14 agosto 2006

Bonés, camisetes, dísticos e pastas de conferência


Um dos meus maiores prazeres consiste em ler os anúncios dos jornais. Muitas vezes, é nos anúncios que estão os indicadores da vida de um país.
Por exemplo, um desses anúncios diz que uma empresa local fabrica “camisetes, bonés, fato-macaco marca Jonsson, dísticos, pastas para conferência”.
E aí temos o país das cidades, especialmente da cidade de Maputo, o mundo de um certo tipo de espectáculo, diário, galopante, bretton woodsiano, pejado de conferências, de seminários, de conselhos coordenadores, sempre com as mesmas frases, os mesmos doces chavões.
A única coisa que destoa é o fato-macaco, demasiado beócio para figurar em tão elegante galeria do espectáculo democrático da actualidade. Mas, no fim, eu lhe darei um destino, como vereis.

O boné, esse modesto filho do chapéu, sobrinho da boina, joga hoje aqui um papel vector intransponível: faça sol faça sombra, esteja-se na rua ou numa sala de conferências, chova ou não, usa-se boné. Usa-se boné no 4/4 que desliza lenta e majestosamente no domingo da marginal, nas gloriosas sessões matinais e vespertinas de abate de calorias pelo footing na Friedrich Engels, nas inaugurações de qualquer coisa, nos debates sobre democracia nas mais caras salas dos hotéis de luxo, na propaganda contra os males sociais (SIDA, pobreza absoluta), no cinema, na boîte.
De modesto utensílio destinado a proteger o couro cabeludo, o boné transformou-se em mecanismo identitário multiforme, perfeitamente democratizado, rosto da modernidade, quer na cabeça do jet set nacional, quer na do estudante, do cançonetista, do pistoleiro profissional ou do modesto propagandista da luta contra os males sociais.
Mas o boné tem uma prima: a camisete. A camisete está em todo o lado, é igualmente a-todo-o-terreno como o 4/4, desde as campanhas de propaganda política às inaugurações de fábricas, passando pelos desfiles (mesmo os operários dele são ciosos) e pelas salas dos hotéis luxuosos.
O jet set nacional orgulha-se de usar boné e camisete, ele sente-se assim desportista, informal, cidadão da rua, ligeiro no passe e no repouso.
Ao boné e à camisete junta-se um artífice, o dístico, político, estatal, religioso, publicitário, numa metamorfose permanente.
E, finalmente, o que seriam do boné, da camisete, do dístico, desses nossos gloriosos tótemes, dessa santa trindade, sem a elegante gravata da pasta de conferência?
Por todo o lado, todos os dias, as salas de conferências estão em workshop. A workshopização encontra na pasta de conferência o sinete de respeitabilidade que o boné e a camisete subvertem e que o dístico barulhiza em excesso. Poucos escrevem na pasta o que quer que seja. Mas isso não importa, o que importa é ser respeitável, passar por alguém que segue atentamente o que está a ser dito ou discutido.

Falta o fato-macaco. Bem, esse uso-o eu, para desenhar placidamente esta entrada.

1 comentário:

jpt disse...

Às vezes há sintonias ... ainda hoje fiquei engasgado, mais uma vez, e a refrear-me, estrangeiro a não se querer estranho. Numa sala de aulas lá me entrou um aluno, já quartanista, veterano pois então, de boné no sítio, nem pensar em tirá-lo, a sentar-se e nem então, a ficar-se assim, a coberto das intempéries, decerto.

E eu a gaguejar, "digo, não digo, digo, não digo" e a deixá-lo, leninista no "Que Fazer?", a refrear-me, já o disse, como posso eu obrigá-lo a assumir valores afinal de outros, que debaixo de tecto se descobre a cabeça (com notória excepção de coberturas capilares de simbolização religiosa, que são múltiplas, mas não surgem com ícones desta modernidade basquetebolista e afim)