Uma parte significativa dos relatos sobre as manifestações populares iniciadas a 1 deste mês nas cidades de Maputo e Matola, das descrições, das fotografias, das conversas, do nosso dia-a-dia feito de perguntas e de respostas que façam sentido, das nossas tentativas de interpretação, é habitada pelo excesso do que se passou, pela desmesura, pela antirotina, pela violência, pelo roubo, pela destruição, pela inutilização do que é útil, pelo fogo expresso na familiar paisagem do pneu queimado na cidade de Maputo, pelo futuro incendiado (uma expressão à Mia Couto) enfim. Por outras palavras, estamos perante um quadro definido como violento (noção à qual regressarei na continuidade da série), antisocial, incongruente, cheio de delinquentes primários, de destruidores que ferem a rotina, a boa consciência e o bom senso, tal como na imagem em epígrafe, quadro que obriga a que se pense na produção de rótulos sociais.
Por outro lado, as manifestações encaixam em nós a noção da crise súbita e, especialmente, a noção da crise contraposta à rotina anterior. Por outras palavras, o que se passou é anormal, o que antes havia é normal.
Finalmente, nesse livro que é feito das nossas interrogações e das nossas respostas socialmente úteis, os figurantes da vida que vivemos com apreensão durante alguns dias são colocados em gavetas identitárias muito simples e de consumo imediato: jovens, vândalos, criminosos, governo, governantes, problemas, etc. Por outras palavras, o livro é estrangeiro a grupos, a classes, a relações sociais concretas, a relações que condicionam comportamentos e pensamentos.
Então, tomando em conta (e a eles regressando) os três quadros introdutórios acima propostos (e, eventualmente, outros), vou tentar nesta nova série lançar algumas hipóteses - breves hipóteses - sobre as causas (e, eventualmente, sobre as causas das causas, discutindo também o próprio conceito) e sobre as características das manifestações ocorridas em Maputo e Matola (apenas nestas duas cidades). E fazendo-o, procurarei evitar transformar a proposta de análise em texto moralista - o que é sempre muito difícil de conseguir -, tão habitados somos em permanência, todos nós, pelo mundo binário, mas necessário, do bom e do mau.
(continua)
Foto extraída daqui
7 comentários:
Sobre a suposta pacificidade típica dos Moçambicanos:
Ontém à noite estava numa festa em casa de uns amigos e veio uma conversa sobre ladrões. Alguém dizia que nessa manhã a mulher não tinha conseguido ligar o carro e que quando foram ver qual era o problema descobriram que a bateria tinha sido roubada.
A história continua com uma situação anterior onde um ladrão tinha sido apanhado em flagrante a desmontar o pneu sobressalente de um carro. O segurança, armado (contado com o detalhe que apontou a arma ao pescoço do ladrão enquanto este calmamente desaparafusava o pneu), apanhou-o, algemou-o e foi chamar o narrador (subentende-se que outros mais).
Este ladrão é então algemado a grades e o narrador e outros, "dão-lhe porrada". De seguida levaram o ladrão à polícia que lhes disse que uma vez que eles tinham batido no ladrão tinham de levá-lo primeiro ao hospital (e pagar a conta) e que só depois o podiam trazer à polícia.
O narrador ficou muito insatisfeito com esta resposta da polícia. Diz, então nós apanhámos o ladrão em flagrante e a polícia recusa-se a prendê-lo? O próximo ladrão que eu apanhar vai-se ver comigo. Eu vou buscar um martelo e vou lhe partir todos os dedos das mãos e dos pés (isto foi dito de uma maneira bastante mais gráfica do que estou a relatar).
Estas são pessoas "bem". Jovens, que estudaram em escolas privadas toda a vida, que estudaram fora, que voltaram e tinham emprego à espera. Estas pessoas sempre tiveram e continuam a ter uma vida decente e boa.
E no entanto são tão extremamente violentas que acham que um ladrão de pneus e baterias merece ficar com 20 dedos partidos. Não sei se alguma vez teriam coragem, mas fantasiam partir 20 dedos a uma pessoa só porque esta lhes roubou um pneu ou bateria.
Esta é a sociedade em que nós vivemos. Nem todos nós somos violentos, mas todos vivemos numa sociedade extremamente violenta onde a violência já se tornou banal.
Tendo isto em conta é de se esperar que qualquer manifestação feita por membros desta sociedade tenha o seu lado extremamente violento - a vida aqui é violenta - acordem!
"E no entanto são tão extremamente violentas que acham que um ladrão de pneus e baterias merece ficar com 20 dedos partidos. Não sei se alguma vez teriam coragem, mas fantasiam partir 20 dedos a uma pessoa só porque esta lhes roubou um pneu ou bateria." - penso nesta sua frase. A propósito, já leu de Honward Becker o livro "Outsiders. Estudos de sociologia do desvio"? Creio que o vou usar na continuidade da série.
Algo para mim é estranhamente interessante na análise sobre as estas manifestacões. As mortes e a violência da polícia é menos enfatizada. Em muitos textos mesmo que repudiando a atitude do governo ou a violência por parte dos manifestantes a questão das mortes é secundária. Porquê será? Será que muitos acham que não havia como evitá-las ainda que dos mortos se trata de algumas criancas?
@ Carlos Serra,
Ainda não li esse livro, nem sequer sabia que existia. Se houver em Maputo hei-de comprar.
Fará bem, verificará a minha analítica que ele é. Em Maputo não deve haver, mas pode pedir à livraria junto à antiga Fnac para o mandar vir.
Reflectindo, Marx explica na sua Luta de Classes. Estude-a e obtera as respostas que deseja.
Afinal, os livros dele ainda sao bastante uteis nestes casos.
Obrigado Ricardo, vou lá procurando a resposta das minhas perguntas.
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