06 março 2014

Xenofobia: construção colectiva do inimigo total (4)

"Residentes de Cullinan, Pretória, África do Sul, levantaram-se terça-feira contra cidadãos estrangeiros, depois de um logista de origem paquistanesa ter supostamente agredido uma criança, que viria mais tarde a falecer no hospital. [A agressão terá ocorrido a semana passada. Segundo fontes, a criança um menino de 10 anos terá roubado bombons na loja de um paquistanês que o agrediu depois com o taco de golfe. O menino viria a morrer esta semana no hospital.[A comunidade, revoltada, começou terça-feira a atacar as lojas de cidadãos de origem paquistanesa. A violência estender-se-ia de imediato contra outros estrangeiros, designadamente cidadãos somalis que têm bancas nas ruas." (realce a vermelho da minha autoria, CS)
Quarto e último número da série. Prometi no último número escrever um pouco sobre os "estrangeiros" socialmente construídos como "inimigo total". Vamos lá, então. Existem dois tipos de estrangeiros: nós e eles. Nenhuma sociedade é destituída de amigos e de inimigos, de próximos e de afastados, de ricos e de pobres. Toda a sociedade é, ao mesmo tempo, um processo diário e repetido de produção de confiança e de desconfiança, de internos e de externos. Por outras palavras, o estrangeiro é imanente ao social, é-nos imanente, mesmo sendo da nossa nacionalidade, da nossa etnia, da nossa igreja ou da nossa "raça". Porém, em certos momentos delicados, de grande intranquilidade social, surge um processo de transferência: o estrangeiro deixa de um dos nossos e torna-se um dos outros, sumariamente identificado pela língua que fala, pela cor da pele, pelos costumes ou, regra geral, por aquilo que se considera ser testemunho de riqueza: uma moradia, uma empresa, uma loja, um carro, um padrão de prosperidade, etc. No processo de transferência culpabilizante, o estrangeiro dos outros é transformado no inimigo total, a sua próximidade física transforma-se rapidamente na distância absoluta, intransponível, fatal. Pequenas coisas, pequenos actos, são suficientes para dar origem a uma imputação causal total, à busca desenfreada de bodes expiatórios, à transformação dos estrangeiros em culpados de todos os males, em responsáveis da pobreza, do desconforto, da tristeza, da falta de futuro ridente. Lojas e bancas costumam ser alvos preferenciais, como se, em sua proximidade, expusessem pelos produtos à venda a indicação da estranheza, da fugacidade mutante e da distância. A história é, afinal, a tragédia inseparável do claro e do escuro, do diurno e do nocturno, do lógico e do ilógico, da serenidade e do desespero.
(fim)

1 comentário:

Salvador Langa disse...

Uma triste situação num alto texto.