Já várias vezes, ao longo deste diário, tenho tentado mostrar, certamente de forma canhestra, que o linear em sociedade é bem menos linear do que pensamos.
Tudo aquilo com o que socialmente nos confrontamos apresenta, afinal, a estrutura dos problemas com que se confrontam os arqueólogos.
Numa estação estratificada, que por vezes levou anos a encontrar, os arqueólogos observam conjuntos de diferentes tipos que se seguem uns aos outros, conjuntos culturais diferentes, uma sequência cultural. Eles recolhem e estudam artefactos, por outras palavras, coisas feitas ou desfeitas por uma deliberada acção humana. O trabalho dos arqueólogos consiste, exactamente, em encontrar a chave cognitiva que permite abrir e compreender uma dada organização social remota, desaparecida.
O fundamental para mim aí consiste em que o arqueólogo trabalha não apenas com testemunhos da acção humana mas, também, com diferentes camadas de significados. Esses testemunhos e esses significados não são lineares, eles não estão hoje vivos, estão submersos, a lógica original na qual estiveram situados perdeu-se para sempre. O problema, então, consiste em “cavar” com profundidade nesses testemunhos e nesses significados.
Quais são os artefactos em sociologia? São actos, palavras, movimentos, lógicas materiais e simbólicas, coisas actuais, à nossa frente, dentro de nós. Tal como os arqueólogos, temos de cavar sempre mais fundo para encontrar os significados de tudo isso.
É para nós vital ter em conta que nenhum dos nossos artefactos é puro em si: palavras, actos, movimentos, lógicas corporais, regras, etiquetas, etc., não têm aquela estrutura inofensiva, digamos assim, dos artefactos arqueológicos, parados, à mão de semear.
No nosso caso, todos os nossos artefactos têm de ser avaliados e libertados da pátina, de tudo aquilo que de alguma forma “oxidou” o gesto, o texto, o significado original.
A pátina é completamente social e constituída por todo um conjunto de relações sociais assimétricas que foram plasmadas em tudo o que fazemos, dizemos, mexemos, etc. Por isso, nada do que vemos ou ouvimos é linear no sentido de que sempre as coisas foram assim ou inocentemente assim.
O fundamental na sociologia consiste em não tomar o social pelo seu valor facial. Importa, a todo o momento, dessocializar o social para o ressocializar melhor. O sociólogo não constrói actos sociais, mas “construídos” (digamos assim) sociais.
O sociólogo deve ser, também, profundamente freudiano e saber encontrar a profundidade, digamos que o inconsciente (deliberado ou não) das lógicas sociais que configuram os artefactos com que lida. Atrás dos actos, sejam eles quais forem, existe todo um espólio de arquétipos, de inconscientes colectivos e pessoais, toda a complexidade da anima (no sentido de C. Jung) que importa exumar, trazer à superfície.
O que nos surge nas entrevistas, nas respostas aos questionários, na observação quotidiana, tem de ser profundamente reorganizado, reavaliado, reaprofundado, numa escavação em profundidade rigorosa, num exercício de decifração do evidente, do natural, do sempre-foi-assim.
Tomai o social por um palimpsesto: que “escritas” sociais aí estavam antes do “texto” que agora “leis”?
Mas, atenção, antes de executarem esse trabalho, comecem por vós, escavem primeiro em vós, escavem os vossos pressupostos, os vossos arquétipos.
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(1) Procurei assim responder ao Patrício Langa.
(2) O meu obrigado à Resaly por me ter acompanhado neste texto.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
1 comentário:
DO estudo do Nada: Debatendo o objecto de estudo da sociologia em pleno século XXI.
Por Patrício Langa
I. Dos alentos e desalentos da sociologia em Moçambique
Existe algo de fascinante nesta interpelação que faço, modestamente, aos escritos de Serra no seu Blog. Descubro-me, espontânea e espantosamente, discutindo o objecto de estudo da sociologia. Com o mesmo fervor com que o fizera nos primórdios da minha socialização sociológica, na actual sepultura da UFICS.
Aliás, descubro que – contrariamente a ilusão que tivera no início da faculdade de que sairia de lá com uma definição da disciplina que estudara – passados anos continuei incessantemente debatendo o objecto de estudo desta pretensa ciência. Enfim, descubro uma fonte inesgotável – infelizmente pouco explorada por nós – de aprendizagem! O professor Serra! É uma pena, dispormos de um professor, mestre, e não sabermos usufruir, explorá-lo. No bom sentido que estas palavras, ainda, preservam.
