Por ocasião do Dia da Universidade Africana e com base no tema “Revitalizando Universidades em África: Estratégias para o Século XXI”, proferi uma palestra a O9/11/1998 no anfiteatro principal da Faculdade de Medicina. Eis parte dessa intervenção.
As ciências sociais nascem num contexto preciso: o da “desordem” da expansão capitalista europeia desde o século XVI.
E a sua missão não é menos precisa: a de estudar e debelar a desobediência social.
Assim colocado o fenómeno, claro que a nossa concepção sagrada de ciência se esfuma.
A visão das ciências sociais como uma actividade meramente académica é, na verdade, confortante[1].
Deixem-me, entretanto, postular que o modo capitalista de produção faz colidir duas lógicas e duas historicidades: as da acumulação burguesa e as da solidariedade social.
A primeira constrói-se com quatro fragmentações paradigmáticas: a do tempo, a do espaço, a da solidariedade e a da ética.
O pré-capitalismo era, digamos, indecomponível no seu tempo cíclico, sendo este intimamente fecundado e limitado pelo espaço familiar, pela solidariedade social e pela ética sagrada de um social que recusava o indivíduo enquanto, na acepção de Dumont, ser moral, independente e autónomo[2].
O modo capitalista de produção, pelo contrário, distende o tempo, fragmenta-o, divide-o, lança-o para frente com o relógio mecânico[3], subverte o território familiar diariamente revisto, multiplica o espaço da produção, quebra as solidariedades tradicionais, subverte e dessacraliza as velhas ordens patriarcais e os velhos mitos, dando origem ao indivíduo, essa figura histórica que vive e trabalha com uma outra que não conhece ou que produz para uma outra que não conhece.
A subversão do velho social cria uma “desordem” que é fruto da colisão entre a lógica do Capital e a lógica da solidariedade[4].
O Capital produz indivíduos para a frente - ele é futuro, incerteza, selecção, anarquia[5]; mas os indivíduos guardam, ainda, afinal, tenaz, a memória e o apelo da sociedade solidária - eles ainda são passado, certeza, uma certo tipo ordem e de ontologia campesinas.
É quando se torna necessário subverter a solidariedade e assegurar a nova ordem burguesa que, à polícia, se juntam as ciências sociais e a sua institucionalização universitária.
A sociologia, por exemplo, é claramente um saber que nasce preocupado com a ordem burguesa.
A psicologia da criança, a psicopedagogia são, de par com a medicina clínica e a psiquiatria, claramente saberes que surgem preocupados com a mente burguesa e com os desajustes sociais[6].
O desajuste social ganha a natureza do patológico médico.
Estudar o corpo, a mente, os gestos e os movimentos de massa torna-se um imperativo disciplinar iminentemente burguês. O corpo tem de ser maximizado na sua utilidade, a mente burguesa e individualista tem de ser produzida e homologada nas novas representações sociais.
A produção acelerada de mercadorias é, ao mesmo tempo, a produção acelerada de conhecimento destinado a reproduzi-la.
São necessários professores, investigadores, cientistas sociais, recursos estatais ou privados.
Casernas, penitenciárias, reformatórios, asilos, instalações psiquiátricas, fábricas, bairros populares, etc., são os campos de ensaio e de aperfeiçoamento dos inquéritos, das estatísticas, da matematização dos comportamentos, dos relatórios, dos arquivos, dos perfis psicológicos, das fichas, dos censos, das cadências fabris, da categorização da “anormalidade” social[7], etc.
Tecnologias políticas são levedadas pela respeitabilidade da ciência.
A meticulosa “orientação” (incluindo a disciplina sexual) da vida dos trabalhadores a partir de 1914 pela centena de membros do Departamento Sociológico a trabalhar para a Ford, visando combinar força de trabalho estável, salários mais elevados e produtividade acrescida, é, a esse propósito, um exemplo paradigmático[8].
O saber é, intrinsecamente, um saber ao serviço do poder[9], um saber ao serviço da naturalização da ordem capitalista e das sociedades organizadas com a disciplina burguesa.
Nunca em etapa histórica anterior o saber estivera tão massiva e generalizadamente ao serviço de uma dada ordem social (profundamente assimétrica) e de um grupo social (profundamente darwinista e nietzschiano).
Nunca como agora a ideologia foi tão implacavelmente produzida no sentido de naturalizar e eternizar a ordem social e as categorias nas quais a pensamos e de eliminar as Báucias e os Filemos faustianos de todo o planeta.
