Que a tua coragem como sociólogo não tenha o destino das rosas de François de Malherbe: uma breve manhã (*).
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( *) Por ocasião da morte da filha de um amigo, o poeta francês François de Malherbe escreveu no século XVI um poema do qual faz parte a seguinte estância:
Mas...pertencia ao mundo, onde as mais belas cousas
Têm vida curta e vã;
E, rosa, ela viveu o que vivem as rosas:
Uma breve manhã
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
Outros elos pessoais
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30 abril 2006
Receita para se fazer um sociólogo
Se queres ser sociólogo, se queres molhar-te por completo na empiria, se não te importas de ser incomodado por quem não gosta do que estudas, do que pensas e do que fazes, ensaia o seguinte:
1) Tira a casca do teu senso comum, retira a crosta dos teus prejuízos, despe com solidez progressiva os teus mitos e o teu conforto;
2) Interroga cada gaveta dos teus pressupostos e com a lupa que é o teu esforço, decompõe-nos, uma a um, devagar, sem pressa.
3) Depois de estares desnudo, pergunta-te assim: É possível eu afastar-me de quem sou? A resposta que te darás é a seguinte: Não!
4) Abraça o teu não, com firmeza, e começa então a trabalhar, mergulha por completo no social.
5) Quando estiveres a trabalhar e quando em cada momento sentires em ti o choque tenso e intenso entre o que julgas que és como cidadão e o que queres ser como sociólogo, então tornaste-te realmente sociólogo, tu, certeza e dúvida, hábito e transgressão que és.
6) Quando escreveres, dá, então, à escrita o selo dessa tensão, faz dela o êmbolo que exprima aquilo que afinal estudaste: a tensão social, a vida fantástica do devir e da diferença.
1) Tira a casca do teu senso comum, retira a crosta dos teus prejuízos, despe com solidez progressiva os teus mitos e o teu conforto;
2) Interroga cada gaveta dos teus pressupostos e com a lupa que é o teu esforço, decompõe-nos, uma a um, devagar, sem pressa.
3) Depois de estares desnudo, pergunta-te assim: É possível eu afastar-me de quem sou? A resposta que te darás é a seguinte: Não!
4) Abraça o teu não, com firmeza, e começa então a trabalhar, mergulha por completo no social.
5) Quando estiveres a trabalhar e quando em cada momento sentires em ti o choque tenso e intenso entre o que julgas que és como cidadão e o que queres ser como sociólogo, então tornaste-te realmente sociólogo, tu, certeza e dúvida, hábito e transgressão que és.
6) Quando escreveres, dá, então, à escrita o selo dessa tensão, faz dela o êmbolo que exprima aquilo que afinal estudaste: a tensão social, a vida fantástica do devir e da diferença.
O vovô
Há alguns anos atrás, tive o prazer de ler uma tese de licenciatura de um estudante do Instituto de Educação Física. A tese mostrava que as equipas de futebol locais tinham dois treinadores: o treinador clássico e o curandeiro, o famoso vovô.
A função do vovô consistia e consiste em impedir magicamente a violação da baliza da sua equipa.
Recordo-me, a propósito, da celeuma gerada um dia quando a selecção do Zimbabué aqui jogou contra a nossa e os nossos jogadores descobriram que junto à rede da baliza adversária havia uma pata de macaco, peça de magia anti-golo considerada infalível (encontram-se patas de macaco à venda no Xipamanine). A polícia teve que intervir e, por fim, a pata foi retirada.
Seria fascinante que os sociólogos pudessem estudar o fenómeno do vovoísmo.
A função do vovô consistia e consiste em impedir magicamente a violação da baliza da sua equipa.
Recordo-me, a propósito, da celeuma gerada um dia quando a selecção do Zimbabué aqui jogou contra a nossa e os nossos jogadores descobriram que junto à rede da baliza adversária havia uma pata de macaco, peça de magia anti-golo considerada infalível (encontram-se patas de macaco à venda no Xipamanine). A polícia teve que intervir e, por fim, a pata foi retirada.
Seria fascinante que os sociólogos pudessem estudar o fenómeno do vovoísmo.
Etnicidade e transgressão
A etnicidade é para mim muito mais do que o vulgar exercício de negação do outro em termos antropológicos, como pode acontecer em relação aos membros da etnia A quando confrontados com os membros da etnia B.
Um jogo de futebol, por exemplo, é um perfeito exercício de etnicidade
Portanto, transgrido as fronteiras tradicionais da antropologia.
Um jogo de futebol, por exemplo, é um perfeito exercício de etnicidade
Portanto, transgrido as fronteiras tradicionais da antropologia.
Etnicidade espontânea
Existe um universal humano: a constatação da e a reacção face à alteridade. Qualquer modesta investigação o mostra. O que é diferente chama-nos a atenção, põe em movimento os nossos esquemas perceptivo-motores, a nossa linguagem, os nossos símbolos, os nossos valores. Mas a percepção da diferença só é posta em acto quando confrontada, naturalmente, com a identidade. Portanto, ela não existe em si, como uma essência sempre disponível: ela é para si, para usar a linguagem hegeliana. Porém, isso não basta. É preciso que as diferenças sejam sentidas como divergências importantes. É preciso, sobretudo, que certas condições estejam reunidas para que da alteridade como constatação se passe à etnicidade como fenómeno sociológico: a disputa, o perigo, a escassez ou a desigualdade de distribuição de recursos vitais, etc. E, mesmo assim, muitas vezes a transição nem sempre ocorre, ficando a etnicidade como uma expectativa, como uma possibilidade. Não basta, portanto, que X fale uma língua diferente ou seja de uma outra equipa ou seja do patronato ou tenha um mutupo diferente. É preciso que cada uma dessas manifestações de diferença seja subjectiva e agudamente sentida como divergente, como, enfim, insanável.
Como camponês distingo o citadino; como estudante, o professor; como operário, o patrão e o chefe da contabilidade; como público, o funcionário que atende; como Costa do Sol, o Maxaquene; como falante de Echuabo, o falante de outras línguas; como membro do partido X, os membros de outros partidos; como mulher, o homem; como filho, o pai; como membro da linhagem Ligonha, outras linhagens; como Moçambicano, um Japonês ou um Zairota. É sobretudo como fenómeno colectivo que a transição da alteridade para a etnicidade ganha sentido. E como luta permanente.
Como camponês distingo o citadino; como estudante, o professor; como operário, o patrão e o chefe da contabilidade; como público, o funcionário que atende; como Costa do Sol, o Maxaquene; como falante de Echuabo, o falante de outras línguas; como membro do partido X, os membros de outros partidos; como mulher, o homem; como filho, o pai; como membro da linhagem Ligonha, outras linhagens; como Moçambicano, um Japonês ou um Zairota. É sobretudo como fenómeno colectivo que a transição da alteridade para a etnicidade ganha sentido. E como luta permanente.
A relação
O nosso capital étnico só é investido quando confrontado na relação, na alteridade. Só somos Costa do Sol na relação, por exemplo, com o Maxaquene. Não sou, portanto, Costa do Sol em si, fora de um percurso histórico, fora de uma relação, de uma confrontação, de uma competição. Se o fenómeno Maxaquene ou se o fenómeno que o Maxaquene emblematiza desaparecesse, eu deixaria potencialmente de ser Costa do Sol. É a partir da interacção, do comércio da alteridade, que ocorre, pelos mais variados actos, aquilo a que chamo etnicidade espontânea, quer dizer, a crença numa comunidade subjectiva instintiva, emocional, numa endo-identidade (ego) confrontada com uma diferença (alter) e, portanto, com a exo-identidade. Essa crença é, normalmente, defensiva. E ela é, fundamentalmente, pré-política no sentido de que os comportamentos por si gerados visam menos induzir condutas estratégicas do que a fazer-lhes face pela defensiva.
Chupa-sanguismo
É possível que a primeira notícia pós-colonial de crença no chupa-sangue date, na Zambézia, onde parece ter nascido, do fim de 1974 ou do princípio de 1975, quando os grupos dinamizadores se formavam. Terá, então, corrido o boato de que os GDs iriam «chupar» o sangue às pessoas.
Mas é em 1978/1979 que a crença se vai desenvolver plenamente nas comunidades rurais zambezianas, numa altura em que a Frelimo procurava criar o homem novo, em que eram correntes as campanhas de vacinação e de doação de sangue, a hostilidade rodesiana tinha curso e uma rádio anti-FRELIMO actuava no Malawi. As pessoas acreditavam que, à noite, seres estranhos penetravam nas palhotas e lhes chupavam o sangue com seringas, pela cabeça, enquanto dormiam. Milhares de Zambezianos passaram noites em claro gritando, batendo palmas, agitando panelas e outros objectos para afugentar os anamawula (sugadores de sangue, «vampiros»). Fazia-se fé em que o sangue era destinado ao fabrico de uma nova moeda, à consolidação da Independência nacional e ao abastecimento dos hospitais. Do ponto de vista governamental, o fenómeno foi imputado ao inimigo e ao obscurantismo.
A crença tornou-se recorrente e estendeu-se a Cabo Delgado e a Nampula. Em Cabo Delgado, mais particularmente em Pemba, ela apareceu em 1988 estreitamente associada no imaginário popular à mobilização feita pela Cruz Vermelha para obter doadores de sangue e ao suposto encaminhamento deste para o banco de sangue. Em Nampula, mais concretamente em Namialo, a crença tomou curso em 1991 no decorrer de uma epidemia de cólera. Em 1992 e 1995, ela reapareceu na Zambézia (doentes com sintomas de anemia e de malária, apresentaram-se nos hospitais queixando-se de que o seu sangue tinha sido «chupado») e, em 1995 também, em Nampula (estando esta província a braços desta vez com uma epidemia de meningite). Em todas as situações houve notícia de penúria de bens de consumo, de agitação social, de anomia, de intriga, de mentalidade linchadora e, aqui e ali, de linchamentos de supostos chupa-sanguistas. As pessoas acreditam sempre que o sangue lhes era extraído por seringas ou por extractores análogos. Os estereótipos vitimários podem ser demonstrados pelo facto de, anos atrás, em Nicoadala, na Zambézia, dois deputados de Assembleia da Républica e dois jornalistas terem sido tomados por «chupadores de sangue». Por outro lado, do ponto de vista dos crentes existe sempre uma associação entre a extracção de sangue e os funcionários governamentais ou partidários e os forasteiros. Mas, do ponto de vista governamental, tudo se resumia a situações subversivas objectivamente criadas em meios onde a credulidade é grande e a pobreza campeia. Havia, na verdade e por exemplo, evidências de ladrões tirando partido da situação para roubar as casas.
Mas vejamos mais em pormenor o contexto social do fenómeno:
· Contexto político revolucionário, com um forte apelo à mudança social
· Penúria de bens de consumo
· Campanhas de vacinação e de doação de sangue
· Guerra generalizada depois de 1982
· Epidemias
Vejamos, agora, as componentes básicas da crença:
· Sangue extraído pela cabeça
· Extracção feita através de seringas ou de objectos do mesmo género
· Extracção feita sorrateiramente à noite quando as pessoas dormiam
· Consequências da extracção: fraqueza e morte
· O sangue extraído destinava-se a aproveitamento exterior aos interesses das comunidades
· Extracção de sangue associada a funcionários governamentais ou partidários, aí compreendidos os da Saúde, mas também a simples forasteiros.
E, finalmente, vejamos algumas consequências da crença:
· Suspeita, intriga, cólera
· Estigma, mentalidade linchatória
· Imputação causal a todos os estranhos às comunidades
· Linchamentos
Quero sustentar que a crença é uma metáfora pela qual se traduzia e se compensava ao mesmo tempo a crise e a espoliação sociais. A recorrência destas dava sentido à vitalidade daquela.
Mas para compreender os que na Zambézia, por exemplo, acreditavam (e certamente ainda acreditam) no chupa-sangue, é fundamental situar a crença nas representações colectivas populares.
Na verdade, quando surge uma crise social faz-se fé em que ela é provocada por aqueles que se distinguem do comum das pessoas, pelos ricos ou pelos forasteiros, por todos aqueles que de alguma maneira expressam a diferença, a inovação ou o desacordo. Estas são as categorias de pessoas potencialmente portadoras de okwiri, cada uma delas é suposta ser um mukwiri (na terminologia cristã, ±= demónio ou seu portador), cada uma delas é suposta ser capaz de utilizar ratos, jibóias e outros animais para, à noite, por exemplo, roubar os celeiros dos outros. De um ângulo singularmente marxiano e actual, o padre Brentari, já falecido, escreveu o seguinte a propósito do meio propiciador da olowa (acção, endemoninhação ) do mukwiri:
«Para quem vive nas povoações é fácil descobrir a grande criação do mal: fome, sede, falta total de possibilidades e meios para o desenvolvimento humano e social; doenças, medos, vinganças, desuniões, opressões em toda a escala da criação: campo, animais, famílias...»
Ora, o chupa-sanguismo mais não foi nem é, em meu entender, do que uma reactualização politizada da crença acima exposta. Os funcionários governamentais, os forasteiros, etc., eram vistos como akwiri que extraíam, directa ou indirectamente, o bem-estar das comunidades. O sangue (= vida) é a tradução desse bem-estar: a sua punção (= a rarefacção dos bens de consumo), é a tradução do mal-estar. A única diferença nesta reactualização é que, permitam-me a expressão, o potencial linchatório não é descarregado sobre aqueles que são considerados como os verdadeiros responsáveis da espoliação. Ele é como que desviado para os focos habituais e locais de okwiri (mulheres idosas, forasteiros, etc.).
Assim, as pessoas tinham boas razões para acreditar no que acreditavam e acreditam. O chupa-sanguismo não é, portanto, uma crença pré-lógica, irracional, falsa. Ela expressava uma carência social variada.
Mas é em 1978/1979 que a crença se vai desenvolver plenamente nas comunidades rurais zambezianas, numa altura em que a Frelimo procurava criar o homem novo, em que eram correntes as campanhas de vacinação e de doação de sangue, a hostilidade rodesiana tinha curso e uma rádio anti-FRELIMO actuava no Malawi. As pessoas acreditavam que, à noite, seres estranhos penetravam nas palhotas e lhes chupavam o sangue com seringas, pela cabeça, enquanto dormiam. Milhares de Zambezianos passaram noites em claro gritando, batendo palmas, agitando panelas e outros objectos para afugentar os anamawula (sugadores de sangue, «vampiros»). Fazia-se fé em que o sangue era destinado ao fabrico de uma nova moeda, à consolidação da Independência nacional e ao abastecimento dos hospitais. Do ponto de vista governamental, o fenómeno foi imputado ao inimigo e ao obscurantismo.
A crença tornou-se recorrente e estendeu-se a Cabo Delgado e a Nampula. Em Cabo Delgado, mais particularmente em Pemba, ela apareceu em 1988 estreitamente associada no imaginário popular à mobilização feita pela Cruz Vermelha para obter doadores de sangue e ao suposto encaminhamento deste para o banco de sangue. Em Nampula, mais concretamente em Namialo, a crença tomou curso em 1991 no decorrer de uma epidemia de cólera. Em 1992 e 1995, ela reapareceu na Zambézia (doentes com sintomas de anemia e de malária, apresentaram-se nos hospitais queixando-se de que o seu sangue tinha sido «chupado») e, em 1995 também, em Nampula (estando esta província a braços desta vez com uma epidemia de meningite). Em todas as situações houve notícia de penúria de bens de consumo, de agitação social, de anomia, de intriga, de mentalidade linchadora e, aqui e ali, de linchamentos de supostos chupa-sanguistas. As pessoas acreditam sempre que o sangue lhes era extraído por seringas ou por extractores análogos. Os estereótipos vitimários podem ser demonstrados pelo facto de, anos atrás, em Nicoadala, na Zambézia, dois deputados de Assembleia da Républica e dois jornalistas terem sido tomados por «chupadores de sangue». Por outro lado, do ponto de vista dos crentes existe sempre uma associação entre a extracção de sangue e os funcionários governamentais ou partidários e os forasteiros. Mas, do ponto de vista governamental, tudo se resumia a situações subversivas objectivamente criadas em meios onde a credulidade é grande e a pobreza campeia. Havia, na verdade e por exemplo, evidências de ladrões tirando partido da situação para roubar as casas.
Mas vejamos mais em pormenor o contexto social do fenómeno:
· Contexto político revolucionário, com um forte apelo à mudança social
· Penúria de bens de consumo
· Campanhas de vacinação e de doação de sangue
· Guerra generalizada depois de 1982
· Epidemias
Vejamos, agora, as componentes básicas da crença:
· Sangue extraído pela cabeça
· Extracção feita através de seringas ou de objectos do mesmo género
· Extracção feita sorrateiramente à noite quando as pessoas dormiam
· Consequências da extracção: fraqueza e morte
· O sangue extraído destinava-se a aproveitamento exterior aos interesses das comunidades
· Extracção de sangue associada a funcionários governamentais ou partidários, aí compreendidos os da Saúde, mas também a simples forasteiros.
