22 novembro 2012

Produção de humilhação

Observei ontem, demoradamente, algures na cidade de Maputo, o processo generalizado de carregamento, andamento e descarregamento de pessoas nos chapas do tipo carrinha de caixa aberta. Doeu e dói ver, doeu e dói imaginar o sofrimento dos utentes transformados em gado descartável. Dói duplamente: por intuir que, remetidas à impotência contínua, as pessoas parecem conformar-se com este horrível processo de humilhação; por saber que semelhante processo tem curso sem impedimento estatal. Um dia pode acontecer que as pessoas tragam para fora, violenta e catárquica, a raiva tanto tempo contida. Certamente já  a trouxeram em 2008, 2010 e este ano, por essa e por outras razões. E poderá voltar a acontecer. Antes e depois, são os tempos dos augustos arcontes da terra, dos pontífices da moral impoluta em suas entusiásticas, punitivas e públicas preleções morais - abaixo os vândalos!, vociferam -, condenando com veemência os excessos de múltiplas situações degradantes que não vivem, nem viverão.

4 comentários:

Salvador Langa disse...

Professor, os donos, eles não se vão preocupar.

ricardo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ricardo disse...

Faço minhas as vossas palavras, sr. Professor.

E lembro-me, inclusive, de um filme de Klaus Kinski, baseado num argumento de Kafka, onde se teorizava as ervilhas e os costumes. Narrava o actor que se alguém fosse alimentado permanentemente de ervilhas, começaria, sem o pressentir a adquirir comportamentos de asno, e a eles se habituria.

Parece que andam ler muito Kafka alí, junto da estátua de Samora Machel...

nachingweya disse...

Este post coincide com:
-referência ao novo carro da Sra Presidente da AR que custa USD 500 000 [in Jornal Savana de amanhã vendido hoje]
-Discurso do sr Ministro da Educação na AR falando do défice de USD 17 000 000 para se colocarem carteiras nas escolas [sessão de ontem]
-Visita do vice ministro chinês talvez trazendo o nosso cheque de USD 600 000 000 já garantidos para a nossa ponte e estrada para a praia.
E é neste panorama de ordenação das nossas prioridades que também me parece indignar mais o transporte de pessoas em carrinhas de caixa aberta do que ver meus semelhantes a empurrar um tchova (carrinha de tracção humana(?)normalmente de caixa aberta)
Se alguem alimentado permanentemente de ervilhas começa, sem o pressentir, a adquirir comportamentos de asno o que acontecerá a esse mesmo ente se durante 10,12 horas por dia exercer as funções normalmente reservadas para seres de outra natureza?