22 junho 2006

A grande aventura: 18 horas em 522 quilómetros de comboio

Parte-se de Maputo às 13 horas de cada quarta-feira, se não houver imprevisto, e chega-se no dia seguinte a Chicualacuala às 5 ou 6 horas da manhã, se não ouver atraso. São 522 quilómetros de comboio durante cerca de 18 horas, à razão de 29 quilómetros por hora, com mais de 50 paragens. O percurso inverso faz-se na quinta-feira.
O comboio tem dez carruagens, das quais oito são para a terceira classe.
A maior parte dos passageiros viaja na terceira classe, apinhada, três passageiros em cada banco. É como viajar num chapa.
São todas as semanas milhares de pessoas, especialmente mamanas, que fazem o percurso de ida-e-volta para Chicualalacuala. Para lá levam produtos alimentares e de limpeza, vestuário, etc., que trocam em Chicualacuala por gado, carvão, milho e carne, para posterior revenda em Maputo. Cada paragem é motivo para a formação rápida de uma feira ambulante.
Entrar ou sair do comboio é uma odisseia. Estar lá dentro é bem pior. Segundo Raul Senda, o jornalista que fez a excelente reportagem da viagem, não ná sanitários e viaja-se entre roubo, bebedeira, desconforto e cheiro nauseabundo.
Este é um tipo de trabalho que, infelizmente, os nossos sociólogos não fazem.
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Semanário "Zambeze" de hoje, pp.16-17.

1 comentário:

Anónimo disse...

O professor Carlos Serra chama a atenção para uma corrente da sociologia a que Maffesoli designou de sociologia vagabunda. Aquela que preconiza que o sociólogo saia do seu gabinete, das correntes mais estatísticas e objectivas, dos números, e desça à praça pública para sentir o pulsar da sociedade. Quanto a mim não me parece a corrente legítima, talvez sim a mais romântica (no sentido em que implica sentimentos, agradáveis ou não) e, sem dúvida, pelo menos para mim, a mais apetecível. Como o Patrício Langa julgo que estamos perante correntes complementares. No entanto parece-me que há algo mais no texto de Carlos Serra. Carlos Serra chama a atenção para um país onde, quem não tem jipe e tem que utilizar transportes públicos, demora 18 horas para fazer pouco mais de 500 km. O texto chama também a atenção para um país de classes, de primeira (que conhecemos), de segunda e de terceira (que alguns preferem não conhecer), onde na terceira se aplica o conceito nauseabunda. Poderia ser primeira, segunda e terceira casta, mas optou-se pelo termo classe, mais europeu. O texto induz também uma indisponibilidade que existe no país para o contacto entre os moçambicanos, para a criação de diversas cidadanias dentro do mesmo país. Trata-se de uma tendência de alienação por parte das elites do país em relação às profundas desigualdades sociais que se vivem.
O texto chama à atenção da riqueza do contacto intercultural / inter-classista, da possibilidade de trocarmos cultura, ideias e impressões uns com os outros, de sermos nós, sendo outros. O texto faz-nos pensar que os receios que temos hoje para ir de Maputo de comboio para Xiculacuála, serão os mesmos que teria o português no período colonial para deixar a cidade branca de cimento e mergulhar nos bairros periféricos da cidade.
Não se trata da eliminação da visão burguesa da realidade. Trata-se sim de dizer que há mais vida para além da visão burguesa da realidade. Trata-se de lembrar que, se muitos moçambicanos vivem hoje na Sommershield, no Caracol e na Juliyus Neyrere, é porque noutros tempos outros moçambicanos chamaram a atenção para essa questão. Julgo que há aqui no fundo uma mensagem de cidadania, de estar atento a questões relacionadas com a desigualdade, com a solidariedade, com a partilha. O que não significa, saliento, que os sociólogos que não vão de comboio em 3º classe para Chicualacuala, porque preferem conhecer os estilos de vida na Sommershield, não têm necessariamente um sentido cívico.
Trata-se de conferir voz a quem não nasceu num berço da Sommershield e não teve com certeza as mesmas oportunidades para estudar, para viajar, para consumir… Quanto a mim a questão extravasa o exercício profissional de um sociólogo. O sociólogo não tem de facto que ser necessariamente um político que procura mudar o Mundo. Trata-se mais do que isso de uma questão humana, se calhar existencial, de se perder o medo pela descoberta e de procurar saber quem vive e como vive neste Mundo. Para além de mim.