Há um misto de alento e de desalento em todo este percurso. O alento vem desta característica, peculiar, da sociologia. Ninguém mais, que eu saiba, a caracterizou no aspecto a que me quero referir melhor do que o fizera Pierre Bourdieu, magnifico, sociólogo Francês. A sociologia é das poucas, senão a única, disciplinas que produz armas e as arremessa – com um efeito Boomerang - contra si mesma. Numa espécie de acto suicidaria, auto-destrutivo. A essa arma chamou-a, Bourdieu, de reflexividade. A sociologia produz um olhar crítico sobre a realidade social, sobre a produção de conhecimento sobre essa mesma realidade, sobre o lugar do sujeito conhecedor, sobre os instrumentos dessa mesma produção e depois dá-se ao despeito, através desse mesmo espírito crítico, num acto auto-reflexivo, de arremessar esses mesmos instrumentos contra si própria. É, portanto, uma disciplina, indisciplinada, e por isso, em crise permanente. Uma crise da sua própria existência entanto que ciência. Uma crise para definição do seu objecto e campos de estudo. Não conheço nenhuma outra disciplina com estas características. Jamais ouvira falar de uma matemática da matemática; uma física da física; uma química da química. E para sair das ditas ciências ‘duras’ - que na realidade são tão moles como tem demonstrando os últimos desenvolvimentos da Física Prigoginiana do ‘Fim das Certezas’ - para as nossas companheiras, não saberia dizer se uma história da história, uma antropologia da antropologia, teriam o mesmo poder auto-crítico, auto destrutivo que tem a sociologia da sociologia.
Penso que é por contas disto que, ainda hoje, passados pouco mais de três séculos desde que se, institucionalmente, consagrou - pelo esforço de notáveis pensadores (reformadores sociais como colocaria Serra) Comte, Durkheim, Weber e por fora – continuamos insatisfeitos com qualquer definição definitiva do campo e objecto de estudo desta disciplina. Esta indefinição, espantosa, este poder destrutivo, construtivo e constitutivo– por que afinal ela não deixa de se consagrar e renovar – é simplesmente fascinante!
Há, porém, um outro lado menos animador. Por essas mesmas características acrescida ainda da particularidade de ser uma ciência, basicamente, discursiva. A sociologia mostrasse vulnerável a charlatães por usar, partilhar e dispor como seu meio e instrumento de trabalho, da linguagem com o mas comum dos indivíduos. A hermenêutica sociológica é, sempre, uma dupla hermenêutica, como sugerira Giddens, talvez o maior, sociólogo britânico da actualidade. Os sociólogos, sempre, laboram sobre interpretações que os indivíduos já alguma vez fizeram dos fenómenos sociais.
O que distingue a interpretação do sociólogo da dos leigos é, portanto, a atitude científica, laboriosa, incessante, da busca do conhecimento. Sociologia é muito trabalho, muita leitura, muita dúvida, muito solidão, muita curiosidade, acima de tudo muita imaginação. Não há credencial, alguma, que substitui isto.
Alguns dos nossos condiscípulos, ostentando dos departamentos por onde se (des)informaram, são os maiores produtores de um senso comum erudito. Este último mas perigoso, que a interpretação dos leigos, por que se faz passar por ‘verdade ciêntifica’ acobertada pela legitimidade que os títulos académicos lhes conferem para dizer coisas sobre o social. Em Moçambique, a classe dos charlatães parece ser uma espécie que tende a predominar. Assistais aos programas televisivos das nossas estações caseiras. Lá se pode ver alguns dos que me refiro, patenteados como analistas, bem engravatados. São os nossos telesociólogos analistas de tudo, 4 x 4, imperadores da doxa (politica, económica, do desporto, da cultura, de tudo) a desferir golpes, com as suas certezas, a esta disciplina. Exercem sem mínimo constrangimento uma ‘sociologia espontânea’ embrulhada em senso comum e baptizada com a sacrílega palavra: Doutor X! Mesmo nas acções bem intencionados e vitais para a vida da disciplina – mesas-redondas, colóquios, simpósios etc – por suscitarem debate, impera a força do título “Doutor” e do charlatanismo. Enfim, este é, então, o lado do desalento.
II. A visão arqueológica da sociologia: Da estrutura dos problemas arqueológicos a arqueologia dos problemas sociológicos.
“Tudo aquilo com que socialmente nos confrontamos apresenta, afinal, a estrutura dos problemas com que se confrontam os sociólogos” (Serra, 26 Junho 2006, in: Diário de um Sociólogo).
