27 julho 2008

Para reflectir


Vem na última página do semanário "Domingo" de hoje. O trabalho refere a perda dos "valores da solidariedade humana, sem o mínimo respeito pela dor alheia". Aqui está um tema vital. Como vital é esta pergunta: qual a razão ou quais as razões desse eclipse da solidariedade humana? E, já agora: são humanas as razões desse eclipse? Clique duas vezes com o lado esquerdo do rato na imagem para a ampliar.

11 comentários:

Anónimo disse...

Acredito que o texto parte de uma premissa errada, a la Rousseau, supondo que a solidariedade, dom natural, tendo sido socialmente corrompida. Não deveria ter o jornalista se perguntado se ela existiu em algum momento, e, se sim, quais foram as circunstâncias que a favoreciam? Textos assim contribuem muito pouco a um debate sério, pois naturalizam a virtude e socializam o vício, quando ambos dependem bastante da estrutura social (tenderia a dizer que o egoísmo está mais próximo da natureza humana que a solidariedade, principalmente a solidariedade que vai para além dos limites da família).

umBhalane disse...

Já eu sou mais prático e pergunto:

- É viavel, possivel a existência de tais valores numa sociedade em que a miséria afecta grande parte dela?

Não só em Moçambique.

- Sobreviver não se torna o mais importante?

Num contexto de "pobreza absoluta"???, e o termo não é meu.

Anónimo disse...

Pensei, pensei, e não resisti a tentação de entrar nesse debate. O motivo é simples: a dita crise ética em Moçambique, suas raízes e as soluções apontadas no programa de ensino de Filosofia fazem parte da tese de Doutorado que estou escrevendo.

Ao Jonas eu diria que também caí noutro extremo, o de Thomas Hobbes. O Umbhalane revela um ceticismo quanto a possibilidade de valores éticos, apoiando-se no contexto sócio-econômico.

É necessário ter os pés na história: vi-me obrigado, durante o mestrado, a mergulhar no socialismo real moçambicano, sobretudo na sua proposta educacional. Hoje eu me pergunto: onde estão os valores da solidariedade,espírito de sacríficio, por exemplo, pregados pelo discurso educacional e que visavam à formação do "Homem Novo?" Sou obrigado a concordar com Hannah Arendt (embora ela escreva em contextos diferentes), que da negação da tradição (não sou um tradicionalista, apenas sou a favor pela consideração de valores positivos da dita sociedade tradicional, em que a solidariedade pelo desconhecido se fazia presente) e, por consequncia da passado-história, em vista a um futuro (socialista) que não se efetivou, caímos num abismo.. Ademais, a modernidade socialista, no meu entender, fragilizou o ethos "tradicional". Propôs valores que também não se efetivaram. A modernidade capitalista (que estamos vivendo agora), possivelmente teve espaço num contexto de fragilização do ethos tradicional e também dos valores ditos "socialistas": a praxis de alguns que serviam de referências práticas a esses valores revelava o contrário. Nesse contexto do vazio ético e crise de referências éticas teórico e práticas, assistimos aos mais brutais atos, a começar pelos linchamentos!

Penso que é necessário fazer uma análise dialética da história antes de entrarmos no ceticismo e no niilismo ético.

António Cipriano

Anónimo disse...

Sem deixar de lado a analise dialetica da historia, que muito pouco entendo, diria simplesmente que é dificil resistir a um pão a vista, quando o mesmo sera a um preço insuportavel do mercado. Quero dizer, se estas pessoas não tivesse dificuldades de obter um saco de farinha, certamente que não pautariam por roubar diante de acidente. Nisto, da para entender que as desigualidades embora sejam beneficas no capitalismo, elas são tao bem perigosas quando grosso numero das pessoas não conseguem competir. Recordem-se do 5 de Fevereiro em que tinha duas caracteristicas: saque a propriedade alheia e manifestação violenta. Mesmo a xenofobia da RSA: xenofobia e saque de propriedade alheia.
Isto é caso para dizer que ja não ha referencias morais a todos os niveis. A corrupção enquadra-se nesta classifição.

Anónimo disse...

É muito triste ler algo sobre isso. Enquanto nada realmente efetivo for feito para combater a pobreza, a miséria e a fome, cenas como essa se repetiram exaustivamente. Não apenas na África, mas em todo o mundo.

Anónimo disse...

