Ontem eu ouvi um pouco na rádio o debate na Assembleia da República. Houve uma violenta troca de palavras entre membros da Frelimo (partido no poder) e membros da Renamo (partido na oposição). Escutando deliciado, lembrei-me de algo que escrevi anos atrás. Vou recordar.
Bastam poucos minutos de atenção para percebermos que o parlamento é uma configuração sociológica com dois extractos dominantes: o frelimiano e o renamiano. Em cada um deles, as pessoas são diferentes, as suas ideias são diferentes, as suas vidas sociais também. É muito possível que pessoas de cada extracto se contactem fora das fronteiras dos territórios políticos. Mas face a um problema em debate sobre o qual é preciso tomar uma decisão, mesmo que esse problema não seja «de vida ou de morte», as diferenças são regra geral apagadas em favor da delimitação instintiva das fronteiras do território partidário e o apontar dos canhões para os territórios partidários inimigos. Pessoas que são calmas tornam-se nervosas; pessoas nervosas tornam-se mais nervosas; pessoas que em outras circunstâncias não bateriam palmas, não troçariam, não vituperariam, não alçariam ombros, não teriam tão intenso dispêndio corporal e afectivo, batem palmas, troçam, vituperam, alçam ombros, mexem-se e zangam-se. Colidem gramáticas corpo-emocionais, anátemas, estigmas, ameaças, idiomas grupuais; entrechocam símbolos, heróis epónimos, bandeiras, representações sociais, histórias edificantes sobre as comunidades espirituais de origem, requisitos e hábitos culturais, componentes específicas de honra étnica; expectativas tornam-se práticas na confrontação, actualizam-se, determinam-se. Se se discutem, por exemplo, os privilégios do «Sul» em relação ao «Centro» e ao «Norte» do país, pessoas de cada uma dessas «regiões» dão-se braços dentro das fronteiras do partido X e do cimento aglutinador e nivelador dos seus ideais políticos contra os ideais do partido Y e/ou Z; machangane, vanhungué, maronga, makonde, vandau, não interessa quem, federam-se à sombra do partido X para lutar contra outras formações com uma composição «étnica» idêntica, mesmo que individualmente sintam que os outros têm razão e que em outras circunstâncias se empenhariam em ser ou fazer o que gostariam de ser ou fazer. E essa polaridade pode nascer mesmo em torno duma modesta estrada que não foi construída ou que se o foi, é suposto tê-lo sido mal.
Desafio-os a negar que estais diante de exemplos de etnicidade, se esta for vista pelo ângulo da relação Nós/Eles.
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