03 março 2009

Três fenómenos

Quadro: (1) linchamentos, (2) crença de que Estado e abastados prendem a chuva no céu e (3) introduzem intencionalmente a cólera através da feitiçaria, são três fenómenos - amplamente reportados e analisados neste diário - que têem causado agitação social em várias províncias do país. Tudo isso causa muito espanto e leva muitas pessoas a exigir um combate enérgico que ponha fim ao que se passa. O problema, porém, consiste em saber o que existe por trás das crenças e das práticas. E isso não é fácil. Porque, entre outras razões, implica interrogar as relações sociais, avaliá-las. Questão nodal a ter em conta: por que certas crenças sem sentido para nós fazem sentido para quem as tem? Temos tribunais, temos polícia, chefes comunitários, escolas, igrejas, hospitais, vacinas, saneamento, múltiplos actores em campanhas de sensibilização de vário tipo, temos rádio, televisão. Pergunta nodal: por que razão tudo isso é muitas vezes não só ignorado como criticado? Querem os leitores responder?

9 comentários:

Anónimo disse...

Professor,

 Fico satisfeito por nas últimas postagens sobre o tema ter admitido que quem comete crimes tem que ser responsabilizado nos termos das leis vigentes, independentemente das suas crenças.

 Quanto às suas “questões nodais”
1.“Por que certas crenças sem sentido para nós fazem sentido para quem as tem?

 Pela mesma razão que há determinados fenómenos, cientificamente comprovados, que o indivíduo com formação básica, secundária ou média observa mas não consegue descodificar /demonstrar e o seu vizinho, com nível de formação superior entende e demonstra: porque tem bases para apreender o que o Cientista, após muito trabalho, pesquisa, investigação, descodificou.

 Ora, dizem os Tratados sobre a evolução das civilizações, elaborados por cientistas de várias áreas, que ao longo dos milénios os conhecimentos e comportamentos do Homem evoluíram: grosseiramente, passou de nómada/ Arcaico (em vez de rotação de culturas fazia a rotação de terrenos), para agricultor (passou a fazer rotação de culturas nas mesmas terras, melhorando a sua produtividade e fixando-se), passou por diferentes fases da era industrial e serviços, até aos dias de hoje em que navegamos na informática. Tudo resultado da acumulação de saber!

 Pelo exposto, não vejo problema em admitirmos, sem complexos ou pseudo paternalismos, que:
(i) a grande maioria da nossa população rural (mais de 70% do todo) utiliza ainda práticas arcaicas ao nível da produção (e que isso se reflecte no bem estar e consequentes comportamentos);
(ii) a grande maioria das nossas industrias são arcaicas, por isso não competitivas (com reflexos nas receitas fiscais e consequente dificuldade do Estado no financiamento de projectos sociais);
(iii) uma grande parte de nós tem fraco nível de escolaridade e um enorme défice de conhecimento científico para interpretar os fenómenos naturais e/ou mecanismos tecnológicos dos nossos dias.

2. Citação: “ Temos tribunais, temos polícia, chefes comunitários, escolas, igrejas, hospitais, vacinas, saneamento, múltiplos actores em campanhas de sensibilização de vário tipo, temos rádio, televisão.”
“Por que razão tudo isso é muitas vezes não só ignorado como criticado.”

 Simples, Professor: Tudo isso não funciona, acaba por ser ignorado ou criticado, porque a infra-estrutura de base, o aparelho de Estado tem enormes carências, como bem sabe.

 Não basta termos muitos ministérios e outros organismos com vistosos organogramas. São necessários meios Humanos (o principal activo), meios materiais e financeiros adequados, etc., etc..

 Bem sabe, temos polícias com salários de fome e sem meios adequados para o exercício das suas funções; idem no que toca a professores, enfermeiros e funcionários em geral… a quem, por um lado se prega honestidade e virtude e, por outro se lhe aguça o consumismo, pelo exemplo vindo de cima!

Um abraço
AM

Carlos Serra disse...

Bem, esperemos que surja debate...

Anónimo disse...

Dr. Serra,
Peço desculpa por postar a minha inquietação num espaço impróprio. Estou tão revoltado que queria partilhar a minha frustração com alguns académicos.

Nos últimos tempos tenho assistido a banalização do conceito noticia por parte de certos jornais da praça. Na tentativa de venderem os seus jornais, chegam ao cumulo de inventarem noticias.
A minha frustração agudizou-se hoje com a manchete do jornal Publico, que dizia: CARGO DE MINISTRO DA JUVENTUDE E DESPORTO, Guebuza empossa Sumbana Jr. No lugar do irmao.
Como um cidadão atento ao país, fui induzido ao erro e acabei comprando o tal jornal na tentativa de perceber este possível erro crasso do Presidente da Republica.
A noticia prossegue com o seguinte teor “O Presidente da Republica, Armando Guebuza, terá sido induzido a erro na indicação da pessoa para preenchimento da vacatura deixada por David Simango, no Ministério da Juventude e Desporto, ao conferir posse ao actual Ministro do Turismo, Fernando Sumbana Júnior, no lugar de Zacarias Sumbana...”.
A noticia prossegue como se de um romance se tratasse.