E, finalmente, vejamos algumas consequências da crença:
· Suspeita, intriga, cólera
· Estigma, mentalidade linchatória
· Imputação causal a todos os estranhos às comunidades
· Linchamentos
Quero sustentar que a crença é uma metáfora pela qual se traduzia e se compensava ao mesmo tempo a crise e a espoliação sociais. A recorrência destas dava sentido à vitalidade daquela.
Mas para compreender os que na Zambézia, por exemplo, acreditavam (e certamente ainda acreditam) no chupa-sangue, é fundamental situar a crença nas representações colectivas populares.
Na verdade, quando surge uma crise social faz-se fé em que ela é provocada por aqueles que se distinguem do comum das pessoas, pelos ricos ou pelos forasteiros, por todos aqueles que de alguma maneira expressam a diferença, a inovação ou o desacordo. Estas são as categorias de pessoas potencialmente portadoras de okwiri, cada uma delas é suposta ser um mukwiri (na terminologia cristã, ±= demónio ou seu portador), cada uma delas é suposta ser capaz de utilizar ratos, jibóias e outros animais para, à noite, por exemplo, roubar os celeiros dos outros. De um ângulo singularmente marxiano e actual, o padre Brentari, já falecido, escreveu o seguinte a propósito do meio propiciador da olowa (acção, endemoninhação ) do mukwiri:
«Para quem vive nas povoações é fácil descobrir a grande criação do mal: fome, sede, falta total de possibilidades e meios para o desenvolvimento humano e social; doenças, medos, vinganças, desuniões, opressões em toda a escala da criação: campo, animais, famílias...»
Ora, o chupa-sanguismo mais não foi nem é, em meu entender, do que uma reactualização politizada da crença acima exposta. Os funcionários governamentais, os forasteiros, etc., eram vistos como akwiri que extraíam, directa ou indirectamente, o bem-estar das comunidades. O sangue (= vida) é a tradução desse bem-estar: a sua punção (= a rarefacção dos bens de consumo), é a tradução do mal-estar. A única diferença nesta reactualização é que, permitam-me a expressão, o potencial linchatório não é descarregado sobre aqueles que são considerados como os verdadeiros responsáveis da espoliação. Ele é como que desviado para os focos habituais e locais de okwiri (mulheres idosas, forasteiros, etc.).
Assim, as pessoas tinham boas razões para acreditar no que acreditavam e acreditam. O chupa-sanguismo não é, portanto, uma crença pré-lógica, irracional, falsa. Ela expressava uma carência social variada.
O problema de mudar
Não é por acaso que, ao nível das biografias, por exemplo, ficamos sempre perplexos quando alguma coisa muda ou mudou no comportamento de alguém. Dois ou três traços de personalidade chegam para fotografar para sempre o actor X. Teremos tendência em vê-lo como ele era há vinte anos atrás, por exemplo. A mudança significa uma desordem, um desajuste, um mal-estar dos e nos nossos quadros perceptivo-conceptuais.
Crença
Na verdade, toda a investigação, aí compreendida a científica, visa obter um estado de crença, visa essencializar-se. Cada um de nós passa a vida a crer ou a tentar crer. A única função do pensamento é a de produzir a crença e a de eliminar a dúvida. A crença é, na realidade, como defendeu Charles Peirce, uma regra de acção pela qual ajustamos as nossas expectativas à realidade social e natural. A crença é um processo que nos permite passar do desconhecido ao conhecido, da dúvida à certeza, do sofrimento ao bem-estar, do hoje ao amanhã.
Mentalidade linchatória
Suponhamos o seguinte quadro: numa multidão de 200 pessoas alguém aponta A como responsável de um roubo. É previsível que uma parte das 199 pessoas restantes partilhe de imediato, sensorialmente, a acusação (vê o estigmatizado, está mais próxima dele, etc.) e que a outra seja arrastada à identificação por etapas de adesão um pouco mais lentas mas não menos imperativas e, no limite, também paroxísticas. O momento final é a identidade reactiva, a homogeneidade estigmatória, o clímax linchatório. O longo tempo de crise acumulada é percutido e exacerbado pelo tempo curto, sensorial, mimético, irreversível da decisão. Dificilmente alguém poderá pensar com equilíbrio numa situação dessas. A componente lógica de cada um de nós é imediatamente submersa pela componente instintual. Esta última hipostasia e nivela. Isso sucede não porque um instinto de massa preexista a cada um dos participantes, mas porque cada um partilha transubjectivamente a equivalência e as osmose feitas rapidamente entre a crise e o «responsável» encontrado. O linchamento é o resultado agregado das identificações individuais. Cada um de nós pode fazer a experiência da mentalidade linchatória num jogo de futebol, especialmente num jogo vital, sentando-se onde possa seguir o comportamento de um conjunto de adeptos de uma das equipas. Ou, então, assistir ao comício de um partido em período eleitoral.
29 abril 2006
Manifesto de re-humanização
É na esteira da humildade que devemos sempre tomar os nossos trabalhos de pesquisa não como pontos de chegada, mas como pontos de partida, irrevogavelmente permanentes nessa situação. É também na esteira dessa humildade que devemos, na verdade, esquecer por completo as nossas famosas teses de doutoramento, esse frigoríficos que congelam a ousadia.
E se tivermos que verificar se os nossos resultados estão certos, façamo-lo não tanto no interior do que escrevemos, aferindo a hipótese, re-analisando as escalas, reconsultando os documentos dos arquivos, construindo laboriosos aparelhos de indagação, mas, especialmente, dirigindo-nos primeiro a nós-próprios e, depois, a quem observámos, analisámos, àqueles com quem conversámos, àqueles a quem administrámos os nossos questionários.
É fundamental tornarmo-nos investigadores da nossa própria investigação. Isso é muito difícil, por numerosas razões, claro, mas essa é a unica hipótese que temos de sobreviver num mundo onde, por exemplo, quanto mais investigamos e escrevemos sobre o desemprego mais este aumenta. E se formos historiadores, estudando quem já morreu, saibamos que para compreender todo o problema “morto”, é necessário que ao menos uma vez na nossa vida nos tenhamos debatido com um problema vivo. Porque, ao fim e ao cabo, nós nunca estudamos mortos como historiadores, mas vivos, os nossos vivos telescopizados para o passado.
Tenhamos a saudável humildade de reconhecer que as nossas conclusões estão erradas por mais certas que nos pareçam ou por mais que a realidade empírica as comprove, em parte ou no todo. Deixemos de ser ptolomaicos!
Repeguemos no pincel, no escopro, no cinzel, no buril e recomeçemos a pintar, a esculpir, sempre, sem parar, porque, na realidade, a determinação dos seres humanos está na sua indeterminação.
Re-interroguemos, recomecemos. Porque a nossa tarefa principal é a de compreender (acto que, afinal, é sempre o de explicar), e para chegarmos aí temos de nos compreender primeiro a nós-mesmos.
Na verdade, o que nós, muitas vezes, analisamos no outro é o que somos, o que não somos, o que não pudemos ser, o que nós gostaríamos de ser ou não, o que amamos, o que odiamos. O nosso ponto de vista sobre os outros é um ponto de vista sobre nós tornado interrogação ou exercício face ao ponto de vista que também é o do outro, produzido com ternura ou ódio ou ambas as coisas, arremessado ao outro, a quem fagocitamos fazendo o nosso ponto de vista parecer ser o dele.
Ou, então, é um ponto de vista saído de uma querela científica, marcado pela agressividade dessa querela. Aliás, não é por acaso que desde anos 70 os cientistas se tornaram, eles-próprios, objecto de estudo por parte de outros cientistas, do mesmo modo que outrora os antropólogos estudavam os chamados primitivos e os colonizados.
Antes de objectivarmos os outros, objectivemo-nos a nós-próprios, para que aqueles que analisamos se subjectivizem na razão directa em que nos tornamos, nós-próprios, mais objectivos e mais franqueados à verdadeira interface, à verdadeira compreensão.
O outro não está fora de nós, está afinal, dentro de nós, somos nós quem o produz na ilusão de que o estudamos objectivamente. Se, afinal, interferimos nos instrumentos de medida na astrofísica ou na mecânica quântica (ao contrário do que pensávamos no período da ciência clássica), com mais forte razão interferimos, interferimos completamente na avaliação e na “medição” dos outros seres humanos. Para evitarmos pensar nisso, acreditar nisso, inventámos as regras, o ritual, a sobriedade, o rigor semântico, a autoridade científica, o entorpecimento da emoção e do sentimento.
Façamos da nossa pesquisa um quadro ou uma escultura sempre inacabados e tentemos aceitar que quanto mais elevado for o beldevere de observação, o mirante, o ponto social onde nos situemos, o dos deserdados da terra, mais ampla e justa é a nossa visão, mais extensa e polivalente ela é.
As nossas ciências sociais serão assim utópicas, não no sentido de fuga do real, de evasão, mas no sentido de um horizonte e de um objectivo claros. É como se lançássemos uma bola a um rio em direcção à foz e depois nos atirássemos à corrente para a apanharmos, sem nunca o conseguirmos, mas, também, sem nunca a perdermos de vista e sem nunca desesperarmos. Teríamos sempre o horizonte (porque não perderíamos de vista a bola) e o objectivo (o de a apanhar, ainda que inacessível, com a crença de que um dia conseguiríamos chegar a ela).
Horizonte e objectivo traçados em função de uma luta pelos deserdados da terra e em prol do reencantamento social.
E se tivermos que verificar se os nossos resultados estão certos, façamo-lo não tanto no interior do que escrevemos, aferindo a hipótese, re-analisando as escalas, reconsultando os documentos dos arquivos, construindo laboriosos aparelhos de indagação, mas, especialmente, dirigindo-nos primeiro a nós-próprios e, depois, a quem observámos, analisámos, àqueles com quem conversámos, àqueles a quem administrámos os nossos questionários.
É fundamental tornarmo-nos investigadores da nossa própria investigação. Isso é muito difícil, por numerosas razões, claro, mas essa é a unica hipótese que temos de sobreviver num mundo onde, por exemplo, quanto mais investigamos e escrevemos sobre o desemprego mais este aumenta. E se formos historiadores, estudando quem já morreu, saibamos que para compreender todo o problema “morto”, é necessário que ao menos uma vez na nossa vida nos tenhamos debatido com um problema vivo. Porque, ao fim e ao cabo, nós nunca estudamos mortos como historiadores, mas vivos, os nossos vivos telescopizados para o passado.
Tenhamos a saudável humildade de reconhecer que as nossas conclusões estão erradas por mais certas que nos pareçam ou por mais que a realidade empírica as comprove, em parte ou no todo. Deixemos de ser ptolomaicos!
Repeguemos no pincel, no escopro, no cinzel, no buril e recomeçemos a pintar, a esculpir, sempre, sem parar, porque, na realidade, a determinação dos seres humanos está na sua indeterminação.
Re-interroguemos, recomecemos. Porque a nossa tarefa principal é a de compreender (acto que, afinal, é sempre o de explicar), e para chegarmos aí temos de nos compreender primeiro a nós-mesmos.
Na verdade, o que nós, muitas vezes, analisamos no outro é o que somos, o que não somos, o que não pudemos ser, o que nós gostaríamos de ser ou não, o que amamos, o que odiamos. O nosso ponto de vista sobre os outros é um ponto de vista sobre nós tornado interrogação ou exercício face ao ponto de vista que também é o do outro, produzido com ternura ou ódio ou ambas as coisas, arremessado ao outro, a quem fagocitamos fazendo o nosso ponto de vista parecer ser o dele.
Ou, então, é um ponto de vista saído de uma querela científica, marcado pela agressividade dessa querela. Aliás, não é por acaso que desde anos 70 os cientistas se tornaram, eles-próprios, objecto de estudo por parte de outros cientistas, do mesmo modo que outrora os antropólogos estudavam os chamados primitivos e os colonizados.
Antes de objectivarmos os outros, objectivemo-nos a nós-próprios, para que aqueles que analisamos se subjectivizem na razão directa em que nos tornamos, nós-próprios, mais objectivos e mais franqueados à verdadeira interface, à verdadeira compreensão.
O outro não está fora de nós, está afinal, dentro de nós, somos nós quem o produz na ilusão de que o estudamos objectivamente. Se, afinal, interferimos nos instrumentos de medida na astrofísica ou na mecânica quântica (ao contrário do que pensávamos no período da ciência clássica), com mais forte razão interferimos, interferimos completamente na avaliação e na “medição” dos outros seres humanos. Para evitarmos pensar nisso, acreditar nisso, inventámos as regras, o ritual, a sobriedade, o rigor semântico, a autoridade científica, o entorpecimento da emoção e do sentimento.
Façamos da nossa pesquisa um quadro ou uma escultura sempre inacabados e tentemos aceitar que quanto mais elevado for o beldevere de observação, o mirante, o ponto social onde nos situemos, o dos deserdados da terra, mais ampla e justa é a nossa visão, mais extensa e polivalente ela é.
As nossas ciências sociais serão assim utópicas, não no sentido de fuga do real, de evasão, mas no sentido de um horizonte e de um objectivo claros. É como se lançássemos uma bola a um rio em direcção à foz e depois nos atirássemos à corrente para a apanharmos, sem nunca o conseguirmos, mas, também, sem nunca a perdermos de vista e sem nunca desesperarmos. Teríamos sempre o horizonte (porque não perderíamos de vista a bola) e o objectivo (o de a apanhar, ainda que inacessível, com a crença de que um dia conseguiríamos chegar a ela).
Horizonte e objectivo traçados em função de uma luta pelos deserdados da terra e em prol do reencantamento social.
Humanidades
Importa voltar a uma linha de pensamento que faça das chamadas ciências sociais, humanidades, no pleno sentido de percurso cognitivo sempre inacabado, que assumamos que investigar os seres humanos, vivos ou mortos, é simplesmente um momento de pintura ou de escultura; que, com um pincel ou com um escopro ou com um cinzel, apenas tentamos e podemos pintar ou esculpir ou cinzelar o que nos é possível pintar, esculpir ou cinzelar no interior dos nossos princípios, dos nossos valores, das nossas posições sociais, das nossas crenças, dos nossos postulados; que, fazendo-o, a nossa única segurança talvez consista na honestidade de o fazer com rigor, conscientes de tudo aquilo que nos socializou, sujeitando o nosso trabalho a um permanente confronto de ideias, ao nível dos seminários, dos livros e das revistas de especialidade.
O fim do iluminismo
Um bocado sob a sigla americana do “tudo é bom” (Feyerabend), um Thomas Kuhn, um David Bloor, um Paul Feyerabend, um Richard Rorty, um Kurt Hübner, entre outros, defendem que a ojectividade científica é um produto de convenção, de um acordo provisório ou de um período histórico, que, no limite (Feyerabend, Hübner), não há mais verdade ou objectividade na ciência do que no mito ou na magia, que todas as formas de conhecimento se equivalem. Nada nos autoriza quer a defender que a concepção da realidade proposta pela ciência seja mais adequada ou mais objectiva do que a defendida pelo mito, quer a acreditar que os julgamentos morais tenham uma base racional. É o fim da crença na razão iluminista e no progresso histórico, é o fim da ideia de desenvolvimento, é o “fim da história” um bocado à Fukuyama num processo que a nível dos programas políticos fortes encontra em Robert Nozick e na sua apologia do Estado mínimo o contexto adequado e emblemático. Talvez tudo isso represente a retroacção cansada a um mundo onde já Ptolomeu, por exemplo, concedia a mesma importância à astronomia e à astrologia, ainda que, claro, os nutrientes fundadores do discurso programático “pós-modernista” sejam muito mais contemporâneos e pareçam provir de Schelling, Schlegel, Nietzsche e Heidegger.
Políticos
Quando penso em eleições apetece-me situar os políticos dentro de três quadros interligados, a que chamarei jogo, teatro e texto.
Jogo, porque, em última análise, eles trocam e se oferecem regras, estratégias, ganhos e perdas.
Teatro, porque estão sempre a representar papeis num cenário determinado (a oratória nas campanhas eleitorais).
Texto, enquanto produção permanente de sentido e símbolo.
Comícios, discursos, metáforas, atitudes, condutas, gestão corporal, hilaridade, doações de propaganda, desqualificação, produção social de alteridade, rumores, etc., tudo isso constitui um mundo plural e interactivo de jogo, teatro e texto.
Jogo, porque, em última análise, eles trocam e se oferecem regras, estratégias, ganhos e perdas.
Teatro, porque estão sempre a representar papeis num cenário determinado (a oratória nas campanhas eleitorais).
Texto, enquanto produção permanente de sentido e símbolo.
Comícios, discursos, metáforas, atitudes, condutas, gestão corporal, hilaridade, doações de propaganda, desqualificação, produção social de alteridade, rumores, etc., tudo isso constitui um mundo plural e interactivo de jogo, teatro e texto.
