhecimento do Centro.
Por que não criar centros de estudos europeus, americanos, asiáticos? Por que não fazer dos Outros igualmente a razão de ser do nosso conhecimento, por que não nos mundializamos para melhor nos localizarmos? Por que não estudarmos etnias europeias, comércios americanos, tradições russas, chefes tradicionais asiáticos?

12 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde. Sou uma recém licenciada em sociologia pela universidade de Coimbra em Portugal. Um amigo português, que esteve em Moçambique recomendou-me este blog. A questão que coloca aqui também já a coloquei a mim mesma. Não estou segura, mas quer-me parecer que os estudantes africanos, aqui em Portugal, têm como tendência inicial, escolher temas de análise sobre África. Parece-me natural. Trazem inquietações próprias, que desconheço. Deixo uma constatação, de quem não compreende o assunto: os europeus quando vêm de África, regra geral vêm deslumbrados. Cheguei a ouvir: "quando se molha os pés no Índico volta-se sempre". Sobretudo os que vêm de Moçambique, não tanto de Angola, dizem que a terra é mágica e que há um feitiço. Não me parece que os estudantes africanos em Portugal voltem para África com um sentimento semelhante, inclusive aqueles com maior poder de compra. Como explicar este desinteresse pela Europa? Haverá um receio? Pelo facto de ter sido, no passado, um continente colonizador?

Carlos Serra disse...

Certamente trabalhou com Boaventura de Sousa Santos...Tentarei amanha uma pequena resposta.

Carlos Serra disse...

Patrícia, aí ou em França, na Inglaterra e nos Estados Unidos a questão pode ser vista através de duas hipóteses: (1) o desejo de afirmar uma africanidade cuja independência é, ainda, muito recente; (2) os interesses temáticos das universidades receptoras e dos tutores especialmente a nível de mestrado e doutoramento. Em termos de pesquisa, as duas coisas podem irmanar a origem regional dos candidatos, a sua língua (tome em conta as inúmeras teses de doutoramento na chamada linguística banto), a preocupação dos governos africanos com a preservação das tradições locais, etc.

Carlos Serra disse...

Outro aspecto significativo nas ciências sociais é a opção pela história e, especialmente, pela antropologia. Aqui, as chefias ditas tradicionais e a etnicidade são campos temáticos privilegiados em França e nos Estados Unidos. A sociologia creio ser, por regra, muito marginal na opções.

Anónimo disse...

Lendo novamente o meu comentário parece-me algo ingénuo. Mas estes clichés fazem-me questionar. Também acho que a questão seja em parte política. Não é a sociologia uma ciência política? A questão das identidades nacionais também está na agenda da sociologia na Europa, promovida inclusivamente pela própria União Europeia. Nos últimos anos multiplicaram-se os mestrados e doutoramentos em estudos europeus. Já me mostraram uma tese sobre o impacto da liga dos campeões no desenvolvimento de uma identidade europeia. Questiona-se o que é isso de ser europeu, os fundamentos culturais, se uma referência ao cristianismo deve ser incluída na Constituição Europeia, se a Turquia é europeia… Há muitos incentivos para os programas Erasmus, de intercâmbio de estudantes pelo continente. Erasmus de Roterdão defendia que quanto mais um indivíduo viajasse e estivesse em contacto com outras culturas, mais aberto e tolerante se tornava em relação à diferença. É esse o espírito que politicamente se procura criar na Europa. Ou então sou eu uma optimista. Supostamente isto podia degenerar numa identidade transnacional ou num pós-nacionalismo, mas os localismos e os micro-nacionalismo estão na moda, na Catalunha, no país basco... A extrema-direita ganhou algum protagonismo um pouco por toda a Europa… Trata-se de uma questão identitária que os estudantes Erasmus colocam a si próprios. Sou belga ou flamenga? espanhola ou catalã? A Europa está cheia de conflitos históricos entre os povos vizinhos, mesmo no próprio país, e se calhar o fundamento é o mesmo: exploração, dominação, desigualdade. Se calhar o processo é semelhante entre europeus e africanos. Há um ditado português que diz “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”, que revela que o nacionalismo português se desenvolveu em torno de um sentimento anti-castela. No senso comum há a ideia que portugueses porque não somos espanhóis. Não estudei o assunto, mas sinto que um processo semelhante acontece com os africanos dos PALOP’s. Somos angolanos porque não somos portugueses. Falou-me da forma como a questão é vista aqui na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo como um desejo de afirmar uma africanidade, cuja independência é ainda muito recente. Mas como é que é vista em África? Que hipóteses se constroem em Moçambique sobre o assunto? Gostaria de conhecer outras perspectivas. Obrigado pela atenção e pela simpatia e parabéns pelo seu blog. Nota-se, aqui à distância, que é um dinamizador da sociologia em Moçambique. Voltarei de certeza.
Patrícia

Carlos Serra disse...