1. Será que o Presidente seria assim tão distraído ate nomear um Ministro por distracção? Atenção, não estamos a falar de Director Nacional, Chefe do Departamento ou Administrador do Distrito, mas sim dum membro do conselho de Ministros.
2. Agora temos jornalistas que falam directamente com o Chauque
3. Temos jornalistas que falam com motoristas do Anibalzinho
4. Temos jornalistas que entram na mente do Presidente da republica e sabem que não tinha intenção de nomear o Sumbana Jr para MJD.

Mais não direi, porque se não cometerei o erro de reagir a quente...mas sinto-me burlado, porque pensei que estava a comprar uma noticia enquanto era um romance.
Provavelmente não voltarei a gastar os meus parcos 20,00Mt na compra do jornal publico.

Orgulhosamente Moçambicano
Nuno Amorim

Anónimo disse...

Eu não consigo alcançar nenhuma resposta plausível para as perguntas que o prof. levantou, mas não me agrada pensar que a grande causa é a baixa instrução dessa população. Crer, seja lá no que for, não é um mal exclusivo - nem predominante - dos mal-instruídos... Não me parece que essa relação ignorância/crença anti-científica seja tão linear.
(apenas palpites... pensando alto.)

Carlos Serra disse...

Isso, as coisas não são tão lineares quanto cremos.

Anónimo disse...

Acrescentando ao que aqui já foi (correctamente) dito, apenas tenho a dizer - aproveitando o paralelismo - que não é necessário procurarmos muito longe para encontrarmos crenças que são para nós (ou muitos de nós), regra e até mesmo verdades incontestáveis. Falo naturalmente da religião, que no fundo não deixa de ser uma crença embora que de alguma forma "instituida", mas que dada a prática comum (e talvez, como já foi referido, estando dentro do que é o nosso cabaz de conhecimento) não é vista como tal e que ao longo de secúlos foi o dínamo das mais diversas atrocidades, assim como condutora de comportamentos.

Não estou de qualquer forma a criticar e minimizar quem é religioso. Cada um tem direito a ter as suas crenças. Há é que compreender as dos outros.

Xnd

Anónimo disse...

Plenamente de acordo com Xnd.

Aconselho sobre o tema a verem um vídeo de Obama: Obama e a Religião.

Uma posição pragmática, interessantíssima onde claramente refere que a Jurisprudência está acima das religões e crenças.

JG disse...

"Isso, as coisas não são tão lineares quanto cremos"

Concordo plenamente. Prof, sou estrangeira, não trabalho aqui permanentemente. Fiz a minha 4a visita intensiva para Niassa agora.

Confesso que fui formada em antropologia.

Não tenho tempo para contar a minha história devidamente. Só para dizer que QUASE atropecei num surto de cólera em Lúrio, perto de Cuamba. No caminho, parámos conversar com ONG internacional numa visita de campo. Demoraram muito para nós informar da situação "agitada" em Lúrio. Parecia que os locais e os próprios da ONG tinham receio de pronunciar o que estava a decorrer.

Como a nossa visita ia ser espontânea, e eu como "forasteira" ia atrair atenções até num dia normal... Ainda bem que nós avisaram afinal.

Só para observar algo: nos surtos de doença "no occidente" também existem muito desconfiança e agitação. Cólera é uma doença que cai, esvazia e mata com uma rapidez assustadora. Podemos constatar que a reacção das pessoas corresponde as características da doença: é rápida e violenta.

Outra coisa que fui aprendendo é que todos vivem no seu mundo de sentido. As pessoas recorrem aos tipos que informação disponíveis quando procuram entender eventos. Traçam causalidades dentro daquilo que vivem.

Como não conheço Lúrio, não posso comentar do mundo de sentido que existe lá. Mas será que as pessoas tem acesso a justiça? Será que tem acesso a serviços completos de saúde e ensino de biologia nas escolas? Será que estão habituados de receber muitas visitas de ONGs internacionais, escritórios provinciais, de polícias todos ao mesmo tempo (é isso que acontece num surto de cólera)?

Acredito pessoalmente que o nosso mundo de "ciência" e biomedicina também deve ser questionado, tal como o racocinio dos mercados.

Obrigada por ter aberto esta discussão, a mim me parece muito pertinente.

JG

Anónimo disse...

Caros amigos,

De facto é muito difícil fazer linearidade neste assunto tao complexo. Há vários factos associados e que variam de regiao para regiao. Mas o nível de educacao e a disponibilidade ou o acesso aos servicos públicos (saude, justica, polícia, água, electricidade, etc) quase inexistente em muitas zonas (rurais) do país pode estar associado a estas questoes.

Uma prática que tem se visto actualmente é a dos nossos dirigentes (a partir do presiente, ministros, governados, líderes locais, etc) deitarem bebidadas tradicionais ou as convecionais (vinho/champagne) durante cerimónias de inauguracao, num acto de agradecimento aos espíritos dos antempassados e pedido de proteccao. No meu ver isto também pode transformar o nosso estado numa entidade ligada a feiticaria, bruxaria, ... com poderes de trazer sorte mas tambem azar ou maldades para algumas comunidades.

LM/