07 abril 2009

Ionge: populares acusam autoridades de prender a chuva no céu (12)

Mais um pouco da série.
As duas crenças aqui em causa - a da chuva intencionalmente amarrada no céu e da cólera intencionalmente introduzida através do cloro - não existem em si, em estado puro, ideal, fora de realidades sociais. Na verdade, elas são a tradução de realidades sociais concretas, um certo tipo de linguagem para expressar algo que perturba seriamente, algo de socialmente muito grave, algo que as comunidades sentem de forma muito aguda e dolorosa.
O problema, então, consiste em ir para além do apodo de barbarismo e em encontrar as regras dessa linguagem, a sua gramática.
Em 2002, por exemplo, após ter estudado a crença da cólera intencionalmente introduzida pelo cloro em Nampula, escrevi o seguinte*:
"Na verdade, a crença possui a racionalidade e a robustez simbólicas de uma inferência causal lógica que, por um lado, está enraizada num campo plural de privações (com uma concentração singular e intensiva de fenómenos inquietantes que se perfilam com o apodrecimento da mandioca, passam pelo fecho das fábricas e desaguam no peixe que é dito rarear) e, por outro, paga uma grossa factura à ausência de diálogo com os funcionários administrativos, ausência de diálogo que tem na carência de campanhas de esclarecimento e de prevenção das epidemias um exemplo paradigmático. A crença é produto de uma crise, é o seu veículo de enunciação, o seu combustível, o seu êmbolo, a sua gramática. Fermenta no campo da privação, com a memória encostada ao término da guerra em 1992, o corpo em meio a uma concentração excessiva de fenómenos perturbadores e o futuro perfilando-se, duro e sem saída. Ela conta uma história falsa para sublinhar um problema verdadeiro."
E apontei quatro fenómenos vitais:
"1. Água em mau estado ou rareando, mandioca generalizadamente apodrecida, dificuldades de escoamento de produtos agrícolas e de rendimento (especialmente algodão), encerramento de fábricas, ausência de emprego, múltiplas pragas agrícolas, caprinos dizimados por uma estranha doença, rarefacção aparente do pescado;
2. Apetência popular de escolas de alvenaria, de serviços de saúde dignos e sem suborno e de crédito;
3. Pouca ou nula presença das autoridades administrativas no terreno em contacto permanente com as populações;
4. Ausência de campanhas de prevenção de doenças epidémicas."
A propósito da crença na chuva intencionalmente presa no céu na Zambézia, creio ser fundamental recordar um extracto de um trabalho publicado pelo semanário "Domingo" a 8 de Março, trabalho que situa a crença num conjunto de problemas sociais graves, a saber:
"De ressalvar que as reservas alimentares estão efectivamente a diminuir em grande parte das zonas atingidas pela onda de saques e mortes, problema que poderá agudizar-se durante os próximos dois meses. A região onde foram reportados tumultos por falta de chuvas tem a tradição de produzir arroz e coco. O coco debate-se com o problema do amarelecimento letal. Os coqueiros estão a morrer. As pessoas no momento em que as reservas alimentares se esgotavam recorriam ao coco. Levavam o coco, vendiam e compravam farinha ou peixe. Não havia nenhum problema, explica a administradora Sebastiana (de Nicoadala, C.S.) (...) Essa falta de alimentação não é de uma casa só. Se esses todos reclamam e vem alguém dizer olha vocês não estão a ver que quem está a comer é o fulano, o tal que esconde a chuva, as pessoas são facilmente enganadas, porque costuma-se dizer onde há fome todos ralham e ninguém tem razão, esclarece a administradora." (p. 19)."
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*Serra, Carlos, Cólera e catarse/Infra-estruturas sociais de um mito nas zonas costeiras de Nampula (1998/2002). Maputo: Imprensa Universitária, 2003, pp. 86/87.
(continua)

1 comentário:

umBhalane disse...

Njala ingafika ubale unamala.