Ciência
A ciência não é o pleonasmo da experiência. Em todas as circunstâncias, o imediato deve ceder o passo ao construído [1]. Os factos não são dados: conquistam-se, constroem-se [2].
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[1] Canguilhem, G., Sur une épistémologie concordataire, in Hommage à Bachelard/Études de philosophie et d'histoire des sciences. Paris: Presses Universitaires de France, 1957, pp.3-12. Ênfase no original.
[2] Bachelard, Gaston, La formation de l'esprit scientifique. Paris: Vrin, 7e éd, 1970, p.14.
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[1] Canguilhem, G., Sur une épistémologie concordataire, in Hommage à Bachelard/Études de philosophie et d'histoire des sciences. Paris: Presses Universitaires de France, 1957, pp.3-12. Ênfase no original.
[2] Bachelard, Gaston, La formation de l'esprit scientifique. Paris: Vrin, 7e éd, 1970, p.14.
As Igrejas Zione
Os Mazione têm as suas modestas casas de culto na periferia das cidades. O seu público é fundamentalmente feminino. Acredita-se que as mulheres são mais facilmente atingíveis pela acção dos maus espíritos. Estes são considerados responsáveis pelos quatro grandes tipos de problemas apresentados pelos crentes: doenças, desemprego, custo de vida (incluindo a falta de dinheiro para ir às consultas hospitalares) e desavenças familiares. Porém, é imperativo ter conta quanto elas acarretam com o fardo da infidelidade dos maridos, da gestão dos filhos e da sobrevivência do lar. Muitas vezes e crescentemente, são chefes de família. Na realidade, as mulheres são sempre as mais atingidas pelas transformações sociais em curso.
A recriação do universo da solidariedade tradicional e da família alargada, o apelo a crenças, a entidades e a imputações causais populares, a simplicidade cultual, a confissão pública e catárquica e a promessa de cura divina atraem muitos crentes, regra geral de origem humilde, que frequentemente não têm com que pagar as consultas hospitalares. Aparentemente as pessoas vão primeiro aos Mazione e só depois aos hospitais.
As Igrejas Zione assumem, assim, um triplo papel: o da reconstituição e da ampliação modernas da família, o de uma recuperação do sentido da vida e da solidariedade e, finalmente, de um neo-regresso às figuras tutelares da causalidade das sociedades de sentido múltiplo, como Tobie Nathan as intitula[*].
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[*]Quer dizer, por contraposição às "sociedades de universo único", sociedades onde a causalidade é plural e jamais mecânica ou isolada. Veja Nathan, Tobie, Manifeste pour une psychopathologie scientifique, in Nathan, Tobie et Stengers, Isabelle, Médecins et sorciers. Paris: Institut d'Édition Sanofi-Synthélabo, 1999, p.10 e passim.
A recriação do universo da solidariedade tradicional e da família alargada, o apelo a crenças, a entidades e a imputações causais populares, a simplicidade cultual, a confissão pública e catárquica e a promessa de cura divina atraem muitos crentes, regra geral de origem humilde, que frequentemente não têm com que pagar as consultas hospitalares. Aparentemente as pessoas vão primeiro aos Mazione e só depois aos hospitais.
As Igrejas Zione assumem, assim, um triplo papel: o da reconstituição e da ampliação modernas da família, o de uma recuperação do sentido da vida e da solidariedade e, finalmente, de um neo-regresso às figuras tutelares da causalidade das sociedades de sentido múltiplo, como Tobie Nathan as intitula[*].
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[*]Quer dizer, por contraposição às "sociedades de universo único", sociedades onde a causalidade é plural e jamais mecânica ou isolada. Veja Nathan, Tobie, Manifeste pour une psychopathologie scientifique, in Nathan, Tobie et Stengers, Isabelle, Médecins et sorciers. Paris: Institut d'Édition Sanofi-Synthélabo, 1999, p.10 e passim.
Dividir os seres humanos em duas categorias
Podemos dividir os seres humanos em duas categorias processuais extremas, certamente de uma maneira maniqueísta: as do mundo não-problemático e as do mundo problemático (excluímos as categorias intermediárias)[1].
Os habitantes do primeiro têm possibilidades permanentes de transformar o problemático no não-problemático graças ao seu capital de recursos vitais assegurados (alojamento, alimentação, emprego, acesso a serviços dignos de saúde e ensino, sociabilidade plural, etc.). Eles vivem uma cidadania.
Mas já assim não acontece no outro mundo: neste, é necessário lutar duramente para garantir as bases reprodutivas da vida, cada dia é uma batalha dura no problemático, na busca sem tréguas de recursos vitais. Por isso os seus habitantes não vivem, mas sobrevivem prisioneiros da sua infra-cidadania[2]. Pense-se, por exemplo, nas crianças da rua ou nos mendigos das romarias de sextas-feiras em Maputo, que estão sempre “em cima da lâmina”, como diria o cantor moçambicano Jeremias Ngwenha.
No primeiro mundo temos estratégias de vida: portadores de um “lugar” e de um “próprio”, os seus actores trabalham para criar, proteger e reproduzir as regras do bem-estar.
No segundo mundo temos tácticas de sobrevivência: sem lugar definidor, os seus actores lutam no campo dos outros, definidos por eles. Sem um “próprio”, eles só podem jogar nas malhas e nos interstícios das regras dos actores do outro mundo. O seu horizonte é o dia-a-dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes, dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância, dos carteiristas, dos biscates, do vende e revende, da prostituição, da droga, das regras, enfim, de uma autêntica “contra-sociedade”. Como diria Michel de Certeau, o que aí se ganha não se guarda.[3]
Esse é, finalmente, o mundo multidimensional da marronização[4]: os seus actores não são escravos[5] que se furtam, como outrora nas Américas, aos senhores e aos agressores, desorientando-os em caminhos e abrigos escusos, mas actores de um processo que os exclui, que os mutila e que por isso percute a afirmação de uma cultura rizomática, profundamente oxímora, na qual a alteridade se joga pelo contra espacial, identitário, ocupacional, bricolado e simbólico.
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[1] Estamos conscientes das muitas questões que ficam omissas, indefinidas, na penumbra deste maniqueísmo. Mas também estamos conscientes de que ele pode suscitar um vivo debate, o que seria salutar.
[2] Lanzarini, Corinne, Survivre dans le monde sous-prolétaire. Paris: PUF, 2000, pp.1-11.
[3] Certeau, Michel de, L'invention du quotidien 1. arts de faire. Paris: Gallimard/Folio essais, 1990, pp.59-63.
[4] Este termo é retirado de Houtart, François et Remy, Anselme, Haïti et la mondialisation de la culture, Étude des mentalités et des religions face aux réalités économiques, sociales et politiques. Port-au-Prince/Paris/Montréal: CRESFED/L'Harmattan, 2000, pp.20,179-183. Agradecemos a François Houtart a oferta da obra. Veja, também, Canevacci, Massimo, Sincretismos/Uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996, pp.26-29.
[5] Chamados marrons.
Os habitantes do primeiro têm possibilidades permanentes de transformar o problemático no não-problemático graças ao seu capital de recursos vitais assegurados (alojamento, alimentação, emprego, acesso a serviços dignos de saúde e ensino, sociabilidade plural, etc.). Eles vivem uma cidadania.
Mas já assim não acontece no outro mundo: neste, é necessário lutar duramente para garantir as bases reprodutivas da vida, cada dia é uma batalha dura no problemático, na busca sem tréguas de recursos vitais. Por isso os seus habitantes não vivem, mas sobrevivem prisioneiros da sua infra-cidadania[2]. Pense-se, por exemplo, nas crianças da rua ou nos mendigos das romarias de sextas-feiras em Maputo, que estão sempre “em cima da lâmina”, como diria o cantor moçambicano Jeremias Ngwenha.
No primeiro mundo temos estratégias de vida: portadores de um “lugar” e de um “próprio”, os seus actores trabalham para criar, proteger e reproduzir as regras do bem-estar.
No segundo mundo temos tácticas de sobrevivência: sem lugar definidor, os seus actores lutam no campo dos outros, definidos por eles. Sem um “próprio”, eles só podem jogar nas malhas e nos interstícios das regras dos actores do outro mundo. O seu horizonte é o dia-a-dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes, dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância, dos carteiristas, dos biscates, do vende e revende, da prostituição, da droga, das regras, enfim, de uma autêntica “contra-sociedade”. Como diria Michel de Certeau, o que aí se ganha não se guarda.[3]
Esse é, finalmente, o mundo multidimensional da marronização[4]: os seus actores não são escravos[5] que se furtam, como outrora nas Américas, aos senhores e aos agressores, desorientando-os em caminhos e abrigos escusos, mas actores de um processo que os exclui, que os mutila e que por isso percute a afirmação de uma cultura rizomática, profundamente oxímora, na qual a alteridade se joga pelo contra espacial, identitário, ocupacional, bricolado e simbólico.
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[1] Estamos conscientes das muitas questões que ficam omissas, indefinidas, na penumbra deste maniqueísmo. Mas também estamos conscientes de que ele pode suscitar um vivo debate, o que seria salutar.
[2] Lanzarini, Corinne, Survivre dans le monde sous-prolétaire. Paris: PUF, 2000, pp.1-11.
[3] Certeau, Michel de, L'invention du quotidien 1. arts de faire. Paris: Gallimard/Folio essais, 1990, pp.59-63.
[4] Este termo é retirado de Houtart, François et Remy, Anselme, Haïti et la mondialisation de la culture, Étude des mentalités et des religions face aux réalités économiques, sociales et politiques. Port-au-Prince/Paris/Montréal: CRESFED/L'Harmattan, 2000, pp.20,179-183. Agradecemos a François Houtart a oferta da obra. Veja, também, Canevacci, Massimo, Sincretismos/Uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996, pp.26-29.
[5] Chamados marrons.
Nova posse
“Nosso “amor ao próximo” não é na verdade um desejo imperioso de uma nova posse? E não acontece o mesmo relativamente ao amor à ciência e à verdade?” (Friedrich Nietzsche)
(Em A Gaia Ciência)
(Em A Gaia Ciência)
O coração
Em sociologia, acontece a alguns que as leis subam aos seus cérebros; no meu caso, a coisa é bem mais complexa: é o coração que faz amor com o cérebro.
A morte das ciências em África
Pouco a pouco as ciências morrem em África em tudo o que ela tem (tinha) de local, de agendas locais, de pensamento local. Deixamos de pensar, passamos a ser pensados. Segundo um estudo recente, a pesquisa não desapareceu, mas em muitos locais o seu modo de produção mudou. Eis alguns princípios desses cenários:
- O cientista trabalha sob o acicate de uma encomenda externa e não nos carris da carreira académica
- A actividade exerce-se em redes mundiais
- A procura internacional (e não mais nacional) regula as agendas de pesquisa
- A busca de benefícios (mais do que de saberes) tornou-se a máxima de acção
- É o mercado que regula e avalia a actividade dos pesquisadores, não mais os pares.
A esse sombrio cenário escapam, ainda, países como a África do Sul e alguns países do norte de África.
(Ver Ronad Waast, Ministère des Affaires Étrangères (France), L´État des sciences en Afrique, Avril 2002, edição bilingue, também em língua inglesa).
- O cientista trabalha sob o acicate de uma encomenda externa e não nos carris da carreira académica
- A actividade exerce-se em redes mundiais
- A procura internacional (e não mais nacional) regula as agendas de pesquisa
- A busca de benefícios (mais do que de saberes) tornou-se a máxima de acção
- É o mercado que regula e avalia a actividade dos pesquisadores, não mais os pares.
A esse sombrio cenário escapam, ainda, países como a África do Sul e alguns países do norte de África.
(Ver Ronad Waast, Ministère des Affaires Étrangères (France), L´État des sciences en Afrique, Avril 2002, edição bilingue, também em língua inglesa).
Drenagem de cérebros africanos
Calcula-se que cerca de 20.000 quadros africanos qualificados deixem anualmente África à busca de melhores condições de trabalho nos Estados Unidos, na Europa e na Austrália.
(Segundo o “Notícias” de hoje)
(Segundo o “Notícias” de hoje)
O duplo constrangimento
Todos os anos a nossa imprensa dá conta da pressão popular para que mais escolas de todo o tipo sejam construídas.
As escolas estão apinhadas, uma grande parte delas não tem carteiras, muitos professores queixam-se quer de receber os seus ordenados tardiamente quer pura e simplesmente de os não receber porque foram roubados, como reconheceu há dias, agastado, o governador da Zambézia.
Está o Estado confrontado com um duplo constrangimento: se constrói mais escolas sujeita-se a não ter professores ou a tê-los mal preparados ou a tê-los sem ordenados, fora todo um outro conjunto de constrangimentos. Vê-se bem, então, o perfil de saída dos alunos assim “preparados” (um recente estudo mostrou uma generalizada corrupção ao nível do professorado); se não constrói escolas, sujeita-se à crítica popular e coloca o partido que o gere em risco de défice de apoio nos períodos eleitorais. Segundo dados do Ministério da Educação, neste momento há um milhão de crianças sem acesso à rede escolar.
As escolas estão apinhadas, uma grande parte delas não tem carteiras, muitos professores queixam-se quer de receber os seus ordenados tardiamente quer pura e simplesmente de os não receber porque foram roubados, como reconheceu há dias, agastado, o governador da Zambézia.
Está o Estado confrontado com um duplo constrangimento: se constrói mais escolas sujeita-se a não ter professores ou a tê-los mal preparados ou a tê-los sem ordenados, fora todo um outro conjunto de constrangimentos. Vê-se bem, então, o perfil de saída dos alunos assim “preparados” (um recente estudo mostrou uma generalizada corrupção ao nível do professorado); se não constrói escolas, sujeita-se à crítica popular e coloca o partido que o gere em risco de défice de apoio nos períodos eleitorais. Segundo dados do Ministério da Educação, neste momento há um milhão de crianças sem acesso à rede escolar.
28 abril 2006
Dois tipos de resistência
É possível considerar dois tipos de resistência: as imediatas e as de futuro.
Nas primeiras não é o “inimigo número 1” o visado, mas o inimigo imediato, aquele que está mais próximo, à mão. Os resistentes imediatos não pensam que a solução dos seus problemas possa estar num futuro qualquer (do tipo luta de libertação nacional, revolução, etc.).
Ao contrário, nas lutas de futuro, de longo curso, o que está em causa não é a solução imediata de qualquer problema premente, mas uma coisa bem mais ambiciosa: mudar os fundamentos da sociedade. Isso exige lutadores de uma espécie bem diferente.
Os primeiros vivem das oportunidades de circunstância, de forma biscateira, ao sabor do instante, da fugacidade do golpe, sem controlo do presente e, portanto, sem visão do futuro; os segundos controlam o presente, organizam o futuro por etapas, com rigor, com disciplina; se os primeiros vivem a táctica da circunstância, os segundos empenham-se na estratégia calculada do futuro; os primeiros são o reino da emoção, os segundos, o reino da matemática.
Quando o fosso existente entre as expectativas sociais (satisfação adiada de certas necessidades) e a realidade vivida (satisfação real dessas necessidades) se mostra severo, de uma margem de frustração intolerável, está-se, então, diante de uma potencial erosão da legitimidade do Estado e de condições para uma refutação passiva ou activa da assimetria social existente.
Nas primeiras não é o “inimigo número 1” o visado, mas o inimigo imediato, aquele que está mais próximo, à mão. Os resistentes imediatos não pensam que a solução dos seus problemas possa estar num futuro qualquer (do tipo luta de libertação nacional, revolução, etc.).
Ao contrário, nas lutas de futuro, de longo curso, o que está em causa não é a solução imediata de qualquer problema premente, mas uma coisa bem mais ambiciosa: mudar os fundamentos da sociedade. Isso exige lutadores de uma espécie bem diferente.
Os primeiros vivem das oportunidades de circunstância, de forma biscateira, ao sabor do instante, da fugacidade do golpe, sem controlo do presente e, portanto, sem visão do futuro; os segundos controlam o presente, organizam o futuro por etapas, com rigor, com disciplina; se os primeiros vivem a táctica da circunstância, os segundos empenham-se na estratégia calculada do futuro; os primeiros são o reino da emoção, os segundos, o reino da matemática.
Quando o fosso existente entre as expectativas sociais (satisfação adiada de certas necessidades) e a realidade vivida (satisfação real dessas necessidades) se mostra severo, de uma margem de frustração intolerável, está-se, então, diante de uma potencial erosão da legitimidade do Estado e de condições para uma refutação passiva ou activa da assimetria social existente.
O complexo de Ganga Zumba
Numa formulação freudiana, propomos que se veja a relação política no interior do que chamaremos complexo de Ganga Zumba[*].
