10 agosto 2008

Do poder político (7) (continua)

"Os crentes devem conformar-se com a vida porque o rico tanto como o pobre todos são criaturas de Deus, tudo será julgado pelo Senhor. Ainda dizia o pastor que se seguirmos a palavra do Senhor não seremos pobres, estaremos na mesma posição do rico com dinheiro e o rico [ficará] com a palavra do Senhor. Seremos ricos porque seremos dignos da palavra de Deus (Igreja Zione em Nampula)."
"(…) o pastor pede a todos que aceitem a situação em que se encontram, dizendo que ser pobre ou ser rico é o destino que Deus deu a cada um de nós. Ninguém deve falar mal dos outros, porque cada pessoa é aquilo que é, tem que aceitar. Os pobres só podem esperar a nova vida no paraíso - aqui termina o discurso do pastor. Todos vão cantando e dançando até anoitecer (…) (Igreja Zione na Beira)."
E prossigo a série com o título em epígrafe.
Escrevi no número anterior que as elites gestoras dos Estados têm um interesse permanente em evacuar a natureza particular dos seus interesses, procurando a todo o transe dar-lhes o selo de interesses iguais aos dos súbitos. E acrescentei que, se surgem problemas, as elites imediatamente afirmarão que as causas são duas:
1. Mão externa perversa, estrangeira, desestabilizadora (modelo in extremis)
2. Fenómenos efectivamente reais, mas evacuados do conflito social directo, como algo independente de relações sociais directas, do tipo vigente na nossa terra: pobreza, degradação do meio ambiente, Sida, malária, animais depradadores (leões, elefantes e macacos) (modelo do dia-a-dia).
Mas essa busca politicamente útil de imputação causal é completada, robustecida por um outro poderoso tipo de imputação causal anestesiante, indirecto, provavelmente bem mais eficiente, oriundo da "sociedade civil": a atribuição aos maus espíritos e/ou ao diabo da razão de ser dos problemas sociais.
Com efeito, os cura-tudo, mas também os pastores das inúmeras igrejas evangélico-salvacionistas que inundam o mercado local da crença, são aqueles, entre outros, que contribuem para a hegemonia do grupo social dominante através de um consenso plural (calibrado pelo medo, pelo amortecimento dos riscos da contra-sociedade, pela promessa de um além diferente), que pedem a quem deles carece diariamente que se conformem com as relações sociais existentes para que, um dia, espíritos e Deus os recebam e os redignifiquem. A condição social daqueles para quem cada dia é um ponto de interrogação - por exemplo - torna-os prisioneiros irremediáveis de um duplo constrangimento: por um lado, a vulnerabilidade perante os fenómenos da natureza e a insegurança do seu modo de vida catapulta-os para a interpretação emocional e antropomórfica da vida; por outro, esta visão reforça a vulnerabilidade e a insegurança. Os milhares de pessoas, regra geral de origem humilde, que consultam adivinhos cura-tudo e/ou que acorrem aos cultos milagreiros esperando que espíritos e Deus os ajudem a libertarem-se dos flagelos sociais, criam novos espaços identitários, encontram aí um sentido para a vida, neles recebem solidariedade, aí é-lhes assegurada uma recompensa extra-humana para os males terrenos caso creiam sem reservas na tutela espírita ou na justiça divina. Mas no preciso momento em que isso acontece, ocorre a evicção completa do projecto de modificação real das condições de vida. Com efeito, ao aceitarem que todos os males são obra dos "maus espíritos" (Igrejas Zione, adivinhos cura-tudo) ou do "diabo" (Igreja Universal do Reino de Deus), as pessoas acabam por ver transferida (com a sua adesão, afinal) para entidades sobre-humanas a responsabilidade social na génese da miséria e da violência. Perdido o sentido crítico, trocado que é pelo sentido das crenças, elas parecem evacuar o desafio humano de uma transformação social genuína. Aqui temos, afinal, um exercício de despersonalização trágica.
Mas veremos ainda outros espaços através dos quais a reprodução das elites dominantes é possível: falar-vos-ei oportunamente da ludicidade, da recreação.

4 comentários:

JCTivane disse...

Sou conservador, mas gostei de ler. Tenho dito.

Xiluva/SARA disse...

Uma vez mais temos os reis nus...

Anónimo disse...

Poder é cozinha é preciso saber cozinhar,misturar coisas. Se as coisas não querem impomos força. Gostamos muito de ensinar a aumentar o poder, melhorar as instituiçcões, mas muito raro alguém nos mostrar como se cozinha poder.

Lisa disse...

Ausente uns dias e feliz por reecontrar as mesmas caras:-)

Abraço Lisa:-)