Acho frutífera e imaginativa esta analogia da Sociologia com a Arqueologia. Responde, portanto, em parte, as inquietações que levantei com relação a uma das entradas no blog intitulada “sempre mais fundamente” a propósito da premissa que se segue abaixo.
“Sabes, sociólogo, neste social em que vives não é o que vês que é fundamental, mas o que não vês ou não podes ver ou não queres ver “(Serra,25 Junho 2006, in: Diário de um sociólogo).
Na generalidade, penso, estou de acordo com a figura comparativa. Oferece-nos uma visão arqueológica da sociologia. A sociologia faria com o social da vida, e por que não a vida do social, aquilo que a arqueologia faz com o material da vida, através da vida do material. Escavacá-lo! A palavra arqueologia está envolta num alento de suspense e de aventura, exerce um deslumbramento nos homens porque através de cacos de cerâmica, de restos de ossos e até do lixo faz emergir respostas sobre os tempos mais remotos da humanidade. Enquanto os sociólogos dispõe dos actos, palavras, movimentos, lógicas materiais e simbólicas, coisas actuais, à nossa frente, dentro de nós, dos silêncios, das ausências e presenças, das omissões, enfim, do NADA!
No que se segue interessa-me explorar essa comparação com a arqueologia retomando alguns aspectos de um seminário de investigação organizado e orientado por Serra, no Centro de Estudos Africanos, em 2003, se a memória não me trai, dirigido a docentes e/ou investigadores juniores.
Retive desse evento e de memória algumas passagens da intervenção do sociólogo Elísio Macamo. Este último convidado por Serra para expor, a sua visão de sociologia, aos participantes. E nesse ensejo pensar, igualmente, no que podem ser os artefactos da sociologia.
Como lhe é característico, E.M, iniciou seu discurso com uma história. Por sinal, para dela extrair o essencial do seu argumento. Por limitações de memória limitar-me-ei ao essencial da história.
Interpelado pela sua esposa sobre o que estaria a pensar – sentando em sua sala, uma vez que o notara compenetrado em seus pensamentos, – respondeu:
- NADA!
O nada, na óptica de E.M, afinal podiam ser muitas coisas. Podia ser que estivesse a pensar na melhor amiga da sua esposa, assim como viera ao mundo, nua. O nada lhe conviria, portanto, para não se mostrar diáfano e profano. Poderia estar a imaginar o que cada um pode e estará a imaginar, neste momento, ao ler estas linhas.
Enfim, esse conjunto de coisas que preencheriam esse vazio, aparentemente, ocupado pelo nada daria a matéria-prima para o labor do sociólogo. O nada é, portanto, a amalgama desses significados e possibilidades de significado, actos, falas, silêncios, gestos, ruídos etc que temos que produzir para dar sentido a nossa própria existência e as instituições que daí constituímos. Produzimos o social, com nadas! No caso, do nosso interlocutor, o casamento, a família, a esposa, o marido etc.
Penso que, a analogia com a arqueologia ilumina ainda mais esta visão da sociologia como o estudo do nada. O que se segue é, portanto, um exercício arqueológico “cavar” esse nada a procura dos seus significados. E segundo entendi da resposta de Serra as minhas inquietações, esses significados não são lineares. Existe toda uma complexidade da existência que os informa.
A questão que se coloca, então, é da nossa atitude em interrogar esses significados. É esse exercício incansável e infindável de derrotar o “sempre – foi – assim”! É a atitude que distingue o leigo do sociólogo, do cientista se quiserdes.
E contrariando, a sugestão de Serra, emprestada do epistemológico Gaston Bachelard, segundo a qual o acto primordial da atitude científica é o “Não” E.M sugeria o: hum! Enquanto o não Bachelardiano já parece alvitrar uma resposta do tipo “Eureka”, o hum Macamiano sugere a pergunta de espanto: O quê? Penso, no entanto, que se essa diferença se deve as subtilezas das diferenças culturais e de expressividade entre o ‘Xangane’ e o Francês mas que às duas expressões ‘não’ e ‘hum’ signifiquem... espanto!
Obrigado Professor pela linda lição de sociologia!
Patrício Langa
PS: Este texto é a minha homenagem a Carlos Serra pelo incomensurável contributo para a sociologia, pelo seu incasável ‘Combate pela Mentalidade Sociológica em Moçambique!
A luta continua, professor
Patricio Langa
Cape Town
26/06/06
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