Consiste no seguinte: todos os seres humanos são portadores de um capital de obediência formado ao longo das suas diferentes socializações, sendo estas, regra geral, aprendizagens e interiorização de regras e de fórmulas de obediência à Ordem. É por aí que se estruturam os veios de identificação e os laços afectivos primordiais: em termos freudianos, queremos ser como o nosso Pai (e, por extensão, como todos aqueles que simbolizam esse Pai e a sua autoridade: o professor, o curandeiro, o régulo, o administrador, o escritor, etc.); mas acontece que esse processo é contrariado por um desejo de sermos o próprio Pai e, se possível, de irmos para além dele: é aqui que nasce a desidentificação primordial e a aspiração prometeica a uma neo-identificação na personagem do rebelde, do subvertor, do anómico, do produtor de historicidade. Põe-se em marcha, então, o capital de desobediência. Um mundo de motivos e de condições pode reproduzir e, até, ampliar essa neo-identificação.
[*] Foi o primeiro chefe do quilombo de Palmarés, no nordeste do Brasil, formado no século XIX por cerca de 25 mil escravos fugidos dos campos e das condições desumanas de trabalho e de vida.
Consiste no seguinte: todos os seres humanos são portadores de um capital de obediência formado ao longo das suas diferentes socializações, sendo estas, regra geral, aprendizagens e interiorização de regras e de fórmulas de obediência à Ordem. É por aí que se estruturam os veios de identificação e os laços afectivos primordiais: em termos freudianos, queremos ser como o nosso Pai (e, por extensão, como todos aqueles que simbolizam esse Pai e a sua autoridade: o professor, o curandeiro, o régulo, o administrador, o escritor, etc.); mas acontece que esse processo é contrariado por um desejo de sermos o próprio Pai e, se possível, de irmos para além dele: é aqui que nasce a desidentificação primordial e a aspiração prometeica a uma neo-identificação na personagem do rebelde, do subvertor, do anómico, do produtor de historicidade. Põe-se em marcha, então, o capital de desobediência. Um mundo de motivos e de condições pode reproduzir e, até, ampliar essa neo-identificação.
[*] Foi o primeiro chefe do quilombo de Palmarés, no nordeste do Brasil, formado no século XIX por cerca de 25 mil escravos fugidos dos campos e das condições desumanas de trabalho e de vida.
O perfume entorpecente da estatística
Como têm sido descritos os actores em processo de exclusão social? Através de parâmetros do género "índice de desenvolvimento humano", "pobreza absoluta", "pobreza relativa", etc. Enormes massas de pessoas, esvaziadas do que nelas é vida, singularidade e diferença, são primeiro centrifugadas em questionários meticulosos e, depois, embaladas em números, coeficientes, percentagens, tabelas, medidas de tendência central, quartis, gráficos, etc. Tudo isso, todo esse magna que espalma, achata e concentra a Periferia, tal como concentramos múltiplos tomates num puré, é oriundo do centro de bem-estar, disciplinador e normalizador. Não é só uma questão de disfarçar a inanidade das concepções sob um imponente vocabulário vazio de sentido, mas, também e sobretudo, de esconder a desigualdade social sob o crédito seguro da estatística. Uma das consequências desse tipo de trabalho consiste na trituração dos actores e na sua reorganização classificatória e asseptizada em termos de "populações", "indivíduos", "grupos", "camadas vulneráveis", "parceiros sociais", etc., categorias amorfas, isentas de relações sociais, furtadas ao conflito social. Em lugar de analisarmos a lógica das relações sociais, descrevemos níveis geológicos dispostos segundo uma ordem decrescente de "mais pobre" a "menos pobre". Propomos, depois, as receitas: uma estrada, um posto médico, uma sala de aulas. Bons samaritanos, julgamos que, dessa maneira, mantendo intactas as relações sociais no interior das quais se geram todos os dias assimetrias e injustiças, teremos cumprido o nosso bom dever cívico em prol da redução da pobreza, da unidade entre os seres humanos e da redução dos conflitos.
Industrialização maputizada e efeito Mozal
Segundo dados de um estudo do Ministério de Indústria e Energia, Maputo cidade e Maputo província concentram 92% da actividade industrial do país.
Só o mega projecto da Mozal (alumínio) tem a seu cargo 67% da produção industrial.
É do economista Hipólito Hamela a expressão efeito Mozal.
Só o mega projecto da Mozal (alumínio) tem a seu cargo 67% da produção industrial.
É do economista Hipólito Hamela a expressão efeito Mozal.
O país real
O défice da conta corrente do Estado atingiu em 2005, 761 milhões de dólares, correspondente a cerca de 13% do PIB. No mesmo ano, o país exportou bens equivalentes a cerca de 1,8 biliões de dólares, dos quais mais de um bilião representam receitas provenientes da venda de alumínio e energia eléctrica.
Se o país deixasse de exportar alumínio (Mozal) e energia eléctrica (Cabora-Bassa), que representam cerca de 57% das exportações (um bilião de dólares) e onde o peso dos capitais moçambicanos é ínfimo, Moçambique teria receitas (765 milhões de dólares) quase equivalentes às do seu défice da conta corrente do Estado (761 milhões de dólares).
Neste país, a agricultura e as florestas apenas contribuem com 25% para o PIB, enquanto o sector de serviços representa 47%.
(Dados extraídos do “Notícias” do “Savana” de hoje)
Se o país deixasse de exportar alumínio (Mozal) e energia eléctrica (Cabora-Bassa), que representam cerca de 57% das exportações (um bilião de dólares) e onde o peso dos capitais moçambicanos é ínfimo, Moçambique teria receitas (765 milhões de dólares) quase equivalentes às do seu défice da conta corrente do Estado (761 milhões de dólares).
Neste país, a agricultura e as florestas apenas contribuem com 25% para o PIB, enquanto o sector de serviços representa 47%.
(Dados extraídos do “Notícias” do “Savana” de hoje)
O país do informal
De acordo com dados preliminares do Inquérito ao Sector Informal, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística, a economia informal do país ocupa 87% dos cerca de 14.401.500 indivíduos com idades superiores a sete anos, numa população de cerca de 19 milhões de pessoas.
Indiscutivelmente um dado importante e que mostra bem quanto nos informalizámos e nos informalizamos num país quase sem indústria nacional, com a maior parte das fábricas paralizada e onde a economia de serviços ocupa 47% do PIB.
(Dados extraídos do “Notícias” de hoje)
Indiscutivelmente um dado importante e que mostra bem quanto nos informalizámos e nos informalizamos num país quase sem indústria nacional, com a maior parte das fábricas paralizada e onde a economia de serviços ocupa 47% do PIB.
(Dados extraídos do “Notícias” de hoje)
De que lado estais?
Se vocês estiverem no sopé da montanha tereis um certo tipo de paisagem, naturalmente limitado. Mas se vocês estiverem no alto da montanha, a visibilidade é bem maior, podeis ver bem mais coisas, podeis captar como que as nervuras do social, os seus recantos mais íntimos, digamos que uma espécie de alma física das pessoas.
Se tiverdes um holofote, vereis uma parte da realidade. Se tiverdes dois holofotes, vereis uma fatia da realidade maior. Se tiverdes muitos holofotes, aumentará significativamente a visibilidade do social.
Mas aqui começa o real problema das ciências sociais.
O que deve entender-se por visibilidade? Será aquela visibilidade que transportamos desde Francis Bacon e que nos pede que eliminemos tudo aquilo que mascara a realidade e nos impede de ver correctamente o social? Será aquele modelo científico-natural do positivismo que tem por ideal uma ciência livre de preconceitos, de ideologia, de julgamentos de valor e de pressupostos políticos, uma ciência asseptizada?
Esse o nosso dilema, o real dilema.
Como tendes reparado, eu tenho de alguma forma feito a apologia desse modelo científico-natural, do ideal positivista, de uma espécie de física social à Comte, ao mesmo tempo que tenho tentado mostrar quanto dependemos de tudo aquilo que é a nossa variada socialização ao longo da vida. Tenho mesmo dito que nenhuma paisagem social pode ser vista fora do quadro de socialização que é o de cada um de nós.
Contradigo-me? Depende do que entendemos por contradição. Se por contradição entendermos o facto de sermos habitados por várias paisagens de verdade aproximativa, em luta, em bifurcação permanente, pluridimensionais, então eu contradigo-me com prazer.
No que me concerne, não me vejo incólume aos juízos de valor e à tomada clara de posições políticas.
Chegado lá ao alto da montanha, ao mirante mais elevado, ao beldevere, ao observatório como diz Michael Löwy (*), eu tomo logo posição: a posição alinhada pelos deserdados da terra, por todos aqueles que são excluídos dos frutos do bem-estar social. E não temo enunciar essa posição. Estar desse lado, é, para mim, estar no mirante mais elevado.
Não penso, porém, que essa posição tolha a criatividade sociológica, que mutile aquilo que Wright Mills chamou imaginação sociológica.
__________________________
(*) Löwy, Michael, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, Marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez Editora, 1994, 5ª edição revista.
Se tiverdes um holofote, vereis uma parte da realidade. Se tiverdes dois holofotes, vereis uma fatia da realidade maior. Se tiverdes muitos holofotes, aumentará significativamente a visibilidade do social.
Mas aqui começa o real problema das ciências sociais.
O que deve entender-se por visibilidade? Será aquela visibilidade que transportamos desde Francis Bacon e que nos pede que eliminemos tudo aquilo que mascara a realidade e nos impede de ver correctamente o social? Será aquele modelo científico-natural do positivismo que tem por ideal uma ciência livre de preconceitos, de ideologia, de julgamentos de valor e de pressupostos políticos, uma ciência asseptizada?
Esse o nosso dilema, o real dilema.
Como tendes reparado, eu tenho de alguma forma feito a apologia desse modelo científico-natural, do ideal positivista, de uma espécie de física social à Comte, ao mesmo tempo que tenho tentado mostrar quanto dependemos de tudo aquilo que é a nossa variada socialização ao longo da vida. Tenho mesmo dito que nenhuma paisagem social pode ser vista fora do quadro de socialização que é o de cada um de nós.
Contradigo-me? Depende do que entendemos por contradição. Se por contradição entendermos o facto de sermos habitados por várias paisagens de verdade aproximativa, em luta, em bifurcação permanente, pluridimensionais, então eu contradigo-me com prazer.
No que me concerne, não me vejo incólume aos juízos de valor e à tomada clara de posições políticas.
Chegado lá ao alto da montanha, ao mirante mais elevado, ao beldevere, ao observatório como diz Michael Löwy (*), eu tomo logo posição: a posição alinhada pelos deserdados da terra, por todos aqueles que são excluídos dos frutos do bem-estar social. E não temo enunciar essa posição. Estar desse lado, é, para mim, estar no mirante mais elevado.
Não penso, porém, que essa posição tolha a criatividade sociológica, que mutile aquilo que Wright Mills chamou imaginação sociológica.
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(*) Löwy, Michael, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, Marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez Editora, 1994, 5ª edição revista.
27 abril 2006
Sobre as causas
Reparem neste título e nesta monocausalidade: “Os doentes abandonam o tratamento da tuberculose em Moçambique devido à influência dos curandeiros” ("Notícias", 10 de Outubro de 1995, p.7).
Mas outras hipóteses, potencialmente agregáveis, que não apenas essa (A), podem ser tidas em conta:
B _ Os doentes sentem falta de afecto nos hospitais e postos de saúde
C – Escasseiam medicamentos
D – Faltam alimentos adequados
E – A demora na cura deixa-os angustiados
Etc.
A selecção de A é feita por exclusão, consciente ou não, dessas outras hipóteses:
1) [A v B v C v D v E]
2) ~ B
3) ~ C
3) ~ D
5) ~ E
_____________
6) A
Mas outras hipóteses, potencialmente agregáveis, que não apenas essa (A), podem ser tidas em conta:
B _ Os doentes sentem falta de afecto nos hospitais e postos de saúde
C – Escasseiam medicamentos
D – Faltam alimentos adequados
E – A demora na cura deixa-os angustiados
Etc.
A selecção de A é feita por exclusão, consciente ou não, dessas outras hipóteses:
1) [A v B v C v D v E]
2) ~ B
3) ~ C
3) ~ D
5) ~ E
_____________
6) A
Acções-aspirina
O que são "acções-aspirina"? Nas palavras de Paulo Freire, são aquelas acções
“cujo pressuposto fundamental é a ilusão de que é possível transformar o coração dos homens e das mulheres deixando intactas as estruturas sociais dentro das quais o coração não pode ter “saúde"[*].
[*] INODEP, El message de Paulo Freire y práctica de la libéración. Madrid: Marsiega [1973?], p.131.
“cujo pressuposto fundamental é a ilusão de que é possível transformar o coração dos homens e das mulheres deixando intactas as estruturas sociais dentro das quais o coração não pode ter “saúde"[*].
[*] INODEP, El message de Paulo Freire y práctica de la libéración. Madrid: Marsiega [1973?], p.131.
Canetas, "asiáticos" e "negros"
Na edição de hoje no semanário “Zambeze” existem duas interessantes crónicas a propósito do leilão, logo após uma sessão de quadros do partido Frelimo, de duas canetas de ouro usadas pelo presidente da República (e não de uma, como escrevemos numa entrada há dias, seguindo o jornal “Notícias”).
Numa, da autoria de Paulo Jossias, aparece todo um grande lamento pelo facto de “os quadros do Partido de origem asiática, vulgarmente chamados monhés” (sic) terem de alguma forma humilhado os seus camaradas negros, “bantus” (sic), com semelhante ostentação financeira. Ora, argumentou Paulo Jossias, os "bantus" não possuem o poder financeiro dos “monhés”, estes que se identificam mais com "interesses externos" (sic). Mal vai este país quando os “negros” não têm poder económico, assim sente Paulo Jossias.
Na segunda crónica, de Lourenço Jossias, a dicotomia racial também existe, mas com um eixo de análise bem diferente: primeiro, Lourenço Jossias afirma que conhece “muitos negros militantes da Frelimo ali presentes com poder e capacidade para entrar num tal game”. Segundo, o jogo era livre e qualquer um podia jogar, democracia é isso mesmo. As regras do jogo foram cumpridas. Podem mudar-se as regras dentro da equipa, mas, aberto o jogo, as regras devem ser respeitadas, segundo Lourenço Jossias.
Sugiro aos bloguistas que leiam ou releiam uma entrada minha, mais abaixo, onde escrevi sobre racismo e etnicidade.
Numa, da autoria de Paulo Jossias, aparece todo um grande lamento pelo facto de “os quadros do Partido de origem asiática, vulgarmente chamados monhés” (sic) terem de alguma forma humilhado os seus camaradas negros, “bantus” (sic), com semelhante ostentação financeira. Ora, argumentou Paulo Jossias, os "bantus" não possuem o poder financeiro dos “monhés”, estes que se identificam mais com "interesses externos" (sic). Mal vai este país quando os “negros” não têm poder económico, assim sente Paulo Jossias.
Na segunda crónica, de Lourenço Jossias, a dicotomia racial também existe, mas com um eixo de análise bem diferente: primeiro, Lourenço Jossias afirma que conhece “muitos negros militantes da Frelimo ali presentes com poder e capacidade para entrar num tal game”. Segundo, o jogo era livre e qualquer um podia jogar, democracia é isso mesmo. As regras do jogo foram cumpridas. Podem mudar-se as regras dentro da equipa, mas, aberto o jogo, as regras devem ser respeitadas, segundo Lourenço Jossias.
Sugiro aos bloguistas que leiam ou releiam uma entrada minha, mais abaixo, onde escrevi sobre racismo e etnicidade.
A configuração sociológica
Ontem eu ouvi um pouco na rádio o debate na Assembleia da República. Houve uma violenta troca de palavras entre membros da Frelimo (partido no poder) e membros da Renamo (partido na oposição). Escutando deliciado, lembrei-me de algo que escrevi anos atrás. Vou recordar.
Bastam poucos minutos de atenção para percebermos que o parlamento é uma configuração sociológica com dois extractos dominantes: o frelimiano e o renamiano. Em cada um deles, as pessoas são diferentes, as suas ideias são diferentes, as suas vidas sociais também. É muito possível que pessoas de cada extracto se contactem fora das fronteiras dos territórios políticos. Mas face a um problema em debate sobre o qual é preciso tomar uma decisão, mesmo que esse problema não seja «de vida ou de morte», as diferenças são regra geral apagadas em favor da delimitação instintiva das fronteiras do território partidário e o apontar dos canhões para os territórios partidários inimigos. Pessoas que são calmas tornam-se nervosas; pessoas nervosas tornam-se mais nervosas; pessoas que em outras circunstâncias não bateriam palmas, não troçariam, não vituperariam, não alçariam ombros, não teriam tão intenso dispêndio corporal e afectivo, batem palmas, troçam, vituperam, alçam ombros, mexem-se e zangam-se. Colidem gramáticas corpo-emocionais, anátemas, estigmas, ameaças, idiomas grupuais; entrechocam símbolos, heróis epónimos, bandeiras, representações sociais, histórias edificantes sobre as comunidades espirituais de origem, requisitos e hábitos culturais, componentes específicas de honra étnica; expectativas tornam-se práticas na confrontação, actualizam-se, determinam-se. Se se discutem, por exemplo, os privilégios do «Sul» em relação ao «Centro» e ao «Norte» do país, pessoas de cada uma dessas «regiões» dão-se braços dentro das fronteiras do partido X e do cimento aglutinador e nivelador dos seus ideais políticos contra os ideais do partido Y e/ou Z; machangane, vanhungué, maronga, makonde, vandau, não interessa quem, federam-se à sombra do partido X para lutar contra outras formações com uma composição «étnica» idêntica, mesmo que individualmente sintam que os outros têm razão e que em outras circunstâncias se empenhariam em ser ou fazer o que gostariam de ser ou fazer. E essa polaridade pode nascer mesmo em torno duma modesta estrada que não foi construída ou que se o foi, é suposto tê-lo sido mal.
