01 maio 2006

Notas para a origem da antropologia

Se a sociologia nasce nas cidades europeias para ajudar a organizar e a domesticar a mudança social (reveja o que sobre isso escrevemos numa das entradas desde diário - arquivo de Abril), a antropologia (1) nasce nas colónias para ajudar os colonizados a pagar impostos e a trabalhar nas plantações (falta-me a paciência para ir mais atrás no passado e localizar percursores nos sempre eternos Gregos, por exemplo).
Operários, pobres e colonizados são marcados pela diatribe cultural do atraso, da selvageria (2), mas, também, do perigo e, até, da loucura. (3)
No caso dos colonizados, a categoria de “negro” estabelece-se muito cedo e recebe a homologação filosófica de Hegel e dos racialistas do século XIX. Povos sem história, povos sem espírito, povos frigorificados no hedonismo, no sexo, na bebida, na dança, na magia (4).

“Os negros (..) Tal como hoje os vemos, assim foram sempre. Na imensa energia do arbítrio natural que os habita, o momento moral carece de poder preciso (...) África (....) Carece, pois, propriamente falando, de história (....) Porque não faz parte do mundo histórico, não mostra movimento nem desenvolvimento.” (5).

Existiram, claro, excepções. Montaigne foi, exemplarmente, uma delas (6).
Mas o quadro geral tem vincadamente a linha hegeliana, que receberá ainda o sinete de sociólogos como Lévy-Bruhl (7) e, já no século XX, o do missionário Placide Tempels (8).
O nosso país pode ser tomado como exemplo em termos de como a antropologia leu, catalogou e frigorificou os Africanos.
A “tribo” é a unidade constitutiva do Africano na leitura de missionários, militares e funcionários administrativos. Ele habita-a biologicamente com a mesma tenacidade com que a agulha de uma bússola indica obrigatoriamente o norte qualquer seja o ponto onde nos coloquemos. Por isso um dos primeiros esforços empreendidos consistiu em catalogar os colonizados por tribos, ao mesmo tempo que se inventariavam os seus costumes, as suas formas de parentesco, os seus hábitos alimentares, as suas línguas, etc.
Esse trabalho era levado a cabo com a infinita paciência do entomólogo. Aliás, o famoso missionário Henri Junod coleccionou primeiro borboletas antes de se dedicar a coleccionar os “bantos” da África Austral, com o mesmo fervor taxidermista e biologizante. São dele as seguintes palavras, numa obra clássica que destinou especialmente et pour cause a administradores e missionários:

“A vida de uma tribo do sul de África é um conjunto de fenómenos biológicos que devem ser descritos objectivamente, pois representam uma fase do desenvolvimento humano. À primeira vista, esses fenómenos biológicos inspiram por vezes uma certa repulsa. A vida sexual dos Bantos, principalmente, fere o nosso senso moral.” (9)

Esse trabalho de agrimensura tribal é acompanhado pelos inquéritos, pela estatística, tal como nas cidades europeias em relação aos operários.
Com o aparecimento no século XX das máquinas fotográficas nas administrações e nas missões, a taxinomia etnográfica combina-se com fotografias de tipos ou espécimes negros considerados representativos da “raça” negra, com legendas do género, por exemplo:

“um tipo de mulher bà-ronga”

ou

“homem (frente e perfil) do “mutupo” tchato cujo totem é a cobra “nsato”, jibóia”

Esta sistematização zoologizante e taxidermizante, a qual na fase de ocupação militar é muitas vezes obra de militares portugueses, está intimamente ligada a quatro tipos de poder indissociáveis e fundamentais na montagem e na institucionalização dos aparelhos do Estado colonial em Moçambique, a saber:
· O físico-poder: conhecimento estatístico estatal visando conhecer o número de contribuintes do imposto;
· O corpo-poder: conhecimento estatístico laboral, visando conhecer a mão-de-obra disponível para as Companhias, para as minas sul-africanas e, mais tarde, rodesianas e para os próprios trabalhos do Estado colonial;
· O bio-poder: conhecimento estatístico dos movimentos “biológicos” das populações: fluxos populacionais, mortalidade, casamentos, nível de saúde, duração média de vida, etc.;
· O psico-poder: conhecimento e sistematização dos aparelhos e das práticas culturais rurais visando a administração da justiça, a formação de cidadãos obedientes e “tribalizados”, o fornecimento de noções básicas de língua portuguesa, história de Portugal, aritmética, etc., em especial para funcionários negros subalternos.

Portanto,

No primeiro caso importava saber quem devia pagar
No segundo caso, quem devia trabalhar
No terceiro, como se podia planificar e racionalizar o futuro dos contribuintes fiscais e dos trabalhadores
No quarto caso, como se poderia economizar nos gastos de um Estado demasiado repressivo, assegurando uma disponibilidade psicológica para obedecer ou, empregando os termos perversos de La Boétie, uma “servidão voluntária” (10).
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(1) Não temos aqui qualquer intenção de entrar na interminável discussão sobre a delimitação territorial entre antropologia, etnologia e etnografia. Digamos que, ao fim e ao cabo, a antropologia é a sociologia dos colonizados.
(2) Mudimbe, V.Y., The idea of Africa. Indiana/London: Indiana University Press/James Currey, 1994.
(3) Mouralis, Bernard, L´Europe, l´Afrique et la folie. Paris: Présence Africaine, 1993.
(4) Hegel, G.W.F., La razon en la historia. Madrid: Seminarios y Edicions, S.A., 1972, pp. 267-291.
(5) Ibid., p. 291.
(6) Montaigne, Michel de, Essais. Paris: Librairie Générale Française, 1972, tome 1, pp.303-319. (7) Lévy-Bruhl, L., Les fonctions mentales dans les sociétés inférieures. Paris: Librairie Félix Alcan, 1928.
(8) Tempels, Placide, Bantu philosophy. Paris: Présence Africaine, 1969-
(9) Junod, Henri A., Usos e costumes dos Bantos. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1974, tomo 1, pp.74-75.
(10) Serra, Carlos, Combates pela mentalidade sociológica. Maputo. Imprensa Universitária, 2003, 2ª ed., pp. 87-88.

2 comentários:

Anónimo disse...

Nao que fazer um pequeno esforço visitar os gregos, Seria interessante conhecer o real percusro!!!
paula

Carlos Serra disse...

Sem dúvida. Mas fiz isso durante vários anos...