Nunca como agora o homem foi tão profunda e universalmente apresentado como egoísta e jogador estratégico preocupado com os seus interesses, homem esse que Adam Smith pré-anunciou em 1776:
“Não é da benevolência do carniceiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da preocupação que eles têm com o seu próprio interesse. Nós não nos dirigimos à sua humanidade, mas ao seu amor-próprio, e nós nunca falamos das nossas próprias necessidades, mas das suas vantagens”[10].
A democracia representativa expressa pelo voto é um produto político iminente da ordem social burguesa.
A ordem social burguesa, individualista[11] e dessacralizada, é periodicamente avaliada e robustecida pelo voto individual secreto, tão neutro e naturalizado quanto a mercadoria que, como uma mão invisível, une por todo o mundo indivíduos e solidariedades que se ignoram.
A ordem social burguesa é espalhada pelo mundo ou, melhor, é imposta a esse mundo através de guerras, mercadorias e ideias crescentemente informatizadas.
Assim se formam no planeta as periferias produtoras de matérias-primas e os dumba-nengues do Capital, asseguradas por classes compradoras que gerem, como no caso africano, Estados neo-patrimoniais[12], privatizados, nos quais a cleptocracia e a ostentação da riqueza (mas, também, o senhorismo de guerra e a predação quando um grupo é excluído do acesso ao prebendialismo estatal) estão em interface com a miséria galopante dos deserdados para quem o informal e a criminalidade acabam por constituir, afinal, formas legítimas de protesto e de recomposição social.
É nisso que consiste, afinal, a globalização.
Deslocada do seu centro produtor, a ordem social burguesa hibridiza-se, “perverte-se”, fecundada e muitas vezes determinada por ordens e ritmos sociais nos quais a matriz de referência não é o indivíduo, mas o grupo.
Todavia, o Capital é capaz de produzir intencionalmente uma lógica de produção barata de mercadorias tirando partido das solidariedades locais não dessacralizadas, levando as comunidades a assegurar, elas-próprias, parte da reconstituição da força de trabalho num sistema de trabalho sazonal.
O chamado trabalho migratório é disso um exemplo.
Na era colonial, muitas das plantações existentes em Moçambique assentaram nesse padrão.
Centro e periferia estão íntima e desigualmente ligados: é, também, com o trabalho barato dos trabalhadores da periferia que o Centro (penso especialmente na Europa e nos Estados Unidos da América) pôde e pode contornar as lutas dos trabalhadores e garantir, através de um Estado-Providência, a previdência e a harmonia sociais.
A democratização real no Centro capitalista, isto é, aquela que vai para além dos votos e assegura uma redistribuição da riqueza social e, por consequência, mais bem-estar para os cidadãos das classes desfavorecidas, só pode ser entendida nesse pacto perverso entre, como, eufemisticamente, dizemos, o Norte e o Sul.
As instituições de Bretton Woods impõem aos povos empobrecidos das periferias não apenas o destino da produção barata de mercadorias e o quadro do Estado-mínimo (portanto, ablativo da previdência social), mas, especialmente, o colete de forças de uma democracia representativa cara que, sob o perfume dos votos periodicamente expressos, acaba, afinal, por sancionar as elites neo-patrimoniais.
Como escreveu alguém, às diversas formas de violência (opressão física e psicológica, fome, desemprego e pobreza) que assolam centenas de milhões de seres humanos, “não há doravante outras respostas julgadas legítimas do que a expressão pacífica das opiniões, do boletim de voto e da força da lei”[13].
Na verdade, o Estado de direito e os votos escondem, muitas vezes, a adaptação astuta que um certo espírito apologista das “tradições”, do tipo “mobutista”, mas profundamente neo-patrimonial, é capaz de efectuar.
Hoje vivemos mais uma crise capitalista.
Milhões de trabalhadores estão desempregados no Centro.
Neste mundo no qual a única Internacional vigente é a do Capital e a economia real surge desconectada da economia financeira (de 1500 biliões de dólares de transações financeiras mundiais, apenas 1% é consagrado à criação de novas riquezas)[14], existem mais de 60 milhões de pobres nos Estados Unidos da América e mais de 50 milhões nos Estados da União Europeia. Nos EUA, 1% da população possui 39% da riqueza do país. À escala planetária, a fortuna das 358 pessoas mais ricas é superior ao rendimento anual de 45% dos habitantes mais pobres, seja 2,6 biliões de pessoas[15].