Desafio-os a negar que estais diante de exemplos de etnicidade, se esta for vista pelo ângulo da relação Nós/Eles.
Bastam poucos minutos de atenção para percebermos que o parlamento é uma configuração sociológica com dois extractos dominantes: o frelimiano e o renamiano. Em cada um deles, as pessoas são diferentes, as suas ideias são diferentes, as suas vidas sociais também. É muito possível que pessoas de cada extracto se contactem fora das fronteiras dos territórios políticos. Mas face a um problema em debate sobre o qual é preciso tomar uma decisão, mesmo que esse problema não seja «de vida ou de morte», as diferenças são regra geral apagadas em favor da delimitação instintiva das fronteiras do território partidário e o apontar dos canhões para os territórios partidários inimigos. Pessoas que são calmas tornam-se nervosas; pessoas nervosas tornam-se mais nervosas; pessoas que em outras circunstâncias não bateriam palmas, não troçariam, não vituperariam, não alçariam ombros, não teriam tão intenso dispêndio corporal e afectivo, batem palmas, troçam, vituperam, alçam ombros, mexem-se e zangam-se. Colidem gramáticas corpo-emocionais, anátemas, estigmas, ameaças, idiomas grupuais; entrechocam símbolos, heróis epónimos, bandeiras, representações sociais, histórias edificantes sobre as comunidades espirituais de origem, requisitos e hábitos culturais, componentes específicas de honra étnica; expectativas tornam-se práticas na confrontação, actualizam-se, determinam-se. Se se discutem, por exemplo, os privilégios do «Sul» em relação ao «Centro» e ao «Norte» do país, pessoas de cada uma dessas «regiões» dão-se braços dentro das fronteiras do partido X e do cimento aglutinador e nivelador dos seus ideais políticos contra os ideais do partido Y e/ou Z; machangane, vanhungué, maronga, makonde, vandau, não interessa quem, federam-se à sombra do partido X para lutar contra outras formações com uma composição «étnica» idêntica, mesmo que individualmente sintam que os outros têm razão e que em outras circunstâncias se empenhariam em ser ou fazer o que gostariam de ser ou fazer. E essa polaridade pode nascer mesmo em torno duma modesta estrada que não foi construída ou que se o foi, é suposto tê-lo sido mal.
Desafio-os a negar que estais diante de exemplos de etnicidade, se esta for vista pelo ângulo da relação Nós/Eles.
A relação
Por exemplo, suponhamos este fenómeno passado numa banca do mercado central de Maputo: quero comprar alface, esta está, suponhamos, a 3.000, 00 Mts o molho (certamente calculei por defeito), eu acho o preço exagerado, entendo, por exemplo, que 2.500,00 Mts seria mais justo. Segue-se uma prova de «força», uma «relação de poder» entre mim e a vendedeira. Esta teria, naturalmente, preferido que o preço subisse, eu, que ele baixasse. Eu coloco-me na minha posição de comprador, sou momentaneamente todos os outros compradores, encarno-os na sua essência, na sua língua, nos seus valores, na sua moral (somos honestos, os comerciantes são quem rouba), nos períodos áureos da sua história, nos seus heróis (suponhamos aqueles que sempre conseguiram comprar mais barato), nos seus mitos (estar convencido de ter sempre razão, de que os vendedores dependem dos consumidores), nos seus costumes e símbolos (cesto, carteira, dinheiro, a pergunta padrão imale muni leswi? - quer dizer, quanto custa isto? - ou unguenipumbeli kê? - isto é, não faz abatimento?). É com esses olhos plurais e interdependentes que vejo a relação e me mantenho na prova de força com a vendedeira que, por sua vez, é, ela também, o tipo médio de todos os seus colegas, igualmente portadora dos seus valores, da sua moral, da sua história, dos seus heróis, dos seus mitos e símbolos, etc. Ambos falamos a mesma língua, mas divergimos nos objectivos. Ela não pode ser vendedora sem mim e eu, comprador sem ela. Cada uma das nossas identidades só tem sentido quando simultaneamente confrontada com a alteridade e na interpenetração, modesto que seja o território de luta. Pode acontecer que cheguemos, finalmente, a um acordo, certamente que chegamos sempre a um acordo, embora possa acontecer que não cheguemos. Mas isso não é relevante para o nosso caso aqui. O que é relevante é a cadeia de pressupostos que combustibiliza o processo e potencializa o resultado, é a tensão, a mobilidade de todas as provas de força que preenchem as relações sociais.
Nesse processo de um exemplo simples, de um jogo a dois, estão os ingredientes potenciais (por que não reais?) de uma relação digamos que «étnica».
Nesse processo de um exemplo simples, de um jogo a dois, estão os ingredientes potenciais (por que não reais?) de uma relação digamos que «étnica».
Questão fundamental
A questão fundamental não deve ser: O que é isto? Mas: Como opera a relação onde estão em interpenetração funcional «isto» e «aquilo» e «aqueloutro»? Ou: como é que uma dada formulação se adequa a uma dada realidade? E: é ela testável, refutável? Permite ela resolver melhor os problemas?
A tentação
Torna-se imperioso lutar contra a tentação constante de encontrar por trás de cada fenómeno uma intenção, uma essência, uma autodeterminação, um princípio primordial (o espírito do vinho no vinho, a virtude dormitiva no ópio ou enebriante no álcool, o desígnio de um espírito maligno numa morte ou numa seca). É essa intencionalidade ou é essa essencialidade que impregna, que cauciona perguntas do tipo «que é isto?», «que é etnicidade?», etc., porque perguntas desse tipo reenviam sempre para o essencialismo, para a busca do absoluto, do princípio primordial.
Intuição errada
Uma investigação feita entre imigrantes polacos no norte de França procurava meter em evidência os factores que poderiam facilitar ou perturbar a sua integração na sociedade francesa. Dois índices foram utilizados: integração na sociedade francesa (A) e ligação às tradições polacas (B) . Ora, a intuição ordenava que se A aumenta, B diminui. Portanto, A e B variariam em sentido inverso. Na verdade, era lógico pensar que quanto menos ligados estamos às tradições do país de origem mais possibildades temos de nos integrar na sociedade de acolhimento. Mas a investigação mostrou que a intuição estava errada, porque os dois índices variavam no mesmo sentido: mais os novos imigrantes estavam ligados aos valores tradicionais polacos, mais rapidamente eles se integravam na sociedade francesa[*].
[*]Boudon, Raymond, Les méthodes en Sociologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1970, 2e éd., colection «Que sais-je?», pp.18-19; também, Coiffier(Éliane), Crozet(Yves), Dehoux-Grafmeyer (Danielle), Faure (François) et Renaud (Jean-François), Sociologie basique. Paris: Nathan, 1990, p.30; Giddens, Anthony, Sociology. London: Polity Press, 1993, second edition, pp.8-25.
[*]Boudon, Raymond, Les méthodes en Sociologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1970, 2e éd., colection «Que sais-je?», pp.18-19; também, Coiffier(Éliane), Crozet(Yves), Dehoux-Grafmeyer (Danielle), Faure (François) et Renaud (Jean-François), Sociologie basique. Paris: Nathan, 1990, p.30; Giddens, Anthony, Sociology. London: Polity Press, 1993, second edition, pp.8-25.
Modernidade tradicionalizada
Tomemos em conta o mais modesto dumba-nengue da cidade de Maputo. Muitos de nós terão tendência em ver nele, plasmado, o sentido da tradição ou, se quiserdes, das tradições: o do comércio, o do vestuário das mamanas, o dos hábitos rurais, etc. Mas, na verdade, nada nele é tradicional. Esse dumba nengue é a produção diária, constante, de relações tributárias de várias redes de contactos, de negociações, de acordos ligadas à obtenção dos produtos, de viagens estratégicas: Suazilândia, África do Sul, desvios dos circuitos locais de produção e distribuição, acumulações de mais-valias periféricas ao nível do Estado, etc. Esse mundo impregna-se, ao mesmo tempo, de reinvenções linguísticas, políticas, corporais, modais, alimentares, etc. Ele é um momento da modernidade. Ou, se quiseredes, da modernidade tradicionalizada.
Desconfiar
Uma condição básica em sociologia é desconfiar sempre das intuições, do que parece óbvio ou evidente, de tudo aquilo que está coberto de camadas de evidência e de senso comum, de tudo aquilo que está sedimentado, soterrado sob os nossos capitais de sabedoria espontânea, de tudo aquilo que nos dizem que "é", enfim, que aparece envolto na ou caucionado pela autoridade sagrada, pelo político, por quem «sabe».
Mentalidade preguiçosa
Aqui tentamos lutar contra as interpretações de uma mentalidade preguiçosa e deploravelmente colonizadora que entende os actos africanos e, portanto, moçambicanos, como predeterminados, como se nada pudesse ser mudado porque tudo está, desde sempre, preconstruído. Na verdade, parece ser difícil hoje em África reflectir sobre essa mania à Tacott Parsons, quase algorítmica e bem eleática (sabeis, a do voo da seta, a qual verdadeiramente nunca se moveria na sua sucessão de estados de repouso), de reduzir a sociedade a estados congelados, pré-fabricados, de fisicalizá-la e, portanto, de naturalizá-la, remetendo-a para outra coisa (Razão, Lei, Costume, Tradição, Autoridade, etc.) que não para ela própria no seu constante, plural, poligonal e histórico fazer-se e pensar-se.
Dignidade e historicidade
Importa redar aos Moçambicanos (no que eles têm, como outros, de particular e de universal) a sua dignidade e a sua historicidade. O que faz a dignidade dos homens recobre-se, sempre, da historicidade do que são, impregna-se, para lembrar Alain Touraine, do poder de que eles dispõem menos para reproduzirem o que são do que para produzirem o que querem ser, menos para responderem à situação social do que para a pôr em questão, para se assegurarem, enfim, de uma história humanizada da modernidade, a qual é, afinal, «a história da afirmação crescente da consciência contra a lei do príncipe, do costume, do interesse, da ignorância e do medo»[*].
[*]Touraine, Alain, O retorno do actor, Ensaio sobre a Sociologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p.28.
[*]Touraine, Alain, O retorno do actor, Ensaio sobre a Sociologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p.28.
Defesa
Ontem como hoje, defendo que a sociologia tem por tarefa não ser pensada, mas pensar, que o que foi pensado tem de ser repensado.
26 abril 2006
A lixeira de Hulene em 2001
Quando se entra na maior lixeira, a de Hulene na cidade de Maputo, é impressionante ver-se o espectáculo logo à entrada: em ambos os lados de uma estrada que a corta ao meio, encontram-se montes e montes de lixo fumarento, com centenas de pessoas de todos os sexos esgaravatando, curvadas, escuras, figuras sombrias vistas de longe:
"Ao observarmos as pessoas em plena actividade, ficamos com a impressão de estarem em plena actividade de colheita ou de sementeira".[1]
À entrada da lixeira encontra-se invariavelmente um grupo de jovens agressivos, poucos dados à fala, roupa suja, farda militar, brincos nas orelhas, tatuagens nos braços e antebraços, a maior parte fumando cigarros, com heróis normalmente procurados na música sul-africana. Só falam se lhes dermos dinheiro. Estão com frequência em conflito entre si ou com outros jovens, a luta faz parte do seu quotidiano, a sua linguagem está cheia de frases curtas, acusadoras, com muitos insultos à mistura. Muitos deles tentaram sem êxito encontrar um emprego na República da África do Sul, têm agregados numerosos nos quais vários são chefes de família. Muitos não têm pai ou têm os pais separados ou, ainda, estes estão desempregados, muitos deixaram de estudar por falta de recursos financeiros. Estão na lixeira porque todas as outras portas lhes foram vedadas. A responsabilidade, dizem, não lhes pertence. Solidariedade entre eles, xitique, interajuda? Não, cada um por si. Referindo-se ao Presidente da República e ao seu slogan de "futuro melhor" durante as eleições presidenciais de 1998, um jovem, falando em Shichangana[2], disse-nos:
"A hossi ya wena a y hinyiki n'tchumu! Himuvote le para futuro melhor! Hilei a futuro melhor ya cona! Huna hodla kolana [Estamos a desenrascar a vida porque o seu presidente nada nos dá! Votámos nele com vista um futuro melhor! Tal futuro é este que vivemos aqui! Comemos aqui, é esta vida do futuro melhor].[3]
Têm a consciência aguda de que há duas sociedades em Moçambique:
"Na sua óptica, nós, que não vivemos na lixeira, é que temos tudo (…) as pessoas confundem-nos com elementos do Governo, apesar de sempre explicarmos que somos estudantes-investigadores. Estão convictos de que são uma sociedade e de que nós somos outra vivendo em óptimas condições, beneficiando do bem-estar."[4]
Desconfiados, descrentes, eles opõem uma barreira imediata, hostil, a qualquer contacto. Mas se descobrem que podemos, de alguma maneira, ser-lhes úteis (a oferta de um cigarro, de alguns meticais, a convicção de que poderemos melhorar as suas vidas arranjando-lhes um emprego), tornam-se quase acessíveis. Quando assim acontece dão largas às suas histórias de vida, nas quais enxertam toda uma componente de onirismo social, tomando por concretizado o que ainda sonham, enchendo o passado de feitos dramatizados. Assim forjam identidades de substituição.
No interior da lixeira estão homens, mulheres com crianças de colo, crianças e adolescentes, idosos.
Existe uma pocilga pertencente a um trabalhador da Câmara Municipal. Os porcos destinam-se à venda. Há, também, um pequeno mercado, a cargo de senhoras, onde se vende sumo de morango, pão, badgia[5], maheu[6], xicaba[7], etc., tudo envolto em poeira e moscas.
A actividade lixeira tem três etapas:
A primeira, da primeira colheita, acontece quando os carros chegam à lixeira: aí, céleres, mais fortes, os jovens que se postam à entrada de manhã à noite saltam para as carroçarias e começam imediatamente a vasculhar e a seleccionar o "melhor" lixo.
A segunda, da colheita em profundidade, tem lugar depois que o lixo foi despejado. Acontece mesmo que o lixo chega a ser despejado juntamente com os jovens que lá estão dentro. Da vasculha encarregam-se então os mais velhos, as mulheres e as crianças. Os funcionários camarários podem antecipar-se aos jovens, recolhendo ao longo do percurso das viaturas até chegarem ao Hulene ou fazê-lo na segunda etapa.[8]
A terceira e última etapa consiste no preparo dos produtos recolhidos para venda. Esta tem duas modalidades: ou é feita a clientes fixos ou ocasionais que chegam para comprar o que está disponível ou são os próprios lixeiros que, por si próprios ou por intermediários, vendem ou mandam vender.[9]
De tudo um pouco se recolhe, se organiza, se reorienta e se vende: restos de comida, alimentos enlatados fora do prazo, objectos de ferro, alumínio, latão, estanho, fio de cobre, garrafas de vidro e plásticas, frascos diversos, madeira, cartão, papel, lixo hospitalar, pedras, filtros de cigarro, mobília danificada, cafulos[10] de coco[11], esponjas, algodão, vidro, borracha, etc., para venda nos dumba-nengues, em particular no Xiquelene. [12]
Os restos de comida são preparados na lixeiras e aqui consumidos.
[1] Chefo, Carlos, Diário de campo da lixeira de Hulene. Maputo: Agosto de 2001.
[2] Língua falada em Maputo.
[3] Ibid. Repare-se que o jovem não diz "o nosso presidente, mas "o seu presidente". Por outro lado, tenha-se em conta que a responsabilidade política não é imputada a um partido, mas a uma pessoa, ao Chefe.
[4] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.
[5] Espécie de bolo com a forma de uma rodela espalmada feito de feijão nhemba e que é comido frito.
[6] Bebida fermentada e açucarada feita de farinha de milho.
[7] Mistura de amendoim e de farinha de mandioca pilados e torrados.
[8] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.
[9] Ibid.
[10] Singular cafulo = casca.
[11] Serve, por exemplo, a modos de copo e de combustível.
[12] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.
