"Os funcionários são mal-educados porque a sua formação escolar é baixa" - uma frase pronunciada quando da Reunião da Inspecção do Estado - veja «Notícias» de 31 de Julho de 1995, p.7.
Permitam-me algumas considerações algo longas a propósito. Para que eu possa estabelecer uma relação condicional do tipo: se A, logo B, é indispensável que essa relação tenha sido sistematicamente verificada. Assim, por exemplo, se de cada vez que eu friccione um palito provido de uma substância inflamável numa superfície contendo fósforo (A) surge uma chama (B) (excluindo aqui os acidentes), é lícito concluir A > B. Mas frequentemente nós estabelecemos induções que economizam o imperativo da frequência estatística e que são objectivamente erradas, ainda que subjecti vamente «correctas» e socialmente úteis. Por exemplo: se das duas vezes que bebeu água gelada (A) o Sr.Mulai ficou com dores de dentes (B), ele será levado, muito naturalmente e frequentemente, a estabelecer uma conjunção A > B. O sr. Mulai estabelece uma conexão necessária, como diria Hume, a partir de um fenómeno de contiguidade e de sucessão cuja necessidade ela potencializa. Ele produz um «vínculo de necessidade causal», no qual a contradição térmica (frio da água/quente da boca) é instintivamente, mecânicamente mobilizada.Ora, não está provado nem que as dores de dentes tenham essa origem nem que uma relação de causalidade deva ser obrigatoriamente estabelecida entre dois fenómenos simultâneos. Por consequência, o sr. Mulai precisaria de uma evidência estatística muito mais extensa para ser convincente. Porém, ele dispensa esse requisito, como quase todos nós afinal, e pode, mesmo, ampliar a esfera de acção dessa conjunção que acha necessária e estabelecer nas conversas de amigos ou que «a água gelada provoca-me dores de dentes» (tese fraca) ou que «a água gelada provoca-nos dores de cabeça» (tese forte). Ele pode, portanto, transformar uma conexão acidental numa conexão necessária e generalizável. O seu raciocínio terá, portanto, a seguinte estrutura:
1) A > B
2) Se A
3) Logo B
Ou se preferirem, para o caso da «tese fraca»:
1) Quando bebo água gelada(A) > dói-me a cabeça(B)
2) Bebo água gelada(A)
3) Dói-me a cabeça(B)
Esta modalidade de indução (Charles Peirce chamou-lhe abdução), a que chamo indução mecânica(IM), é porém, disse-o já, subjectivamente boa e socialmente útil. Primeiro porque ela é contextualmente lógica (não surgiram as dores de cabeça das duas vezes que bebi água gelada?); segundo, porque nos dá uma orientação na vida, nos permite fórmulas de «racionalização», de adaptação e de compensação fáceis (por exemplo: mesmo se as dores são aborrecidas, pelo menos sei a sua origem; ou: não é isso evidente? Etc.). Pode a IM aplicar-se à conjunção estabelecida entre a «fraca escolaridade» e o «mau atendimento do público»? A resposta é a um tempo sim e não. Sim, porque também aqui um só factor ("fraca escolaridade") é mobilizado para explicar o «mau atendimento do público». Não, porque esta segunda relação é mais arbitrária, as variáveis implicadas não são tão contíguas, é-se forçado a um maior esforço indutivo.Com efeito, se na IM a «sucessão instintiva» leva a associar a dor de cabeça e a água gelada (uma «sucede» à outra, quase fisicamente, pese a indeterminação do fenómeno e o seu déficit estatístico), no caso da «fraca escolaridade» esta é uma variável positivamente estrangeira, arbitrária, introduzida pura e simplesmente «de fora» para produzir a relação com o fenómeno «mau atendimento do público», ainda que seja, ela também, produto da intuição. Daí o que chamo indução arbitrária (IA). Mas mesmo se admitíssemos a existência de uma simultaneidade do tipo IM, a relação «fraca escolaridade» (A) > «mau atendimento do público» (B) não estaria comprovada, pois o fenómeno B não decorre exclusivamente e, pode até acontecer, nem sequer principalmente, do fenómeno A. Na verdade, não está provado em parte alguma do mundo que a «fraca escolaridade» seja uma causa necessária e suficiente do mau atendimento do público. Talvez fosse possível provar exactamente o contrário. As pessoas podem ser portadoras de uma «alta escolaridade» e atenderem mal o público ou serem, até, incompetentes. Eu posso ser licenciado em relações públicas ou em qualquer outra coisa e ser incorrecto para com o público. Dezenas de pessoas com cursos médios ou superiores podem atender mal o público e ser incompetentes por esse mundo fora. Da mesma forma, «atender mal o público» pode traduzir não apenas nem sequer, como hipótese, principalmente, o produto de uma «fraca escolaridade» (postura «passiva»), mas uma forma de protecção de «fontes de incerteza» (postura agressiva deliberada) pelas quais é possível ter-se um poder estratégico sobre o público, obrigando-o, por exemplo, a implorar um sorriso, a rapidez de execução, o certificado que ele quer, etc., em troco de um supletivo, de um «extra» (suborno).
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