Mas tornemos o quadro ainda mais dramático e inquietante: as três pessoas mais ricas do mundo possuem uma fortuna superior à soma dos produtos internos brutos dos 48 países mais pobres, seja o quarto da totalidade dos Estados do mundo. Se, em 1960, 20% da população mundial vivendo nos países mais ricos tinha um rendimento 30 vezes superior ao dos 20% dos países mais pobres, em 1995 esse rendimento era 82% superior. Em cada ano, morrem de fome 30 milhões de pessoas, enquanto 800 milhões sofrem de sub-alimentação crónica[16].
Entretanto, calcula-se que no próximo século, no qual é suposto que a divisa será “to have lunch or to be lunch”, bastarão dois décimos da população mundial para manter a economia mundial[17].
A modernidade “prevertida” e excludente do capitalismo deste fim de século está bem patente no facto de Moçambique, considerado um dos países mais pobres do mundo e no qual existem, já, milhares de trabalhadores despedidos desde 1987 no quadro das chamadas “privatizações” impostas pelo reajustamento estrutural do FMI, possuir agora um sector universitário privado, cujas propinas são pagas em dólares.
Esse é um fenómeno que acaba, porém, quando amparado pelas categorias naturalizantes e normalizadoras da burguesia (desenvolvimento nacional, elevação da qualidade de ensino, etc.), por ser considerado um fenómeno normal.
Contudo, de par com uma variedade de movimentos de exasperação e de protesto sociais, incluindo os armados[18], assiste-se por todo o mundo ao regresso do social solidário e da utopia.
Os movimentos identitários, as etnicidades, os integrismos, as recomposições associativas, a invenção dos espaços do informal sem Estado, a proliferação de igrejas, certo tipo de movimentos milenaristas, etc., são simultaneamente um reflexo da inquietação generalizada e uma resposta para ela.
Num mundo cansado de razão instrumental, intelectuais e cientistas sociais defendem hoje a reabilitação dos antigos saberes providenciais e mágicos (aqueles, justamente, que, como escreveu Comte, nos faziam, afinal, porque não regidos por leis, acreditar que podíamos modificar o curso da vida e do mundo[19]), não hesitando, numa veemente crítica ao racionalismo, em considerá-los tão legítimos e verdadeiros quanto o saber científico[20].
Hoje, mais do que nunca, importa não apenas desfazermo-nos da ciência social do século XIX (“impensá-la” em lugar de “repensá-la”), como pretende Wallerstein[21], quanto interrogarmo-nos sobre como fazer surgir pensadores que, em lugar de analisarem as “disfunções” do social capitalista para melhor a reforçarem, no quadro do paradigma de Talcott Parsons, se dediquem, prioritariamente, à busca do social-em-utopia no quadro do paradigma societário de Marx.
Portanto, quero defender que é urgente impensar não apenas as universidades africanas, mas, também e especialmente, o quadro social das sociedades africanas que torna possível a aceitação e a reprodução da ordem excludente burguesa e neo-patrimonial, que enseja o senhorismo rapace de guerra e a perseguição dos intelectuais críticos (obrigados a emigrar).
A perspectiva marxiana continua válida: temos de passar da interpretação” à transformação do mundo.
Na realidade, importa precaucionarmo-nos contra o que Paulo Freire chamou “acções-aspirina”, quer dizer, nas suas palavras, aquelas acções “cujo pressuposto fundamental é a ilusão de que é possível transformar o coração dos homens e das mulheres deixando intactas as estruturas sociais dentro das quais o coração não pode ter “saúde”[22].
Faço a apologia de um renascimento epistemológico em África, não no sentido da produção de indivíduos da privacidade burguesa, mas no sentido de produção de sociedades que permitam o surgimento de indivíduos solidários e utópicos[23], capazes de tornar a riqueza social acessível aos deserdados e a solidariedade real, possível.
Houve, em Moçambique, quando da Revolução, uma Idade do Estado, um Estado quase orwelliano.
Hoje, período do neo-liberalismo, ela foi substituída pela Idade do Capital, um Capital predador.