"Ao observarmos as pessoas em plena actividade, ficamos com a impressão de estarem em plena actividade de colheita ou de sementeira".[1]
À entrada da lixeira encontra-se invariavelmente um grupo de jovens agressivos, poucos dados à fala, roupa suja, farda militar, brincos nas orelhas, tatuagens nos braços e antebraços, a maior parte fumando cigarros, com heróis normalmente procurados na música sul-africana. Só falam se lhes dermos dinheiro. Estão com frequência em conflito entre si ou com outros jovens, a luta faz parte do seu quotidiano, a sua linguagem está cheia de frases curtas, acusadoras, com muitos insultos à mistura. Muitos deles tentaram sem êxito encontrar um emprego na República da África do Sul, têm agregados numerosos nos quais vários são chefes de família. Muitos não têm pai ou têm os pais separados ou, ainda, estes estão desempregados, muitos deixaram de estudar por falta de recursos financeiros. Estão na lixeira porque todas as outras portas lhes foram vedadas. A responsabilidade, dizem, não lhes pertence. Solidariedade entre eles, xitique, interajuda? Não, cada um por si. Referindo-se ao Presidente da República e ao seu slogan de "futuro melhor" durante as eleições presidenciais de 1998, um jovem, falando em Shichangana[2], disse-nos:
"A hossi ya wena a y hinyiki n'tchumu! Himuvote le para futuro melhor! Hilei a futuro melhor ya cona! Huna hodla kolana [Estamos a desenrascar a vida porque o seu presidente nada nos dá! Votámos nele com vista um futuro melhor! Tal futuro é este que vivemos aqui! Comemos aqui, é esta vida do futuro melhor].[3]
Têm a consciência aguda de que há duas sociedades em Moçambique:
"Na sua óptica, nós, que não vivemos na lixeira, é que temos tudo (…) as pessoas confundem-nos com elementos do Governo, apesar de sempre explicarmos que somos estudantes-investigadores. Estão convictos de que são uma sociedade e de que nós somos outra vivendo em óptimas condições, beneficiando do bem-estar."[4]
Desconfiados, descrentes, eles opõem uma barreira imediata, hostil, a qualquer contacto. Mas se descobrem que podemos, de alguma maneira, ser-lhes úteis (a oferta de um cigarro, de alguns meticais, a convicção de que poderemos melhorar as suas vidas arranjando-lhes um emprego), tornam-se quase acessíveis. Quando assim acontece dão largas às suas histórias de vida, nas quais enxertam toda uma componente de onirismo social, tomando por concretizado o que ainda sonham, enchendo o passado de feitos dramatizados. Assim forjam identidades de substituição.
No interior da lixeira estão homens, mulheres com crianças de colo, crianças e adolescentes, idosos.
Existe uma pocilga pertencente a um trabalhador da Câmara Municipal. Os porcos destinam-se à venda. Há, também, um pequeno mercado, a cargo de senhoras, onde se vende sumo de morango, pão, badgia[5], maheu[6], xicaba[7], etc., tudo envolto em poeira e moscas.
A actividade lixeira tem três etapas:
A primeira, da primeira colheita, acontece quando os carros chegam à lixeira: aí, céleres, mais fortes, os jovens que se postam à entrada de manhã à noite saltam para as carroçarias e começam imediatamente a vasculhar e a seleccionar o "melhor" lixo.
A segunda, da colheita em profundidade, tem lugar depois que o lixo foi despejado. Acontece mesmo que o lixo chega a ser despejado juntamente com os jovens que lá estão dentro. Da vasculha encarregam-se então os mais velhos, as mulheres e as crianças. Os funcionários camarários podem antecipar-se aos jovens, recolhendo ao longo do percurso das viaturas até chegarem ao Hulene ou fazê-lo na segunda etapa.[8]
A terceira e última etapa consiste no preparo dos produtos recolhidos para venda. Esta tem duas modalidades: ou é feita a clientes fixos ou ocasionais que chegam para comprar o que está disponível ou são os próprios lixeiros que, por si próprios ou por intermediários, vendem ou mandam vender.[9]
De tudo um pouco se recolhe, se organiza, se reorienta e se vende: restos de comida, alimentos enlatados fora do prazo, objectos de ferro, alumínio, latão, estanho, fio de cobre, garrafas de vidro e plásticas, frascos diversos, madeira, cartão, papel, lixo hospitalar, pedras, filtros de cigarro, mobília danificada, cafulos[10] de coco[11], esponjas, algodão, vidro, borracha, etc., para venda nos dumba-nengues, em particular no Xiquelene. [12]
Os restos de comida são preparados na lixeiras e aqui consumidos.
[1] Chefo, Carlos, Diário de campo da lixeira de Hulene. Maputo: Agosto de 2001.
[2] Língua falada em Maputo.
[3] Ibid. Repare-se que o jovem não diz "o nosso presidente, mas "o seu presidente". Por outro lado, tenha-se em conta que a responsabilidade política não é imputada a um partido, mas a uma pessoa, ao Chefe.
[4] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.
[5] Espécie de bolo com a forma de uma rodela espalmada feito de feijão nhemba e que é comido frito.
[6] Bebida fermentada e açucarada feita de farinha de milho.
[7] Mistura de amendoim e de farinha de mandioca pilados e torrados.
[8] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.
[9] Ibid.
[10] Singular cafulo = casca.
[11] Serve, por exemplo, a modos de copo e de combustível.
[12] Chefo, Carlos, Diário…, op.cit.
A priori
Todos os seres humanos são portadores de a priori, seja ao nível do pensamento espontâneo, seja ao nível do pensamento metódico. Por isso, a primeira condição da compreensão dos actos de outrem consiste em estar consciente disso, em estar consciente de que preposições subjectivas metaconscientes contaminam constantemente as preposições objectivas dos nossos raciocínios e, em particular, dos nossos processos indutivos.
Imputação
Uma parte significativa do nosso povo, especialmente nas áreas rurais, crê que os fenómenos da vida e da natureza são governados por entidades sobre-humanas e sobrenaturais. Trata-se quer do pensamento simbólico analógico (que opera mediante seres análogos aos humanos, mas mais poderosos e capazes de actuar sobre a natureza), quer do pensamento simbólico em si (no qual está em causa a eficácia imediata do símbolo)[1].
No dia 6 de Abril de 2000, por exemplo, a Rádio Moçambique apresentou no seu programa noticioso das 6 horas uma reportagem sobre os dramas vividos numa escola primária situada no distrito de Jangamo, província de Inhambane, no sul do país, na qual 200 alunos estavam com as aulas paralisadas devido ao grande número de ofídios, fugidos das cheias[2], que inundavam as salas e as redondezas do estabelecimento.
Interrogado pela Rádio Moçambique sobre a origem do fenómeno, o director da escola afirmou que se tratavam de cobras mágicas, enviadas expressamente por alguém que importava descobrir. Para o efeito, os velhos do local tinham sido contactados e preparado cerimónias especiais destinadas a localizar e a neutralizar o proprietário dos ofídios.
A crença na gestão mágica de animais está muito arreigada nas zonas rurais do país. Assim, especialmente nas províncias do Centro/Norte, onde a rede escolar é menos desenvolvida (quer em recursos técnicos, quer na qualidade dos professores) do que no Sul, os camponeses acreditam que proprietários de leões e de crocodilos os utilizam para fazer mal a outrém. Daí, afirmam, a razão por que tantas pessoas são comidas por esses animais.
Mas a crença na acção mágica à distância[3] contempla, também, os fenómenos da natureza.
Assim, na Zambézia, por exemplo, uma província do Centro do país, quando não chove é suposto que alguém prendeu (otomola) a chuva ao céu. Segue-se, então, um autêntico processo de revisão comunitária, com os contra-feiticeiros procurando o responsável pelo mal. Invariavelmente, uma mulher idosa é acusada e, frequentemente, agredida e/ou morta.
Por outro lado, uma parte significativa dos Moçambicanos vive atormentada com a acção dos espíritos. Se morrem duas pessoas numa zona, é suposto que isso só pode ser devido à acção mágica de uma parente ou, menos vezes, de um estranho. Segue-se uma laborioso processo de consulta aos curandeiros, cada vez mais oneroso em Maputo[4], capital do país.
Uma parte importante dos processos que passam em julgado pelos tribunais comunitários[5] de Moçambique é constituída pela resolução de litígios envolvendo acusações de feitiçaria, com a presença, muitas vezes, de membros da Associação dos Médicos Tradicionais[6]. A produção de prova é efectuada mediante o exame e a peritagem de indícios probantes (fenómenos estranhos, instabilidade familiar ou social, coincidência, similitude, atitude pouco habitual do acusado ou da acusada, etc.). Os condenados têm, muitas vezes, de pagar importante somas pecuniárias.
Fenómenos como os descritos[7] são especialmente visíveis nos arrabaldes pobres das cidades, em particular de Maputo, combinando-se com fenómenos de outra racionalidade. Assim, muitos doentes que se dirigem aos serviços de urgência dos hospitais são seres mestiços[8]: capazes de tomar a aspirina ou de se submeterem ao plasmódio, não perdem, porém, a oportunidade de consultar também o curandeiro e de seguir os seus conselhos. Aliás, a mesma mestiçagem opera nas zonas rurais, ainda que menos intensamente.
As minhas turmas universitárias de Metodologia de Investigação costumam ter entre 80 e 90% de estudantes que, por um lado, acreditam na causalidade metassocial (espírita, por exemplo) e metanatural e, por outro, estão, como aqui dizemos, “blindados”, quer dizer, protegidos desde a infância por uma cerimónia anti-mágica identificada por um pequena incisão no peito ou no braço. Perante este quadro, os professores de ciências sociais estão confrontados com múltiplos caminhos e inúmeras mestiçagens de imputação causal quando se indaga o social e se pergunta, sobre este ou aquele fenómeno, ao estudante: “Por quê?”
Mesmo quando a situação social muda, as representações sociais continuam actuantes, como se observa especialmente nas cidades.
A pergunta “qual é o mecanismo inerente a este fenómeno?”, é substituída por perguntas do tipo “qual é o significado deste fenómeno para nós?“, “quem está encolerizado connosco?” ou “por que razão fez ele isto?”[9]
Via educação, as pessoas são como que “formatadas” a encarar a vida e a natureza pelo prisma das forças ocultas, esteio psicológico (“eficácia moral e intelectual”, diria Comte) que sempre reencanta o mundo quando este é agressivo ou como tal sentido.
________________________________________
[1] Veja Houtart, François et Remy, Anselme, Haiti et la mondialisation de la culture, Étude des mentalités et des religions face aux rélités économiques, sociales et politiques. Paris: CRESFED/L’Harmattan, 2000, pp.40-41 et seq.
[2] Cheias que afectaram especialmente o Sul e o Norte de Moçambique, matando cerca de 700 pessoas, destruindo milhares de casas e danificando centenas de infra-estruturas (aí compreendidas as de fornecimento de energia e água).
[3] Veja, a propósito, Hebga, Meinrad, La rationalité d'un discours africain sur les phénomènes paranormaux. Paris: L'Harmattan, 1998, pp.225-246.
[4] O ofício de curandeiro (que é, normalmente, também, um contra-feiticeiro) é cada vez mais procurado em Moçambique. O mercado é florescente. Os curandeiros mais ricos inserem anúncios publicitários nos jornais, têm carro e usam celular. Por outro lado, são cada vez mais numerosos os curandeiros estrangeiros que se fixam especialmente em Maputo, provocando o descontentamento dos nacionais.
[5] Tribunais cuja função é, especialmente, a de atender a problemas culturais locais, aconselhando, procurando a concórdia e aplicando, quando necessário, pequenas penas correctivas.
[6] Instituição juridicamente reconhecida, agrupando curandeiros.
[7i] A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) parece ser aquela que em Moçambique melhor explora a crença nos espíritos e na acção à distância.
[8] Veja Laplatine, François et Nouss, Alexis, Le Métissage. Paris: Dominos/Flammarion, 1997; Laplatine, François, Je, nous et les autres, Être humain au-delà des appartenances. Paris: Le Pommier, 1999.
[9] Elias, Norbert, Engagement et distanciation. Contribution à la sociologie de la connaissance. Paris: Fayard, 1993, p.94
Pecado original
Quanto mais estudo, quanto mais investigo, mais dúvidas tenho. O que, para mim, é bem salutar. Quando se tem dúvidas avança-se; quando se tem certezas, vai-se para o céu. Prefiro uma hipótese jovem a uma certeza rizomaticamente incontornável. E sempre detestarei aqueles que, aqui e ali, tentam fazer passar a mensagem eufórica do saber concluído, da proteína epistemológica, que tentam, quantas vezes!, dizer ou escrever os mais horríveis lugares-comuns com "ar profundo", como diria Marx.
Deus é como uma saudade
Em 2001, a minha assistente Helena Monteiro viveu um mês dentro do Hospital Psiquiátrico de Nampula. A ideia era saber se os doentes mentais que lá estavam o eram efectivamente. Eis a transcrição por ela feita, no seu diário de campo, do diálogo com um “doente mental” (T), que estava acompanhado de um outro (M):
Helena: Onde arranjaste essas coisas que estão na sacola?
T.: Sou um apanhador…
Helena: Gostas de ficar aqui?
T.: Isto é gaiola.
Helena: Gaiola como?
T.: É tipo gaiola, irmã!
M.: É casa, não é gaiola!
T.: Se é prédio por que parece gaiola? Por que marcam horas para voltar [fez esta pergunta a M.: que não respondeu]"
Clausura, mas, também, tristeza sem fronteiras:
T.: Corro em quilómetros quadrados [riso], quando passo pareço um fantasma porque passo depressa. Irmã, você tem religião?
Helena: Tenho, sou católica.
T.: Jesus está na terra, não está no céu, está enterrado, está a pensar o que vai fazer nos séculos aonde vamos.
Helena: Você não pode falar assim de Deus.
T.: Deus é como uma saudade.
Helena: Onde arranjaste essas coisas que estão na sacola?
T.: Sou um apanhador…
Helena: Gostas de ficar aqui?
T.: Isto é gaiola.
Helena: Gaiola como?
T.: É tipo gaiola, irmã!
M.: É casa, não é gaiola!
T.: Se é prédio por que parece gaiola? Por que marcam horas para voltar [fez esta pergunta a M.: que não respondeu]"
Clausura, mas, também, tristeza sem fronteiras:
T.: Corro em quilómetros quadrados [riso], quando passo pareço um fantasma porque passo depressa. Irmã, você tem religião?
Helena: Tenho, sou católica.
T.: Jesus está na terra, não está no céu, está enterrado, está a pensar o que vai fazer nos séculos aonde vamos.
Helena: Você não pode falar assim de Deus.
T.: Deus é como uma saudade.
O que cantam
Cantores nossos como Jeremias Ngwenha, Roberto Chitsondzo, Zaida Chongo (infelizmente falecida), Mingas, Sharifo Salimo, David Mazembe, Claudino Andrade, Madala e outros cantam a pobreza, os preços elevados, a fome, etc.
Come sozinha, esta gente
I
Dizem para não dormir
Com um olho, irmão
Vai inchar e despertar
Ver o nascer do sol
Estão a festejar, desperta
II
Comem sozinhos e limpam as bocas
Esta gente até nos ajuda a chorar
III
É cá comigo, que sou pato, irmão
As galinhas esgaravatam
O cabrito come onde está amarrado
E eu estou sendo morto porque não estudei
IV
Na escola sou grande
No serviço sou pequeno
Estou sendo morto porque não estudei
Come sozinha, esta gente
(letra de uma famosa canção de Jeremias Ngwenha)
Dizem para não dormir
Com um olho, irmão
Vai inchar e despertar
Ver o nascer do sol
Estão a festejar, desperta
II
Comem sozinhos e limpam as bocas
Esta gente até nos ajuda a chorar
III
É cá comigo, que sou pato, irmão
As galinhas esgaravatam
O cabrito come onde está amarrado
E eu estou sendo morto porque não estudei
IV
Na escola sou grande
No serviço sou pequeno
Estou sendo morto porque não estudei
Come sozinha, esta gente
(letra de uma famosa canção de Jeremias Ngwenha)
A sociologia dos pontos de interrogação
O problema não está nas perguntas que fizemos ao social nem nas respostas que obtivemos.
Também não habita a cama da nossa satisfação por termos chegado ao que, com deleite, chamamos conclusões.
O problema central, amigos, está nas perguntas que não fizemos, nas respostas que poderíamos ter tido e na insatisfação que deveria ser a nossa.
Nenhum sociólogo obtém respostas: apenas obtém novos pontos de interrogação.
A sociologia é a busca de novos pontos de interrogação.
Com as vírgulas caminhamos devagar um pouco, com os dois pontos paramos um pouco, com os pontos de interrogação (assumidos, em nós fortemente ancorados, término do nosso percurso) devemos ter a coragem e a honestidade de regressar ao princípio. Respeitemos a humildade desses pontos.
Porque se as nossas respostas estivessem certas, dispensávamos políticos e deuses.
Também não habita a cama da nossa satisfação por termos chegado ao que, com deleite, chamamos conclusões.
O problema central, amigos, está nas perguntas que não fizemos, nas respostas que poderíamos ter tido e na insatisfação que deveria ser a nossa.
Nenhum sociólogo obtém respostas: apenas obtém novos pontos de interrogação.
