Lenda urbana, boato ou rumor é "um relato anónimo, breve, com múltiplas variantes, de conteúdo surpreendente, contado como verdadeiro e recente num meio social do qual exprime de maneira simbólica os medos e as aspirações" (in Renard, Jean-Bruno, Rumeurs et légendes urbaines. Paris: PUF, 2006, 3.e éd., p. 6).
Mais um pouco da série.
Mais um pouco da série.
Se alguém disser que dois e dois são quatro, acharemos isso normal. Mas se alguém disser que dois e dois são cinco, acharemos isso anormal. As dificuldades de compreensão agravam-se quando é colectiva a crença de que dois e dois são cinco. Seremos tentados a pensar que existem pessoas que usam regras de inferência causal diferentes das nossas. Em caso extremo, defenderemos que semelhante crença é ilógica ou pré-lógica. Ou que é obscurantista, produto do atraso social.
Sem dúvida que é sempre muito difícil entendermos a expressão do pensamento simbólico, especialmente quando esse pensamento nasce no interior da situações sociais de crise, situações cujos medos e cujos anseios reais aparecem traduzidos em rumores, em boatos, em lendas.
O problema de compreensão torna-se dramático quando histórias falsas no seu sentido real são sentidas como verdadeiras no seu sentido figurado. Ou, como aqui tenho escrito, quando histórias objectivamente falsas são, porém, sentidas como subjectivamente verdadeiras. É como se estivessemos confrontados com uma metalinguagem do vivido social cujas regras nos escapassem.
Em 2006, residentes dos bairro T3 na Matola chamaram curandeiros para descobrirem os assassinos que aterrorizavam o bairro, face à suposta ineficiência da polícia. Residentes e curandeiros apontaram o dedo acusador aos estrangeiros do Zimbabwe e dos Grandes Lagos residente no bairro, capazes, segundo eles, de se transformarem em gatos, ratos e cobras para violarem mulheres na calada da noite e matarem cidadãos com o fito de lhes extraírem o sangue para operações mágicas.
Desde pelo menos 1998 que milhares de pessoas em Nampula, por exemplo, acreditam que alguém as quer matar através do cloro.
Este ano tomou curso generalizado na Zambézia a velha crença de que alguém amarrou a chuva no céu, fazendo com que os pobres sofram e morram enquantro os ricos e os poderosos vivem bem.
Nos três casos - e outros poderiam ser invocados -, estamos perante situações extremas de inquietação social, motivadas por fenómenos considerados estranhos, horríveis, anormais, anómicos, destruturadores da vida social, fenómenos sentido como expoliando as pessoas do seu ser, da sua vida, do seu equilíbrio (os fenómenos dos chineses papões de Inhambane - confira aqui e aqui - e do chupa-sangue na Zambézia são, a este nível, exemplares). Situações nas quais nascem e irradiam explicações de um certo tipo, as quais como que vão buscar ao humús histórico de certas crenças tradicionais o fertilizante homologador da sua verosimilhança.
(continua)
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