Temos de ser capazes de entrar numa outra Idade, a da Democracia Real, a que leva aos produtores do social-em-utopia, à desmistificação de todos os mitos políticos do Uno, das Tradições Naturais e do Chefe Sagrado[24] e a um Estado diferente, redistribuidor, des-neo-patrimonializado, arbitral, ao serviço dos deserdados.
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[1] Veja Shaw, Martin, Marxismo e ciências sociais. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1975, p.31. Para a sociologia de como a ciência é produzida e socialmente condicionada, veja, por exemplo, Bloor, David, Knowledge and social imagery. Chigago/London: The Universty of Chicago Press, 1991, 2nd ed.
[2] É apenas agora, com as categorias burguesas, que podemos decompor essa unidade. Na verdade, a fragmentação e a atomização do social produzem incessantemente (em plena sintonia com a produção e a diversificação de mercadorias) a multilateralidade categorial. Veja, entretanto, Dumont, Louis, Essais sur l’individualisme, Une perspective anthropologique sur l’idéologie moderne. Paris: Essais/Seuil, 1983, p.37.
[3] Veja Giddens, Anthony, As consequências da modernidade. Lisboa: Celta Editora, 1995, pp.13-14.
[4] Este é um quadro que está a ser desenhado com a consciência de que o “tradicional” (categoria criada no quadro do capitalismo) apenas pedagogicamente pode ser evacuado da sua conflitualidade histórica.
[5] Isto não significa recusar que não tenha, antes, havido “indivíduos”.
[6] Foucault, Michel, Surveiller et punir, Naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975, pp.193, 225-226.
[7] A medicalização ou a biologização do comportamento social é, a esse nível, exemplar.
[8] Shaw, Martin, Marxismo…, op.cit., p.37.
[9] Foucault, Michel, Surveiller…, op.cit., p.32.
[10] Smith, Adam, Enquête sur la nature et les causes de la richesse des nations. Paris: Presses Universitaires de France, 1995, livre I-II, pp.15-16.
[11] E, evidentemente, darwinista. A chamada modernidade, tao inócua e pudicamente tratada por muitos intelectuais e cientistas sociais, esquece frequentemente isso.
[12] Médard, Jean-François (dir), États d’Afrique noire, Formations, mécanismes et crise. Paris: Karthala, 1991, pp.323-353. Cf., também, Bayart, Jean-François, L’État en afrique, La politique du ventre. Paris: Fayard, 1989; Bayart ( Jean-François), Ellis (Stephen) et Hibou (Béatrice), La criminalisation de l’État en Afrique. Paris: Éditions Complexe, 1997.
[13] Cassen, Bernard, Les “dix commandements” de la préférence citoyenne, in Le Monde Diplomatique, Mai 1998, p.10.
[14] Ramonet, Ignacio, Besoin d’utopie, in Le Monde…, op.cit., p.8.
[15] idem.
[16] Ramonet, Ignacio, Stratégies de la faim, in Le Monde Diplomatique, Novembre 1998, Editorial, p.1.
[17] Martin, Hans-Peter et Schumann, Le piège de la mondialisation. Paris: Solin/Actes Sud, 1997, p.12.
[18] de Brie, Christian, Retour des rebelles, in Le Monde…, op.cit., p.12.
[19] Comte, Auguste, Leçons de sociologie. Paris: GF-Flammarion, 1995, p.317.
[20] Hübner, Kurt, Crítica da razão científica. Lisboa: Edições 70, 1993; Chalmers, Alan, A fabricação da ciência. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994; Feyerabend, Paul, Contre la méthode, Esquisse d’une théorie anarchiste de la connaissance. Paris: Éditions du Seuil, 1979.
[21] Wallerstein, Immanuel, Impenser la science social, Pour sortir du XIXe siècle. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.
[22] INODEP, El message de Paulo Freire y práctica de la libéración. Madrid: Marsiega [1973?], p.131.
[23] Uso aqui utopia não no sentido usual de irrealizável, mas no sentido de concepções e da práticas tendentes a mudar uma dada ordem social, na circunstância a burguesa – veja Mannheim, Karl, Ideology and Utopia, An Introduction to the Sociology of Knowledge. London: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1960, pp. xxiii, 173-179.
[24] É neste tipo de alfobre “ideológico” que as elites políticas procuram colher dividendos e legitimações quando estão em dificuldades e pretendem evitar a descodificação do “poder”.
1 comentário:
Fica-se enojado quando sabemos dessa gente com tanta riqueza quando tantos outros morrem de fome.
Sonia Dedge
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