A sociologia é a busca de novos pontos de interrogação.
Com as vírgulas caminhamos devagar um pouco, com os dois pontos paramos um pouco, com os pontos de interrogação (assumidos, em nós fortemente ancorados, término do nosso percurso) devemos ter a coragem e a honestidade de regressar ao princípio. Respeitemos a humildade desses pontos.
Porque se as nossas respostas estivessem certas, dispensávamos políticos e deuses.
Os Outros
Existem nos Outros moçambicanos - os excluídos do bem- reservas de esperança, de crença de que melhores dias poderão vir.
São, afinal, Outros que, apesar de tudo, lutam e que continuam a aguardar pelo paradigma de Mondlane.
De acordo com Eduardo Mondlane, primeiro presidente da Frelimo, os camponeses recusavam aderir à luta de libertação nacional nos dois primeiros anos (1964/1966), desertando e juntando-se aos Portugueses, porque o movimento não estava preparado para lhes assegurar os serviços essenciais (lojas, hospitais, escolas, administração, tribunais, etc.), anteriormente a cargo dos Portugueses.
Dessa maneira, Mondlane estava a pôr o problema político, sempre actual, do pacto social. O paradigma de Mondlane pode ser assim enunciado: se um grupo dominante controlando o Estado exige fidelidade, os cidadãos exigem a redistribuição da riqueza. Se esta é assegurada, o Estado torna-se, no sentido de Gramsci, hegemónico, no sentido de que dirige, em lugar de coagir.
Ora, quando o Estado não assegura a reciprocidade no sentido indicado, não tem cidadãos, mas súbditos a quem pode maltratar.
Os súbditos continuam a aguardar a reciprocidade, com um forte sentido apelativo. Eles fogem do Estado porque não confiam nele, mas ao mesmo tempo esperam que mude. Existem evidências de que a concepção de democracia em Moçambique está profundamente ligada à satisfação de necessidades básicas como alimentação e paz e de que essa satisfação, mormente no que concerne ao bem-estar material, passa pelos estrangeiros e não pelo Estado. Por outro lado, herdeiros de um longo passado de gestão autoritária desde a era colonial, os súbditos parecem pouco preocupados com a democracia política tal como concebida pelas élites e pelos partidos políticos. O seu sonho está na democracia "económica".
E enquanto esperam, formatados entre o que sofrem e o que sonham, frágeis e expectantes, os súbditos refugiam-se no seu mundo, o mundo do informal, com um ponto de interrogação todos os dias plantado no seu futuro.
São, afinal, Outros que, apesar de tudo, lutam e que continuam a aguardar pelo paradigma de Mondlane.
De acordo com Eduardo Mondlane, primeiro presidente da Frelimo, os camponeses recusavam aderir à luta de libertação nacional nos dois primeiros anos (1964/1966), desertando e juntando-se aos Portugueses, porque o movimento não estava preparado para lhes assegurar os serviços essenciais (lojas, hospitais, escolas, administração, tribunais, etc.), anteriormente a cargo dos Portugueses.
Dessa maneira, Mondlane estava a pôr o problema político, sempre actual, do pacto social. O paradigma de Mondlane pode ser assim enunciado: se um grupo dominante controlando o Estado exige fidelidade, os cidadãos exigem a redistribuição da riqueza. Se esta é assegurada, o Estado torna-se, no sentido de Gramsci, hegemónico, no sentido de que dirige, em lugar de coagir.
Ora, quando o Estado não assegura a reciprocidade no sentido indicado, não tem cidadãos, mas súbditos a quem pode maltratar.
Os súbditos continuam a aguardar a reciprocidade, com um forte sentido apelativo. Eles fogem do Estado porque não confiam nele, mas ao mesmo tempo esperam que mude. Existem evidências de que a concepção de democracia em Moçambique está profundamente ligada à satisfação de necessidades básicas como alimentação e paz e de que essa satisfação, mormente no que concerne ao bem-estar material, passa pelos estrangeiros e não pelo Estado. Por outro lado, herdeiros de um longo passado de gestão autoritária desde a era colonial, os súbditos parecem pouco preocupados com a democracia política tal como concebida pelas élites e pelos partidos políticos. O seu sonho está na democracia "económica".
E enquanto esperam, formatados entre o que sofrem e o que sonham, frágeis e expectantes, os súbditos refugiam-se no seu mundo, o mundo do informal, com um ponto de interrogação todos os dias plantado no seu futuro.
Chapas
É em viaturas com deficiências técnicas, no meio da arbitrariedade, entre escorregadelas, quedas e apalpanços, que viajam os passageiros, apinhados, torcidos quantas vezes, especialmente nas horas de ponta, entre cestos e sacos de todos os tipos, com carteiristas estudando o momento de carregar sobre as presas, com homens encostando-se às mulheres em busca de prazer sexual imediato, com protestos de todos os tipos quando a velocidade é excessiva. A sobrelotação comanda e o trânsito se faz turbulento por estradas esburacadas.
Chamadores e cobradores de chapas
Chamadores e cobradores são as figuras-chaves de todo o circuito chapeiro. Jovens, com pouca escolaridade, normalmente membros de agregados familiares numerosos, muitas vezes chefes de família apesar da sua idade, desejosos de estudar ou de voltar a estudar, eles tornaram-se no que são quando - disseram-nos - falharam nas suas tentativas para encontrar um emprego decente. Trabalhando mais de 10 horas por dia, são muito agressivos, tornam-se especialmente insolentes para com as senhoras, o seu vocabulário é ferino, a forma de ser trai a raiva e o protesto. Como se por compensação, dentro de cada um deles parece habitar um potentado, um cacique. Não poucas vezes, os cobradores dizem: "Quem manda aqui sou eu!
Compra patrão, bom preço!
Quando se entra num dumba, quatro fenómenos chamam imediatamente a atenção: o ruído plural, o movimento desusado, o pregão dos vendedores "patrão compra aqui, faz bassela![1]" ou "compra patrão, bom preço!" ou "compra mano[2], preço de promoção!" e a subversão completa dos hábitos que temos de gestão espacial:
"Um ciclista vem da direcção dos Bombeiros, nem sequer sabe que está dentro dum mercado, vem a toda a velocidade, uma senhora que leva um cesto de alface e tem um bebé no colo anda sem dar conta de que um ciclista vem a todo o vapor, ela grita "Compra al-fa-ce!!!!!!", o ciclista chega e quase que apanha o pé da senhora, a bacia caiu e a senhora segurou o seu bebé e o ciclista caiu e apressado levantou-se, pegou na bicicleta e queria fugir, nem desculpas à senhora nem nada, mas à frente vinha um polícia que pegou na bicicleta e deu porrada na cara do ciclista e todo o mercado gritou "He! He! He!, Toma, dá-lhe mais!", o ciclista recebeu mais três porradas e foi levado para a esquadra."[3]
[1] Significa desconto em língua Chironga, na cidade de Maputo.
[2] Mano (diminutivo de irmão) e primo são dois termos muito frequentes nos dumbas, ao lado de pai/mãe, papá/mamã, tio/tia e patrão. O termo patrão não é só utilizado para os estrangeiros: um assistente meu, o Victor Matsinhe, por exemplo, foi rotulado de patrão quando quis conversar com os condutores de tchovas.
[3] Fátima Coleti. Mantive o estilo de escrita da minha colega.
"Um ciclista vem da direcção dos Bombeiros, nem sequer sabe que está dentro dum mercado, vem a toda a velocidade, uma senhora que leva um cesto de alface e tem um bebé no colo anda sem dar conta de que um ciclista vem a todo o vapor, ela grita "Compra al-fa-ce!!!!!!", o ciclista chega e quase que apanha o pé da senhora, a bacia caiu e a senhora segurou o seu bebé e o ciclista caiu e apressado levantou-se, pegou na bicicleta e queria fugir, nem desculpas à senhora nem nada, mas à frente vinha um polícia que pegou na bicicleta e deu porrada na cara do ciclista e todo o mercado gritou "He! He! He!, Toma, dá-lhe mais!", o ciclista recebeu mais três porradas e foi levado para a esquadra."[3]
[1] Significa desconto em língua Chironga, na cidade de Maputo.
[2] Mano (diminutivo de irmão) e primo são dois termos muito frequentes nos dumbas, ao lado de pai/mãe, papá/mamã, tio/tia e patrão. O termo patrão não é só utilizado para os estrangeiros: um assistente meu, o Victor Matsinhe, por exemplo, foi rotulado de patrão quando quis conversar com os condutores de tchovas.
[3] Fátima Coleti. Mantive o estilo de escrita da minha colega.
Como nasceram os dumba-nengues?
Nasceram um bocado como nascem os carreiros: por iniciativa de alguém, atrás de quem foram outros. Ninguém, mais tarde, sabe quem e quando começou: começou, pronto. De facto, um dia alguém começou a vender algo no local, dias depois são já vários os vendedores, a seguir surgem uma, duas barracas, duas, três bancas, dezenas de bancas, tempos depois temos um mercado, uma cidade perversa, o dumba nengue. Mas se no carreiro se trata de abrir uma passagem, no dumba trata-se normalmente de a cortar. Na verdade, a estrada é ocupada, inteiramente apropriada, colonizada.
Dumba-nengues e protecção mágica
A vida nos dumba-nuengues é sempre um ponto de interrogação. Haverá ganho suficiente para se comer à noite? E no dia seguinte?
Pelo sim pelo não previnamo-nos a todos os níveis contra o azar.
Assim, os vendedores munem-se de todas as protecções mágicas que estejam ao seu alcance e com elas procuram atrair clientes, evitar o mau olhado e curar as diarreias e as febres dos filhos menores, depois que as compraram nas "farmácias tradicionais" dos dumbas.
No bairro Belenenses/Naloco de Nampula, por exemplo, a pequena loja local de mezinhas vende lucamo (de olucama, que significa na língua Emakhwua "venha aqui onde estou"), um produto muito procurado pelas mulheres e destinado a atrair os clientes.
Chegam a gerar-se autênticas batalhas de macas, mezinhas e suspeitas, com as vendedoras acusando-se reciprocamente de roubo de clientela ou, por exemplo, de fazer apodrecer o peixe à venda. Cada produto, cada banca, cada pano, está especialmente blindado (mas o corpo também: diz-se, na Beira, "fechar [magicamente] o corpo" e, em Nampula, "tomar banho") para conjurar as forças concorrenciais do mal.
Pelo sim pelo não previnamo-nos a todos os níveis contra o azar.
Assim, os vendedores munem-se de todas as protecções mágicas que estejam ao seu alcance e com elas procuram atrair clientes, evitar o mau olhado e curar as diarreias e as febres dos filhos menores, depois que as compraram nas "farmácias tradicionais" dos dumbas.
No bairro Belenenses/Naloco de Nampula, por exemplo, a pequena loja local de mezinhas vende lucamo (de olucama, que significa na língua Emakhwua "venha aqui onde estou"), um produto muito procurado pelas mulheres e destinado a atrair os clientes.
Chegam a gerar-se autênticas batalhas de macas, mezinhas e suspeitas, com as vendedoras acusando-se reciprocamente de roubo de clientela ou, por exemplo, de fazer apodrecer o peixe à venda. Cada produto, cada banca, cada pano, está especialmente blindado (mas o corpo também: diz-se, na Beira, "fechar [magicamente] o corpo" e, em Nampula, "tomar banho") para conjurar as forças concorrenciais do mal.
Eu represento a pobreza
Nos dumba-nengues muitas mulheres, rostos precocemente envelhecidos, com crianças de colo, à torreira do sol, lutam para garantir alimento e assegurar a compra de cadernos escolares para os filhos mais velhos. Como esta vendedora de cacana[1] e de mathapa[2] no Xiquelene, cidade de Maputo:
"O senhor pergunta se sei algo sobre a pobreza? Não vê que eu represento a pobreza? Acha que se fosse rica estaria aqui a queimar com o sol, com a minha filha que durante o dia de hoje apenas comeu uma fatia de pão?"[3]
[1] Molho à base de uma planta muito amarga da família das cucurbitáceas e de amendoim.
[2] Esparregado de folhas de mandioca, de abóbora ou doutras plantas, misturado com amendoim (no Sul) ou com coco (no Norte).
[3] Extraído do diário de campo de um dos meus assistentes, 2002.
"O senhor pergunta se sei algo sobre a pobreza? Não vê que eu represento a pobreza? Acha que se fosse rica estaria aqui a queimar com o sol, com a minha filha que durante o dia de hoje apenas comeu uma fatia de pão?"[3]
[1] Molho à base de uma planta muito amarga da família das cucurbitáceas e de amendoim.
[2] Esparregado de folhas de mandioca, de abóbora ou doutras plantas, misturado com amendoim (no Sul) ou com coco (no Norte).
[3] Extraído do diário de campo de um dos meus assistentes, 2002.
25 abril 2006
Ainda o velho Maquiavel
Anos atrás fui à capital de uma província sulista do país. Ao fim de tarde do dia de chegada, três políticos do partido no poder vieram ter comigo e perguntaram-me se podiam conversar comigo. Eu disse que sim e quis saber o motivo. O motivo era este: aproximavam-se as eleições municipais e eles queriam saber como ganhar.
Lá jantámos e no fim eu disse:
-Basta ler Maquiavel.
-Maquiavel??? Mas quem é Maquiavel?
-Um tipo que viveu em dois séculos, o XV e o XVI e escreveu um livro chamado “O Príncipe”.
-O príncipe???
Falei-lhes no conteúdo do livro e recomendei-lhes que lessem também, com cuidado, as anotações de Napoleão Bonaparte.
Ainda hoje eu sinto que a minha mensagem não foi maquiavelicamente compreendida.
De qualquer das formas eles ganharam.
Lá jantámos e no fim eu disse:
-Basta ler Maquiavel.
-Maquiavel??? Mas quem é Maquiavel?
-Um tipo que viveu em dois séculos, o XV e o XVI e escreveu um livro chamado “O Príncipe”.
-O príncipe???
Falei-lhes no conteúdo do livro e recomendei-lhes que lessem também, com cuidado, as anotações de Napoleão Bonaparte.
Ainda hoje eu sinto que a minha mensagem não foi maquiavelicamente compreendida.
De qualquer das formas eles ganharam.
O leão e a raposa de Maquiavel
O porta-voz do partido Renamo disse há dias que a fuga de membros do seu partido em direcção ao partido Frelimo tinha a ver com uma acção deliberada deste último partido. Pode ser que sim. E se sim, é porque a luta política é isso mesmo: causar baixas ao inimigo. Mas a Renamo deveria primeiro ver como a sua casa está, de que maneira ela está organizada.
O ex-delegado da Renamo na Namaacha, agora na Frelimo, tem uma história saborosa: segundo ele, o seu ex-partido não pagava o aluguer da sua residência, transformada em sede do partido. Agora, afirmou, com a Frelimo os negócios correm-lhe bem, conseguiu alugar o seu complexo comercial e iniciou o pagamento da alienação da sua casa (vejam o "Notícias" de ontem, p. 3).
Poucos hipotecam apenas o coração a um partido.
Os membros da Renamo deviam ler “O Príncipe” de Maquiavel, especialmente aquela passagem na qual ele aconselha o príncipe a escolher ao mesmo tempo o leão e a raposa no combate político: “Como o leão não se sabe defender das armadilhas e a raposa não se sabe defender dos lobos, é necessário ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para meter medo aos lobos. Os que querem fazer apenas de leão não percebem nada do assunto” (acho desnecessário dar a referência bibliográfica).
O ex-delegado da Renamo na Namaacha, agora na Frelimo, tem uma história saborosa: segundo ele, o seu ex-partido não pagava o aluguer da sua residência, transformada em sede do partido. Agora, afirmou, com a Frelimo os negócios correm-lhe bem, conseguiu alugar o seu complexo comercial e iniciou o pagamento da alienação da sua casa (vejam o "Notícias" de ontem, p. 3).
Poucos hipotecam apenas o coração a um partido.
Os membros da Renamo deviam ler “O Príncipe” de Maquiavel, especialmente aquela passagem na qual ele aconselha o príncipe a escolher ao mesmo tempo o leão e a raposa no combate político: “Como o leão não se sabe defender das armadilhas e a raposa não se sabe defender dos lobos, é necessário ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para meter medo aos lobos. Os que querem fazer apenas de leão não percebem nada do assunto” (acho desnecessário dar a referência bibliográfica).
Sedimentações
Quero defender que os sociólogos têm a seu cargo lutar contra os seguintes quatro tipos de sedimentações acriticamente aceites por muitos:
· Sedimentações do senso comum
· Sedimentações mágico-mitológicas
· Sedimentações oficiais e partidárias
· Sedimentações axiológicas.
Famílias perceptivas e cognitivas do género «foi sempre assim», «não há fumo sem fogo», «os funcionários são mal-educados porque a sua formação escolar é baixa», «as populações de Moçambique são manifestamente tradicionais», etc., pertencem ao primeiro tipo.
