03 junho 2014

O perigo dos novos Hitlers

Com a ideia-título em epígrafe na mente, pedi ao antropólogo português Paulo Granjo que escrevesse um pouco sobre o avanço da extrema-direita na Europa. Eis o que escreveu, com o título "O espectro da extrema-direita xenófoba":
Anda um espectro pela Europa.
Já não o do comunismo, esperançosamente anunciado por Marx e Engels no seu Manifesto, mas da ascensão de uma extrema-direita chauvinista, xenófoba e racista.
Os resultados das recentes eleições para o Parlamento Europeu são, a esse título, assustadores. Os partidos de extrema-direita ficaram em primeiro lugar, com mais de 25% dos votos, na França, na Grã-Bretanha e na Dinamarca, tendo subido muito de votação na Áustria e na Grécia. Boas notícias, só mesmo as vindas da Holanda e da Bélgica, onde os partidos xenófobos sofreram fortes quebras, quando esperavam vencer – isto, claro está, para além daquelas vindas dos muitos países onde tais forças políticas continuam a ser marginais e residuais.
Os paralelos históricos - com a crise dos anos 30 do século passado e com a ascensão do nazismo alemão e dos vários fascismos europeus - tornam-se tentadores, mas não menos ilusórios.
Apesar da construção de bodes-expiatórios (de que o Holocausto antissemita e anti-cigano foi a mais trágica, embora não única, expressão), o apelo de então à ordem e estabilidade, sob a asa de um “estado forte” que acabaria com o desemprego massivo e despertaria a força da “raça” nacional, só tem paralelos, nos dias de hoje, naquilo que diz respeito ao nacionalismo, à xenofobia e ao conservadorismo. Também nesses aspetos, creio, com conteúdos razoavelmente diferentes.
O nacionalismo destes novos extremistas é sobretudo apontado à União Europeia regulamentadora e burocrática, explorando problemas realmente existentes e graves, com efeitos devastadores nalguns países. A hiper-regulamentação da vida quotidiana, a acelerada perda de soberania capacidade de decisão nacionais, em proveito de uma estrutura “estrangeira” e não-democrática, a incapacidade desta em responder de forma eficaz à crise – sem questionar que os pressupostos económicos e políticos das respostas que a EU teve, e que agravaram a crise, são exatamente os mesmos que partilham os novos arautos do conservadorismo xenófobo.
A xenofobia, por seu lado, já não tem por objeto velhos inimigos históricos nem históricos bodes-expiatórios “internos”, mas os imigrantes – de África, da Ásia ou de países europeus mais pobres e tidos como culturalmente diferentes. Neste campo, e face à incompetência técnica e política de governos que repetem contraproducentes receitas neo-liberais, revivificam-se velhos lugares-comuns dos países mais ricos: a suposta responsabilidade dos marginalizados imigrantes na situação de desemprego e diminuição de rendimentos dos “nacionais”, a que se vêm juntar desagrados por práticas culturais e religiosas, facilmente manipuláveis como abastardamentos da “verdadeira” e “tradicional” identidade e forma de vida da “nação”.
Em grande medida, o terreno fértil quer para esta responsabilização do “outro” (mesmo que filho ou neto de nascidos em território nacional) pelos nossos infortúnios, quer para a exigência de fronteiras blindadas e de limpezas étnicas por repatriamento, deve tanto às dificuldades de vida exponenciadas pela crise quanto à falência dos modelos de integração social praticados na Europa.
Conforme já salientava há mais de uma década o antropólogo Miguel Vale de Almeida, ambos os modelos – o assimilacionismo “à francesa” e o “multiculturalismo “à holandesa” – estão baseados numa visão essencialista, imutável, internamente homogénea e externamente exclusiva das “culturas” e provocam efeitos perversos contraproducentes. Poderíamos explicitar que, combinados com a discriminação maioritariamente vivida pelos imigrantes, estimulam até fenómenos de resistência cultural essencialista, muitas vezes contrários às expectativas e interesses dos seus atores, mas aos quais estes não podem ou não querem eximir-se.