Patrícia: regra geral cada vez mais temo opinar sobre o que não investiguei. De qualquer das formas, vou esforçar-me por, nas próximas horas, aqui deixar algumas hipóteses. Mas, oiça: não quer tentar um mestrado com uma tese comparando os movimentos identitários globais usando Portugal e Moçambique como referenciais geográficos?

Carlos Serra disse...

Sim, as opções sociológicas são raras. Mas mesmo quando a estrada da sociologia é escolhida, as consultorias locais encarregam-se rapidamente de criar os sociólogos da ordem e do conforto,de um neo-durkheimanisno caseiro, docemente opiados pelos clichés de Breton Woods e pelos 4/4.

Anónimo disse...

Vejo que para além de dinamizador da sociologia em Moçambique, ainda dinamiza os sociólogos em Portugal. Por acaso tenho um bom amigo que está a fazer uma tese sobre um tema semelhante. Quem sabe? Prometo pensar nessa hipótese.

Anónimo disse...

Bom dia professor. Conversámos uma vez no seu gabinete, em Agosto de 2003. Estava ainda numa fase exploratória de uma investigação de mestrado, sobre as representações emitidas no Savana acerca do período colonial e dos portugueses. Não sei se se lembra. Aproveito este diálogo para referir que o tema de investigação de mestrado que acabou de sugerir seria também interessante para um estudante moçambicano, de licenciatura/ mestrado/ doutoramento. Ou por exemplo acerca das imagens sobre Moçambique, que transportam os investidores/ trabalhadores portugueses que aí chegam. Há muito pano para mangas. Seria interessante analisarem-se os tais clichés que a Patrícia refere. O tal “neo-durkheimanismo caseiro” (julgo que era a isso que o professor se referia). Analisar a forma como um sistema de valores e uma memória (vivida ou contada) interfere na experiência quotidiana, no relacionamento diário com moçambicanos, com estrangeiros e mesmo com outros portugueses. Ou o contrário: que imagens constroem os africanos acerca de Portugal, ou que impacto terão essas imagens (e essa memória) durante a diáspora, ao nível da interacção com portugueses. Há aqui um vasto objecto de estudo e pelo que conheço ainda se escreveu pouco sobre o assunto. E repare-se que, ao olhar para mim aos olhos dos outros, ajuda-me a reflectir em torno de ideias e de valores, de imagens que me foram transmitidas desde pequeno, que nunca tinha devidamente questionado. Há um certo crescimento interior. Trata-se de uma espécie de psicanálise do pensamento sociológico, ao género de Bachelard. De uma experiência Erasmus na CPLP. Mas aí se calhar já é outra história… as inevitáveis políticas na sociologia. E claro, torna-se útil no processo de conhecimento do Outro. Como dizia Bourdieu, nada classifica melhor uma pessoa do que a forma como ela classifica os outros. Bom… Achei importante partilhar esta experiência... Patrícia, foi engraçado encontrar-te no Diário de um Sociólogo. A sugestão do professor parece-me oportuna. Professor, devolvo-lhe a sua questão inicial: Porque não a organização, numa universidade de Moçambique, de um mestrado por exemplo em estudos europeus, ou em estudos asiáticos, ou em estudos americanos?
Tenho estado muito envolvido noutros projectos e tem sido difícil conseguir tempo para o assunto, mas terei todo o prazer em enviar-lhe a minha tese, assim que a terminar, o que acontecerá muito provavelmente durante o próximo mês. Já é tempo. Sociólogos, Erasmusemo-nos.

PS: E claro, parabéns pelo blog e pelo brio que imprime ao pensamento sociológico. É para mim um prazer lê-lo.

Carlos Serra disse...

Meu caro João: terei muito prazer em receber a sua tese (por que não prever uma publicação bi-nacional, aí e aqui?). A construção social do Outro é um tema que a todos nós interessa. Diz bem, há muito território por explorar, especialmente em países como o meu. Se achar bem, mande para aqui, para este diário, algo que ache possamos ler da sua tese. Entretanto, registei a sua proposta no tocante ao mestrado e ao doutoramento. Um abraço.. A construção social do Outro é um tema que a todos nós interessa. Diz bem, há muito território por explorar, especialmente em países como o meu. Poderemos criar pontes tansnacionais mais fecundas se conhecermos os fundamentos e as formas do olhar colectivo sobre o Outro. Se achar bem, mande para aqui, para este diário, algo que ache possamos ler da sua tese. Entretanto, registei a sua proposta no tocante ao mestrado e ao doutoramento. Um abraço.

Anónimo disse...

Também me bato pela construção de pontes entre culturas. Estou convencido que uma sociedade multicultural só terá a ganhar com isso se encontrar mecanismos de compreensão mútua, que conduzam ao respeito e à (possível) igualdade. É um pouco o que se chama de Team Building na Sociologia das Organizações. Uma publicação bi-nacional seria um passo nesse sentido. Mas o importante primeiro é terminar a tese. Estou numa luta contra o tempo pois não quero voltar a pagar propinas. Agradeço-lhe a amabilidade. Um abraço!

Carlos Serra disse...

Boa ideia essa a da revista bi-nacional, que ate pode ser feita aqui na net...