Famílias do género «o chefe disse e portanto é verdade», «os Africanos são tribalistas», «as populações acima do Zambeze são matriarcais» pertencem ao segundo tipo de sedimentações.
Famílias do género «nós é que sabemos como foi a história», «de acordo com o Partido...», «se ele diz que é assim é porque sabe», «se está escrito é porque é verdade», pertencem ao terceiro tipo.
Finalmente, famílias do género «governar com os chefes tradicionais é governar com a tradição», «devemos fazer assim porque é bom», etc., pertencem ao último tipo de sedimentações.
N.B. Talvez volte a este tema.
· Sedimentações do senso comum
· Sedimentações mágico-mitológicas
· Sedimentações oficiais e partidárias
· Sedimentações axiológicas.
Famílias perceptivas e cognitivas do género «foi sempre assim», «não há fumo sem fogo», «os funcionários são mal-educados porque a sua formação escolar é baixa», «as populações de Moçambique são manifestamente tradicionais», etc., pertencem ao primeiro tipo.
Famílias do género «o chefe disse e portanto é verdade», «os Africanos são tribalistas», «as populações acima do Zambeze são matriarcais» pertencem ao segundo tipo de sedimentações.
Famílias do género «nós é que sabemos como foi a história», «de acordo com o Partido...», «se ele diz que é assim é porque sabe», «se está escrito é porque é verdade», pertencem ao terceiro tipo.
Finalmente, famílias do género «governar com os chefes tradicionais é governar com a tradição», «devemos fazer assim porque é bom», etc., pertencem ao último tipo de sedimentações.
N.B. Talvez volte a este tema.
Verdade
Há uma diferença grande entre construção objectiva e objectividade processual: a primeira é impossível, a segunda é possível. Toda a apologia da verdade única é um passaporte para o totalitarismo. Por isso estamos cientes de que a nossa «verdade» apenas tem o mérito de poder ser superada por uma outra mais complexa amanhã.
Os outros
Os cientistas sociais convencem-se muitas vezes de que a única coisa que têm a fazer é estudar os «outros», esquecendo-se de que os outros só podem ser vistos e construídos pelos seus «olhos».
Do método e das técnicas
Temos, muitos de nós, tendência a privilegiar o método e as técnicas usadas, omitindo os postulados e o corpo teórico que intervêm na produção da pesquisa, como se método e técnicas fossem qualquer coisa de absolutamente objectivo, mecânico, exterior ao (s) investigador (es) e, portanto, imunes quer à interferência de quem interroga o social, quer ao magma inevitável (mas potencialmente controlável) das ideologias, dos julgamentos de valor ou das crenças políticas.
Compreender
Se já é uma tarefa complexa e delicada compreender o comportamento de uma pessoa, muito mais complexo e delicado é compreender o comportamento agregado de milhares ou de milhões de pessoas. Ontem como hoje, formar uma identidade comportamental colectiva (uma «unidade psíquica» ou uma «totalidade unitária» como escreveu Georg Simmel) para compreender o comportamento de pessoas que são diferentes como seres sociais, continua a ser um desafio enorme para os estudiosos do social.
Todavia, estamos todos os dias a fazer exercícios de «psiquismo colectivo» (de novo Simmel) e a formar «unidades psíquicas» simples a partir de alguns fragmentos conhecidos e independentemente das diferenças sociais dos actores, a encontrar coerências das quais está evacuada a espantosa infinidade diária de gestos, actos, pensamentos, condutas individuais e colectivas, etc. É, afinal, a preponderância do espírito de conjunto sobre o espírito de detalhe, como disse Comte.
Isso ao nível quer da sociologia universitária, quer do senso comum.
Todavia, estamos todos os dias a fazer exercícios de «psiquismo colectivo» (de novo Simmel) e a formar «unidades psíquicas» simples a partir de alguns fragmentos conhecidos e independentemente das diferenças sociais dos actores, a encontrar coerências das quais está evacuada a espantosa infinidade diária de gestos, actos, pensamentos, condutas individuais e colectivas, etc. É, afinal, a preponderância do espírito de conjunto sobre o espírito de detalhe, como disse Comte.
Isso ao nível quer da sociologia universitária, quer do senso comum.
Cinco propostas
1. O que observamos, ouvimos e registamos é condicionado pelo grupo ao qual pertencemos, pela nossa cultura, pelas nossas representações sociais, pelo contexto no qual actuamos, etc. A visão que temos não é imediata, mas filtrada por esse condicionamento. Ver não é como num espelho: o que se vê é o que é[*]. Pelo contrário: o que se vê é o que nós somos obrigados a ver.
[*] Todavia, isto pode não ser rigorosamente verdadeiro: o espelho pode devolver-nos uma imagem distorcida…
2. O que está a ser proposto não é que o investigador invente a realidade no sentido de a falsificar (por exemplo: lá onde é negro, descrevemos branco). O que está a ser proposto é que o investigador tenha consciência do seu condicionamento social.
3. A actividade humana formata as nossas representações sociais. Habituamo-nos ao que fazemos e observamos, introduzimos a evidência em tudo isso, naturalizamos tudo isso. Ora, o primeiro dever do investigador é tomar consciência disso, é recuperar o espanto e subverter a evidência com a novidade, com o nunca visto. Nada se pode observar e descrever sem o selo da novidade.
4. O investigador nunca deve tomar uma negativa por uma ausência de informação. A ausência de informação também é uma informação.
5. Um aspecto fundamental na pesquisa é a nossa capacidade de fazer o estudo e análise do que Erving Goffman chamou "comportamentos menores", quer dizer, de tudo aquilo que é o dia-a-dia da produção da sociedade, de tudo aquilo que é rotina, "coisa sem importância".
[*] Todavia, isto pode não ser rigorosamente verdadeiro: o espelho pode devolver-nos uma imagem distorcida…
2. O que está a ser proposto não é que o investigador invente a realidade no sentido de a falsificar (por exemplo: lá onde é negro, descrevemos branco). O que está a ser proposto é que o investigador tenha consciência do seu condicionamento social.
3. A actividade humana formata as nossas representações sociais. Habituamo-nos ao que fazemos e observamos, introduzimos a evidência em tudo isso, naturalizamos tudo isso. Ora, o primeiro dever do investigador é tomar consciência disso, é recuperar o espanto e subverter a evidência com a novidade, com o nunca visto. Nada se pode observar e descrever sem o selo da novidade.
4. O investigador nunca deve tomar uma negativa por uma ausência de informação. A ausência de informação também é uma informação.
5. Um aspecto fundamental na pesquisa é a nossa capacidade de fazer o estudo e análise do que Erving Goffman chamou "comportamentos menores", quer dizer, de tudo aquilo que é o dia-a-dia da produção da sociedade, de tudo aquilo que é rotina, "coisa sem importância".
A caneta do presidente
Segundo o "Notícias" de hoje, um empresário comprou uma caneta do presidente da República, que estava em leilão na escola do partido do poder na Matola, por um bilião e setecentos e um milhões de meticais, algo como 68.000 dólares (corrijam-me caso eu tenha feito mal a conversão).
Certamente estamos perante um excelente exemplo do combate contra a chamada pobreza absoluta.
Certamente estamos perante um excelente exemplo do combate contra a chamada pobreza absoluta.
"Os funcionários são mal-educados porque a sua formação escolar é baixa"
"Os funcionários são mal-educados porque a sua formação escolar é baixa" - uma frase pronunciada quando da Reunião da Inspecção do Estado - veja «Notícias» de 31 de Julho de 1995, p.7.
Permitam-me algumas considerações algo longas a propósito. Para que eu possa estabelecer uma relação condicional do tipo: se A, logo B, é indispensável que essa relação tenha sido sistematicamente verificada. Assim, por exemplo, se de cada vez que eu friccione um palito provido de uma substância inflamável numa superfície contendo fósforo (A) surge uma chama (B) (excluindo aqui os acidentes), é lícito concluir A > B. Mas frequentemente nós estabelecemos induções que economizam o imperativo da frequência estatística e que são objectivamente erradas, ainda que subjecti vamente «correctas» e socialmente úteis. Por exemplo: se das duas vezes que bebeu água gelada (A) o Sr.Mulai ficou com dores de dentes (B), ele será levado, muito naturalmente e frequentemente, a estabelecer uma conjunção A > B. O sr. Mulai estabelece uma conexão necessária, como diria Hume, a partir de um fenómeno de contiguidade e de sucessão cuja necessidade ela potencializa. Ele produz um «vínculo de necessidade causal», no qual a contradição térmica (frio da água/quente da boca) é instintivamente, mecânicamente mobilizada.Ora, não está provado nem que as dores de dentes tenham essa origem nem que uma relação de causalidade deva ser obrigatoriamente estabelecida entre dois fenómenos simultâneos. Por consequência, o sr. Mulai precisaria de uma evidência estatística muito mais extensa para ser convincente. Porém, ele dispensa esse requisito, como quase todos nós afinal, e pode, mesmo, ampliar a esfera de acção dessa conjunção que acha necessária e estabelecer nas conversas de amigos ou que «a água gelada provoca-me dores de dentes» (tese fraca) ou que «a água gelada provoca-nos dores de cabeça» (tese forte). Ele pode, portanto, transformar uma conexão acidental numa conexão necessária e generalizável. O seu raciocínio terá, portanto, a seguinte estrutura:
1) A > B
2) Se A
3) Logo B
Ou se preferirem, para o caso da «tese fraca»:
1) Quando bebo água gelada(A) > dói-me a cabeça(B)
2) Bebo água gelada(A)
3) Dói-me a cabeça(B)
Esta modalidade de indução (Charles Peirce chamou-lhe abdução), a que chamo indução mecânica(IM), é porém, disse-o já, subjectivamente boa e socialmente útil. Primeiro porque ela é contextualmente lógica (não surgiram as dores de cabeça das duas vezes que bebi água gelada?); segundo, porque nos dá uma orientação na vida, nos permite fórmulas de «racionalização», de adaptação e de compensação fáceis (por exemplo: mesmo se as dores são aborrecidas, pelo menos sei a sua origem; ou: não é isso evidente? Etc.). Pode a IM aplicar-se à conjunção estabelecida entre a «fraca escolaridade» e o «mau atendimento do público»? A resposta é a um tempo sim e não. Sim, porque também aqui um só factor ("fraca escolaridade") é mobilizado para explicar o «mau atendimento do público». Não, porque esta segunda relação é mais arbitrária, as variáveis implicadas não são tão contíguas, é-se forçado a um maior esforço indutivo.Com efeito, se na IM a «sucessão instintiva» leva a associar a dor de cabeça e a água gelada (uma «sucede» à outra, quase fisicamente, pese a indeterminação do fenómeno e o seu déficit estatístico), no caso da «fraca escolaridade» esta é uma variável positivamente estrangeira, arbitrária, introduzida pura e simplesmente «de fora» para produzir a relação com o fenómeno «mau atendimento do público», ainda que seja, ela também, produto da intuição. Daí o que chamo indução arbitrária (IA). Mas mesmo se admitíssemos a existência de uma simultaneidade do tipo IM, a relação «fraca escolaridade» (A) > «mau atendimento do público» (B) não estaria comprovada, pois o fenómeno B não decorre exclusivamente e, pode até acontecer, nem sequer principalmente, do fenómeno A. Na verdade, não está provado em parte alguma do mundo que a «fraca escolaridade» seja uma causa necessária e suficiente do mau atendimento do público. Talvez fosse possível provar exactamente o contrário. As pessoas podem ser portadoras de uma «alta escolaridade» e atenderem mal o público ou serem, até, incompetentes. Eu posso ser licenciado em relações públicas ou em qualquer outra coisa e ser incorrecto para com o público. Dezenas de pessoas com cursos médios ou superiores podem atender mal o público e ser incompetentes por esse mundo fora. Da mesma forma, «atender mal o público» pode traduzir não apenas nem sequer, como hipótese, principalmente, o produto de uma «fraca escolaridade» (postura «passiva»), mas uma forma de protecção de «fontes de incerteza» (postura agressiva deliberada) pelas quais é possível ter-se um poder estratégico sobre o público, obrigando-o, por exemplo, a implorar um sorriso, a rapidez de execução, o certificado que ele quer, etc., em troco de um supletivo, de um «extra» (suborno).
Permitam-me algumas considerações algo longas a propósito. Para que eu possa estabelecer uma relação condicional do tipo: se A, logo B, é indispensável que essa relação tenha sido sistematicamente verificada. Assim, por exemplo, se de cada vez que eu friccione um palito provido de uma substância inflamável numa superfície contendo fósforo (A) surge uma chama (B) (excluindo aqui os acidentes), é lícito concluir A > B. Mas frequentemente nós estabelecemos induções que economizam o imperativo da frequência estatística e que são objectivamente erradas, ainda que subjecti vamente «correctas» e socialmente úteis. Por exemplo: se das duas vezes que bebeu água gelada (A) o Sr.Mulai ficou com dores de dentes (B), ele será levado, muito naturalmente e frequentemente, a estabelecer uma conjunção A > B. O sr. Mulai estabelece uma conexão necessária, como diria Hume, a partir de um fenómeno de contiguidade e de sucessão cuja necessidade ela potencializa. Ele produz um «vínculo de necessidade causal», no qual a contradição térmica (frio da água/quente da boca) é instintivamente, mecânicamente mobilizada.Ora, não está provado nem que as dores de dentes tenham essa origem nem que uma relação de causalidade deva ser obrigatoriamente estabelecida entre dois fenómenos simultâneos. Por consequência, o sr. Mulai precisaria de uma evidência estatística muito mais extensa para ser convincente. Porém, ele dispensa esse requisito, como quase todos nós afinal, e pode, mesmo, ampliar a esfera de acção dessa conjunção que acha necessária e estabelecer nas conversas de amigos ou que «a água gelada provoca-me dores de dentes» (tese fraca) ou que «a água gelada provoca-nos dores de cabeça» (tese forte). Ele pode, portanto, transformar uma conexão acidental numa conexão necessária e generalizável. O seu raciocínio terá, portanto, a seguinte estrutura:
1) A > B
2) Se A
3) Logo B
Ou se preferirem, para o caso da «tese fraca»:
1) Quando bebo água gelada(A) > dói-me a cabeça(B)
2) Bebo água gelada(A)
3) Dói-me a cabeça(B)
Esta modalidade de indução (Charles Peirce chamou-lhe abdução), a que chamo indução mecânica(IM), é porém, disse-o já, subjectivamente boa e socialmente útil. Primeiro porque ela é contextualmente lógica (não surgiram as dores de cabeça das duas vezes que bebi água gelada?); segundo, porque nos dá uma orientação na vida, nos permite fórmulas de «racionalização», de adaptação e de compensação fáceis (por exemplo: mesmo se as dores são aborrecidas, pelo menos sei a sua origem; ou: não é isso evidente? Etc.). Pode a IM aplicar-se à conjunção estabelecida entre a «fraca escolaridade» e o «mau atendimento do público»? A resposta é a um tempo sim e não. Sim, porque também aqui um só factor ("fraca escolaridade") é mobilizado para explicar o «mau atendimento do público». Não, porque esta segunda relação é mais arbitrária, as variáveis implicadas não são tão contíguas, é-se forçado a um maior esforço indutivo.Com efeito, se na IM a «sucessão instintiva» leva a associar a dor de cabeça e a água gelada (uma «sucede» à outra, quase fisicamente, pese a indeterminação do fenómeno e o seu déficit estatístico), no caso da «fraca escolaridade» esta é uma variável positivamente estrangeira, arbitrária, introduzida pura e simplesmente «de fora» para produzir a relação com o fenómeno «mau atendimento do público», ainda que seja, ela também, produto da intuição. Daí o que chamo indução arbitrária (IA). Mas mesmo se admitíssemos a existência de uma simultaneidade do tipo IM, a relação «fraca escolaridade» (A) > «mau atendimento do público» (B) não estaria comprovada, pois o fenómeno B não decorre exclusivamente e, pode até acontecer, nem sequer principalmente, do fenómeno A. Na verdade, não está provado em parte alguma do mundo que a «fraca escolaridade» seja uma causa necessária e suficiente do mau atendimento do público. Talvez fosse possível provar exactamente o contrário. As pessoas podem ser portadoras de uma «alta escolaridade» e atenderem mal o público ou serem, até, incompetentes. Eu posso ser licenciado em relações públicas ou em qualquer outra coisa e ser incorrecto para com o público. Dezenas de pessoas com cursos médios ou superiores podem atender mal o público e ser incompetentes por esse mundo fora. Da mesma forma, «atender mal o público» pode traduzir não apenas nem sequer, como hipótese, principalmente, o produto de uma «fraca escolaridade» (postura «passiva»), mas uma forma de protecção de «fontes de incerteza» (postura agressiva deliberada) pelas quais é possível ter-se um poder estratégico sobre o público, obrigando-o, por exemplo, a implorar um sorriso, a rapidez de execução, o certificado que ele quer, etc., em troco de um supletivo, de um «extra» (suborno).