11 janeiro 2011

Da cólera nosológica à cólera social (2)

Mais um pouco desta série na qual procuro mostrar que o desespero perante a cólera e a morte por ela provocada é bem mais do que um fenómeno moçambicano e do que a fácil e generalizada imputação politizada a cargo de alguns sectores.
As reacções de desespero à cólera têm, na verdade, percursos mundiais. 
Assim, por exemplo, em 1832 a  doença disseminou-se rapidamente na Inglaterra, chegada de barco através de pessoas infectadas com o vibrião. As mortes sucederam-se entre as pessoas pobres, o povo foi tomando de pânico. Tomado de pânico com tanta morte, acusou vários médicos do assassinato deliberado dos doentes "para pôr em prática técnicas de dissecação de cadáver e aprimorar seus conhecimentos em anatomia".
Em Paris, no mesmo ano, o mesmo tipo de pânico, os mais pobres são os mais afectados pela doença. Cerca de 120 mil pessoas abandonaram a cidade. Extracto de uma obra: "O desespero dos pobres se mobilizou contra as classes sociais altas, logo suspeitas de ter envenenado o sistema de abastecimento de água dos trabalhadores. Assim, iniciou-se em Junho daquele ano uma série de rebeliões nas ruas de Paris contra as classes altas. A França perdeu cem mil habitantes na epidemia" (para os dois exemplos, confira, a partir da página 153, aqui).
É importante reter o tipo de imputação causal: para os pobres, a cólera foi deliberadamente introduzida pelos detentores do saber  científico (médicos) e  pelos ricos. Como tantas vezes tenho escrito, uma crença objectivamente falsa tornou-se subjectivamente verdadeira. Mais importante ainda: tornou-se um processo de revisão comunitária e de avaliação das contradições e das desigualdades sociais.
Imagem reproduzida daqui.
(continua)

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