Caro Cipriano,
minha opinião é bastante hobbesiana, sim, mas é também informada pela história. E nossa história, a história da humanidade, parece vindicar o filósofo inglês em vários aspectos. Mas, aqui, ficaria mais próximo à Darwin (e as recentes teorias darwinistas do "gene egoísta"-Richard Dawkins) do que Hobbes. Não nego, no entanto, a possibilidade de cooperação. Mas digo: a história demonstra que ela é a exceção, principalmente em grandes grupos sociais, dependendo de um grande número de variáveis. O que a notícia relata é o que nós, humanos, temos feito ao longo de grande parte de nossa história: pilhagem.
Boa sorte na tua tese!

Anónimo disse...

Caro Jonas e Horácio.

Penso que não estamos tão distantes em nossas observações. Eu apenas busco entender o que possivelmente levou o país à este estado de amoralismo. Acredito que, mesmo a pobreza na qual o Horácio se apoia, ela é consequência da modernidade capitalista adotada em Moçambique sem a observância da dimensão social. Ou seja, do economicismo e das leis mercado, em que pese o fato de em 1990 ter sido acrescentado, ao programa econômico, o lado social (sugiro a leitura do quarto capítulo do livro de Pierre Salama e Jaques Vallier "pobreza e desigualdade no terceiro mundo").
Mas a pobreza nao pode eximir-nos da observância do humanismo em situações deploráveis. Não sei se de fato, todos os que participaram do saque o fizeram movidos pela pobreza ou simplesmente pelo amoralismo que grassa Moçambique...

Jonas, em Hobbes o estado de natureza era apenas uma hipótese e não um fato. Categorizar o homem como saqueador, em pleno século XXI, penso que é uma regressão à barbárie já denunciada por Adorno. É necessário combater a práxis orientada por essa dimensão antropológica, sob pena de continuarmos a viver na desumanidade que pretende ser, digamos, a nossa "essência" em Moçambique.

Difundir idéias antropológicas como essas, não seria o mesmo que legitimar essa desumanização? Por que então o reclamar que se perderam os ditos "valores morais" em Moçambique, se defendemos aquilo que o professor Mário Viegas, da UP, tem chamado da "moral da nova época" em Moçambique? A tua tese não seria uma legitimação da "nova moral"que se instalou no país? Essa moral possibilita o reconhecimento da dignidade humana?
Fico por aqui, esperando que tenhas compreendido a minha posição em relação às ideias e não à tua pessoa.
Abraços

António Cipriano

Anónimo disse...

Caros, o estômago influencia-nos em todas as decisões, sejam elas econômicas ou morais (mesmo que não reduza a última à epifenômenom da primeira). Nisto, somos animais, bichos mesmo. A moralidade, a confiança e o respeito ao semelhante, ou a falta deles, emergem das relações sociais, apesar de serem, no âmbito da família, basicamente inatos. Ou seja, para extendermos o que sentimos por nossos familiares (nossos genes, que temos interesse em espalhar) aos demais humanos, dependemos de um frágil arranjo social. O que hoje se chama de capital social é de difícil emergência e manutenção.
O mercado mesmo depende muito de normas morais para funcionar bem, principalmente o mercado extenso das sociedades modernas. Aqui, recomendo o clássico de Karl Polanyi, A grande transformação. Claro, sociedades extensas como a nossa possuem uma estrutura moral diferente da moral das pequenas comunidades, e de estruturas diferentes para garanti-la (em regra, o Estado e suas ramificações). Com certeza as transformações políticas e económicas pelas quais Moçambique passou nos 90, além da guerra, abalaram velhas instituições que asseguravam a moralidade, principalmente os líderes políticos.
E não categorizei o homem como saqueador, mas como potencial saqueador. Todos somos potenciais saqueadores, e as condições influenciam se transformaremos esta potência em ato.
E, Cipriano, explicar não é justificar. A ciência e a moral trabalham em dimensões separadas.
Abraço,

Anónimo disse...

Jonas
Podemos entrar num infindável debate, porém, penso que a rotura epistemológica que você propõe não se sustenta. ExplicaçãoXJustificação e CiênciaXMoral. A não ser que apenas considerese a ciência sob ponto de vista positivista (Veja grifei Moral com "M", no sentido de Filosofia Moral, para a diferenciar de moral "m" como e, como tal, ethos, objeto da primeira.

Justificamos explicando e explicamos justificando. Não há como separar essas duas dimensões epistemológicas a não ser dentro da pretensa objetividade do positivismo.

O Estado moderno já há muito deixou de ser Ético-político dos antigos ou simplesmente o Estado Ético pretendido por Hegel. Ele, no âmbito da inversão da ordem dos saberes, passou a ser um Estado Técnico regido pela racionalidade instrumental e pela filosofia da eficácia.

