Outros elos pessoais

04 janeiro 2013

Três racionalidades (ainda sobre o avião de Moatize) (1)

Em Moatize, pátria do carvão, alvo das multinacionais, um havido avião mágico, supostamente usado para transporte nocturno de feiticeiros, aterrou dia 31 de Dezembro no quintal de um jovem casal. Momento de grande azar para o casal, pois o marido perdera o pai em Setembro e a carta de condução já em Dezembro, enquanto a esposa abortara em Agosto. Esta foi a terceira vez que um avião mágico aterrou na vila, os habitantes estão de novo preocupados. Há que queimar o avião de 31 de Dezembro, sentencia um ancião. Por sua vez, a polícia entende que não há crime, o fenómeno não tem enquadramento no código penal, o assunto deve ser tratado pelo médicos tradicionais. Enquanto isso, o secretário do bairro afectado aponta o dedo acusador aos curandeiros malawianos e promete que o seu executivo vai promover uma campanha em todos os quarteirões da vila de apelo à vigilância. Recorde aqui.
(continua)
Nota: confira, a propósito, um excelente texto do antropólogo Paulo Granjo, acompanhado de três artigos da sua autoria, aqui.

3 comentários:

  1. Não restam dúvidas que quando a bitola é ocidental a história do avião de Moatize é risível e nem se percebe porque é notícia. Talvez tenha chegado aos jornais não porque anedótica mas porque no núcleo, lá bem no cerne de nós, a crença, a possibilidade desses aviões existe e, em silêncio, se digladia constantemente com o visualizável, tangível e demonstrável verniz cartesiano da nossa Escola; com o cientificamente correcto.

    Preocupamo-nos com o risco de desculturização que o carvão já semeia nos reassentamentos mineiros.
    Mas, se o nosso ordenamento jurídico não incorpora elementos de carácter cultural - daí que o avião de Moatize, cujo despenhamento todas as pessoas implicitamente reconhecem, legalmente não exista - será de esperar que uma licença mineira respeite a minha necessidade fundamental de manter um IP espiritual? Sob que valores? Sobre que crenças? Ante que mandamento?

    No estágio em que nos encontramos estamos culturalmente colonizados. De uma forma tão profunda que nos recusamos até a perguntar-nos por que razão um ser racional ou vários (ser iletrado não significa não raciocinar) associa uma peneira de caniço ou bambu a um objecto voador.
    Temos um Ministério da Cultura que em lugar de estudar e investigar os multifacetados aspectos culturais do mosaico nacional, não se cansa de organizar cremesses e batucadas convencido que está a promover a cultura.
    Cultura, penso, é todo este manancial do dia a dia e do intangível que nos Revela quem somos... e nos protege.
    Porque não ousamos explicar com régua e esquadro as aparições de Fátima, Lourdes?
    Alguém acha mesmo que Deus fustigaria com a sua ira o servo que alimentou o seu corpo com carne de porco?
    Ou será que a África Negra precisa da sua 'shariazinha' para que enfim se possam abordar juridicamente os espaços aéreos culturais e haja mais segurança em navegação e em terra?
    Eu aprendo com o povo: " No creo en brujas, pero que las hay, las hay."

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  2. No meu comentário acima onde se lê 'cremesse' deve ler-se 'quermesse'.
    agradecido

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