O país possui uma longa tradição de confiscação da palavra crítica, da palavra transgressora e é natural que, nas eleições, tomem curso estratégias do silêncio, da retenção e da simulação.
Mas as eleições são, também, entre outros fenómenos, um mecanismo de fragmentação, de subversão da palavra conveniente, da palavra normal no relacionamento de poder existente. Com elas aprende-se, temporariamente, a transgredir hierarquias e territórios sagrados, a pôr entre parêntesis os caciques, a democratizar a produção de opiniões, de saberes e de críticas. Os papéis invertem-se: reis tornam-se populares para ganhar votos, populares tornam-se reis para impor favoritos.
Mas seria dar provas de ingenuidade pretender reter o comportamento humano assim tão linearmente. E, especialmente, esquecer que tudo é um processo difícil e uma aprendizagem sinuosa.
Com efeito, a nossa pesquisa sobre as eleições municipais de 1998 mostrou quanto a ambivalência é imanente aos protocolos de enunciação (mas, também, às práticas, exemplificadas pela abstenção de voto: no preciso momento em que as pessoas querem transgredir a palavra autorizada, são, contudo, parasitadas pelo peso da tradição ablactora, pela obediência, pelo duplo constrangimento [1], pela acção do que Stanley Milgram chamou “estado agêntico” [2] e Elias Canetti, o aguilhão da ordem[3].
Esse é um fenómeno exemplarmente mostrado por centenas dos questionários administrados por assistentes meus a centenas de pessoas em 1998, preenchidos na verdade com uma vida dupla e contraditória. No verso dos questionários, aparece a postura de conveniência, o “politicamente correcto”: os inquiridos dizem, por exemplo, vamos votar ou votamos neste ou naquela partido; mas, no anverso, surge o recurso às entrelinhas, a denúncia, o protesto, o “não é bem assim”, ainda que de forma comedida.
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[1]A propósito do duplo constrangimento, veja Bateson,Gregory, Vers une écologie de l’esprit. Paris: Seuil, 1980, tome 2, pp.3-34; Elias, Norbert, Engagement et distanciation. Paris: Agora/Fayard, 1993, passim.
[2](…) condição do indivíduo que se considera como o agente executivo de uma vontade estrangeira, por oposição ao estado autónomo no qual ele estima ser o autor dos seus actos” - Milgram, Stanley, Soumission à l’autorité, un point de vue expérimental. Paris: Calmann-Lévy, 1974, pp.166-168.
[3]”Toda a ordem se decompõe numa impulsão e num aguilhão. A impulsão constrange quem a recebe a executá-la e isto em conformidade com o conteúdo da ordem. O aguilhão resta no fundo daquele que executa a ordem. (…) Mas o aguilhão afunda-se profundamente na pessoa que executou uma ordem, e aí permanece sem alteração.(…) Não há realidade psíquica mais imutável” – Canetti, Elias, Masse et puissance. Paris: Gallimard, 1966, p.324.
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