Repito: a dignidade humana não pode ser negociada na bolsa de valores do relativismo que busca nos convencer como sendo o melhor caminho. Não podemos "explicar" certos atos com base no nosso ser potencial à desumanidade (saqueadodres). Pelo menos não foi isso que nos ensinaram os antigos considerados de supersticiosos por um certo discurso que nao admitia a dualidade de poderes e também pela tradição cristã que se faz presente em Moçambique.

Abraços

Anónimo disse...

Prezado Cipriano, gosto de debates, e podemos continuar nossa conversa.
A diferenciação que proponho não é, obviamente, minha, mas faz parte da tradição filosófica ocidental. Não gosto muito de trocadilhos, e creio que não justificamos nada ao explicarmos.fenômenos cientificamente. Se digo que negros são mais dotados fisicamente para a prática do atletismo (uma hipótese testável cientificamente, ao menos em tese), não estou justificando nenhuma atitude em relação aos negros. Para alguns, tal fato implicará tratamento diferenciado para os negros. Para outros, pelo contrário, implicará que devemos focar nos brancos, para que tenhamos igualdade de oportunidades. Claro, fatos científicos informam decisões morais (pelo menos, para as correntes mais sensatas da filosofia moral), mas não as determinam. Fabricar uma arma não implica aceitar o genocídio, para exagerar no exemplo. Creio que tu estás muito influenciado pelos apocalípticos da Escola de Frankfurt. Ao menos, é o que me parece. Recomenderaria, no caso, abandonar o Adorno, aproveitar um pouco do Benjamin, e seguir para o Habermas e Honneth. Claro, se quiseres ficar com a turma de Frankfurt, o que eu, desde já, não recomendaria. O apocalipse não chegou, ao menos não na linha adorniana.
E não percebi muito bem teu último parágrafo.
Abraço,

Anónimo disse...

Jonas
Já que concordas com o debate, penso que podemos continuar.

Desde já esclarecer-lhe que não se trata de trocadilhos. O que fiz foi apenas a paráfrase de Ricouer em sua tentativa de mostrar que não existe uma diferença entre a explicação das ciências naturais e a compreensão das ciências humanas. Ou seja, fazemos as duas coisas ao mesmo tempo.

Ao afirmares que a ciência e a moral estão em campos diferentes, olha, deixou-me assustado: parece que conferias à moral um estatuto não científico à Moral (disciplina filosófica). Ao menos que a nossa concepção de ciência seja diferente, é o que vejo.

Já que sugeres Habermas e também recusas que afirmar não implica necessariamente em justificar, penso que,com base em Habermas, fica dificil responder à pergunta que ele levanta, em sua teoria de açao comunicativa, sobre a validade de um ato de fala com pretensão à verdade. Dizendo de outro modo, a validade do conteúdo do enunciado de um proferimento depende de se ele reproduz uma experiência ou com um fato real. E em conseqüência, para que o proferimento seja bem sucedido, ele tem de satisfazer à exigência da verdade da proposição para os participantes.
O reconhecimento das exigências de validez tem, por sua vez, um caráter cognitivo capaz de verificação, pois elas podem ser fundamentadas ou justificadas. Assim, se se trata de uma “afirmação”, o falante, junto com o sentido da relação intersubjetiva que assume com o ouvinte, no ato de fala constatativo, contrai a obrigação de fundamentação da proposição, po-dendo recorrer, em caso de necessidade, às fontes de experiência, das quais ele tira a certeza de que o enunciado é verdadeiro.

Então Jonas, não basta apenas fazer uma afirmação. A validade da tua afirmação vai depender da fundamentação da mesma. Ademais, em toda a afirmação, fala-se a partir de um certo lugar e a defesa de uma posição político-ideológica. Essa pretensa neutralidade em relação às consequências de sua fala, não se sustenta.

Parece-me que também, com relação aos fatos científicos versus decisões morais, também o inverso é verdadeiro. Não existem fatos científicos independente de quem os produziu movido por certas ideias. Assim sendo, as ideias morais também influciam a produção dos fatos científicos.

A Escola de Frankfurt: é de fato um apocalípse não realizado? Olhando bem para Moçambique, não teria se instalado a babárie no país? Entendo o teu ponto de vista: Lima Vaz disse uma vez que se o mal tivesse superado o bem, a convivência entre os humanos seria díficil. Mas não é menos verdade que em alguns contextos ela se tornou um caos.

Abraços