O assimilacionismo constitui uma violência ao exigir, como condição para a integração no todo nacional, o abandono em bloco de uma cultura vista como monolítica e a adoção em bloco de uma outra, aquela que é atribuída ao país de acolhimento. Com maior ou menor aceitação dessas regras de jogo, contudo, a evidência quotidianamente vivida da discriminação convida, afinal, ao reforço e exagero dos traços culturais dessa diferença negada (como afirmação identitária e de protesto), com isso reforçando a exclusão e as desculpas para a praticar.
Por seu lado, o multiculturalismo visto como uma coexistência compartimentada de culturas diferentes e separadas (a suposta base de legitimação do apartheid, afinal), embora baseado numa bem-intencionada visão do direito à diferença, incentiva a segregação espacial e relacional em comunidades separadas. Uma segregação que facilita as capacidades de controlo social por parte de aspirantes a líderes comunitários e religiosos e que, associada a uma também real discriminação quotidiana, igualmente convida a uma reprodução cultural em circuito interno, exageradora, desadaptada do contexto mais vasto onde essas comunidades se inserem e, também ela, conducente a uma maior segregação e discriminação.
Em ambos os casos, então, aquilo que seria normal e desejável num contexto de contínuo contacto intercultural (o desenvolvimento, em cada indivíduo imigrante ou indígena, de uma constelação mutável de referências culturais que resulta, de forma ativa e passiva, da sua interação com todos os outros – ou, como lhe chama Vale de Almeida, de uma “cidadania cosmopolita”) é muito dificultado, com isso arrastando uma artificial e enquistada diferenciação, facilitadora da criação de bodes expiatórios.
No entanto, se a culpa da crise económica e do seu agravamento é das práticas neoliberais e das políticas prosseguidas pelos políticos instalados, e se a culpa do ascenso da extrema-direita xenófoba é tanto dos reais problemas das políticas comunitárias e nacionais quanto da mais primária manipulação dos sentimentos de insegurança e incerteza dos cidadãos precarizados e empobrecidos por essa crise, a esquerda europeia não está isenta de responsabilidades nesse ascenso.
Não o está, antes de mais e nos seus sectores mais centristas, pela integração que foi fazendo, nas últimas décadas, de princípios neoliberais e de práticas governativas que lhes correspondem. Com isso se tornou no passado imediato uma parte do problema, criando uma cumplicidade com as mais contraproducentes e destruidoras lógicas austeritárias de resposta à crise, limitando-se a críticas de grau quanto aos diagnósticos e soluções, e descredibilizando-se - por esse real vazio de diferença – enquanto alternativa efetiva.
Não o está, tão-pouco e em quase todos os países, a esquerda da esquerda. Pela continuidade, mesmo em tempos de emergência social e política, do seu habitual fraturamento e pela subalternização do debate e busca de plataformas comuns à preocupação de tentar salvaguardar os interesses de implantação de cada grupo. Também, pela desistência de procurarem forçar ao diálogo a esquerda que está à sua direita, com isso, no mínimo, influenciando as suas posições e produzindo uma clarificação. Ainda, pela sua predominante incapacidade para, a partir de diagnósticos acerca da crise e das lógicas austeritárias que acertam na mouche, transmitirem esses diagnósticos e as alternativas que apontam de uma forma compreensível e credível para qualquer cidadão.
Neste quadro, não será talvez razão para grande espanto que seja em zonas de predominância histórica da esquerda que a extrema-direita xenófoba comece, com mais frequência, o seu crescimento.
Qual a solução para evitar que a extrema-direita xenófoba se transforme de um espectro num monstro bem real?
Não posso dar outra resposta se não combater todos os fatores que apontei para esse crescimento. Talvez começando, apenas por uma questão de exequibilidade e urgência, mas sem desvalorizar os restantes, por aqueles que têm um carácter político e comunicacional, a nível nacional e europeu.

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