09 julho 2008

Morte social

Conferia alguns dados sobre feitiçaria, analisava os canais criados pelo Estado para remeter para a AMETRAMO (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique) os complicados problemas de feitiçaria. Pensava no que alguém disse, algures no nosso país, sobre as centenas de casos de acusação de feitiçaria que teve de analisar. São dados, frases, números, despachos, assinaturas, pedidos, carimbos. São a roupa burocrática da realidade. Ou uma das roupas. Tirada essa roupa, surge a nudez dramática das muitas pessoas que, neste país, se não são linchadas fisicamentos por acusação de feitiçaria, se não são mortas, são simbolicamente linchadas, psicologicamente linchadas, socialmente linchadas, agredidas pela dor, de forma diária, pelo isolamento, pelo ostracismo, pela morte social, pelos inúmeros detalhes da terrível acusação. Penso especialmente no grande alvo das acusações de feitiçaria: as mulheres (num recente programa televisivo, no qual participei, um médico tradicional afirmou que aprendeu desde pequeno que as mulheres têm isso, a substância da feitiçaria). Penso - deixem-me detalhar brevemente, modesto caso - no homem que acusou a esposa de ser a feiticeira responsável da sua impotência sexual, mediante uso de uma maléfica mezinha de curandeiro. Penso nos múltiplos corredores de suspeita e sofrimento que atravessam as nossas famílias. Na verdade, os nossos conceitos criam fronteiras que muitas vezes importa transpor para vermos o que eles não deixam ver. Os linchamentos são múltiplos. Terei ocasião de, proximamente, em livro, escrever sobre a morte social, sobre o SFA (síndromo da feitiçaria adquirida).
Atenção: corrijo frequentemente o que escrevo e por isso as formulações que surgem neste diário sucedem-se, em alguns casos de forma desalmada. Por exemplo, este texto já foi alterado várias vezes.

3 comentários:

Anónimo disse...

E perante esse cenário de muitos abusos, crimes, assassinatos à pala das conclusões e recomendações de feiticeiros, há tanta condescendência e tão pouco controlo dos ditos médicos tradicionais, quando sabemos que muitos, muitos destes trazem também uma grande carga daquela feitiçaria?

Carlos Serra disse...

Um delicado e complexo problema que continuarei a estudar e, depois, em fóruns apropriados, tentarei fazer discutir.

Anónimo disse...

Prezado Carlos,

Fico indignado, curioso e pergunto-me: até que ponto as novas correntes calvinistas-neopentecostais estão atuando em África, como em outras terras, destruindo tradições sob a alegação de serem contrárias à Bíblia?

Meu abraço,
Paulo/Brasil