A abstenção mantém-se muito alta desde as eleições municipais de 1998, quando as analisei e sobre elas escrevi. Na altura, houve quem tivesse afirmado que a minha análise sobre as causas da elevada abstenção verificada estava sobrevalorizada, pois eram as primeiras do país e, portanto, era necessária mais comparação com novas eleições, municipais, legislativas e presidenciais.
Novas eleições se realizaram desde então e a abstenção prosseguiu elevada.
As causas são, naturalmente, várias. Vou apenas sugerir uma, por agora.
Os actores sociais têm boas razões para ter em descrédito as instituições oficiais, como tantos inquéritos têm mostrado. Mas não só: também as sistemáticas promessas feitas nas campanhas e cada vez mais prenhes de engenharia, de teatro de sedução.
Na verdade, a informalização da vida a todos os níveis em Moçambique surge como um processo simultaneamente de efeito da exclusão social e de resposta a essa exclusão; ela é um processo de emancipação popular dos quadros institucionais, jurídicos e normativos formalmente legítimos do Estado, é um amortecedor da exclusão, é, afinal, o «ópio do povo». Neste sentido, pode dizer-se, metaforizando Marx, que a abstenção é, por um lado, a expressão da angústia real e, por outro, um protesto contra essa angústia.
Mas o processo deve ser visto mais profundamente, mais politicamente.
Na verdade, ao político vindo de cima, opõe o geral das pessoas o político por baixo, o político popular. É errado pensar que a abstenção mostra um elevado grau de apoliticidade. Na verdade, o que acontece é ou tem sido, justamente, o inverso, a politização do informal, a desinstitucionalização social que se verifica no País. À desinstitucionalização do social corresponde a reinstitucionalização do político popular. Os rumores (que são a «arte do fraco» afinal fortalecido no combate e na artimanha) são, a esse propósito, exemplares.
A abstenção não é, portanto, uma opção pelo social despolitizado, mas o produto do político socializado e levedado popularmente. O que muitas pessoas penalizam, abstendo-se, não é a acção política, mas a acção política tal como é generalizadamente praticada pelos candidatos. Na verdade, os actores sociais têm boas razões para quererem ser, também, parceiros de um jogo do qual são sistematicamente arredados nos discursos dos actores políticos. Com efeito, os actores políticos sempre acham que esse jogo só pode ser jogado entre eles, esquecendo-se de que o objecto dos seus discursos são seres humanos que, como outros, têm direito a jogar, têm direito à sua racionalidade cognitiva e ao respeito por ela.
Eleição após eleição, os receptáculos das campanhas eleitorais verificam que a sua vida pouco muda apesar da injecção eleitoral de centenas de efeitos sedutores, por parte dos múltiplos candidatos e partidos, para captar a sua adesão e o seu voto.
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- Veja, Serra, Carlos (dir), Eleitorado incapturável. Eleições municipais de 1998 em Manica, Chimoio, Beira, Dondo, Nampula e Angoche. Maputo: Livraria Universitária, 1999.
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