O sétimo e último número da série, com o título modificado face ao que o nosso leitor A. Katawala aqui comentou ontem. Termino a quarta ideia apresentada no segundo número, com mais algumas hipóteses. É no século XIX que as burguesias reinantes europeias consolidam a ideia de sistematicamente prevenir o desvio social, seja contra o que chamavam "classes perigosas" (operários e colonizados), seja contra os protótipos de "desvio social" (doenças mentais, sexualidade, alcoolismo, etc.). Estatística, prisões, hospícios, casas de correcção: todo um mundo de disciplinarização social. Se o homem se mantém em seu papel público, à mulher continuou reservado o papel privado, o do lar. Saltar fora deste perímetro era colocar em causa a ordem "natural" das sociedades, era, afinal, como se a mulher fizesse uso das saias curtas de hoje e desta maneira fizesse perigar a ordem androcêntrica. No nosso país, a era colonial foi profundamente marcada pelo escamoteamento do corpo da mulher. Se analisarmos a documentação portuguesa a partir do princípio do século XX, veremos a preocupação colonial (completamente masculina) em vedar a nudez campesina. Por todo o lado, multiplicaram-se os interditos de exposição da nudez, muito especialmente da nudez feminina. Foi literalmente imposto, um bocado por todo o lado, o uso de determinados tipos de vestuário "decente" (termo que aparece em muitos relatórios). Os administradores e chefes de posto (que todos eram homens) desencadearam massivas campanhas de destruição das árvores das quais se extraía a entrecasca que permitia o fabrico de "tangas" (na Zambézia, isso feito em relação ao "muroto"). Por outro lado, nas cidades e ainda nos anos 60/70, mesmo nos prostíbulos urbanos (o caso da Rua Araújo, aqui em Maputo) a nudez era vigiada e proibida, ainda que as jeans e, especialmente, as então boca-de-sino, fossem toleradas. Quando chegamos à independência, surgem as campanhas de purificação de valores e fazem-se rusgas para apanhar as prostitutas e encaminhá-las para campos de reeducação. As mini-saias foram severamente desaconselhadas, muitas vezes por decisão espontânea de pessoas que se auto-designaram curadoras da moral pública. E não menos vezes eram as mulheres mais velhas que mais severas eram para com a exposição do corpo feminino. Ao longo do período revolucionário, era muito difícil encontrar as nossas jovens vestidas com roupas que exaltassem o seu corpo e a sua sexualidade. Os anos 90 são, creio, um marco importante para a subversão dos valores androcêntricos que exigiam e exigem a sobriedade e o resguardo. Penso que se casam, então, nas cidades, o desejo feminino de libertação corporal e a exaltação neo-liberal do sexismo. A disseminação da televisão, o surgimento em massa do vídeo, tudo isso trás consigo a visão de espaços de comparação e de aparente emancipação, espaços que passam a fazer parte da vida e do imaginário das nossas mulheres urbanas. A tchuna-baby, por exemplo, foi e é, apenas, um dos produtos desse casamento ainda não estudado, se a minha hipótese puder ser tida em conta. Ora, há alguns anos que se sucedem as vozes de pessoas clamando por um retorno à sobriedade, ao recato, que exigem um combate contra o que chamam costumes dissolutos. São homens e mulheres que se se queixam, entre outras coisas, de que a criminalidade sexual tem como uma das causas a nudez feminina. O seu ponto de comparação é o passado, que dizem ter sido bem melhor, um tempo - argumentam - no qual havia respeito. Em meio a esta angústia geracional, um dos alvos é a novela brasileira. Anos atrás, membros da Organização da Mulher Moçambicana chegaram, já, a pedir ao presidente da República a elaboração de uma lei que repusesse ordem no porte e no vestuário.
Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
Outros elos pessoais
21 julho 2011
A proibição das saias curtas (em Lichinga?) (7)
O sétimo e último número da série, com o título modificado face ao que o nosso leitor A. Katawala aqui comentou ontem. Termino a quarta ideia apresentada no segundo número, com mais algumas hipóteses. É no século XIX que as burguesias reinantes europeias consolidam a ideia de sistematicamente prevenir o desvio social, seja contra o que chamavam "classes perigosas" (operários e colonizados), seja contra os protótipos de "desvio social" (doenças mentais, sexualidade, alcoolismo, etc.). Estatística, prisões, hospícios, casas de correcção: todo um mundo de disciplinarização social. Se o homem se mantém em seu papel público, à mulher continuou reservado o papel privado, o do lar. Saltar fora deste perímetro era colocar em causa a ordem "natural" das sociedades, era, afinal, como se a mulher fizesse uso das saias curtas de hoje e desta maneira fizesse perigar a ordem androcêntrica. No nosso país, a era colonial foi profundamente marcada pelo escamoteamento do corpo da mulher. Se analisarmos a documentação portuguesa a partir do princípio do século XX, veremos a preocupação colonial (completamente masculina) em vedar a nudez campesina. Por todo o lado, multiplicaram-se os interditos de exposição da nudez, muito especialmente da nudez feminina. Foi literalmente imposto, um bocado por todo o lado, o uso de determinados tipos de vestuário "decente" (termo que aparece em muitos relatórios). Os administradores e chefes de posto (que todos eram homens) desencadearam massivas campanhas de destruição das árvores das quais se extraía a entrecasca que permitia o fabrico de "tangas" (na Zambézia, isso feito em relação ao "muroto"). Por outro lado, nas cidades e ainda nos anos 60/70, mesmo nos prostíbulos urbanos (o caso da Rua Araújo, aqui em Maputo) a nudez era vigiada e proibida, ainda que as jeans e, especialmente, as então boca-de-sino, fossem toleradas. Quando chegamos à independência, surgem as campanhas de purificação de valores e fazem-se rusgas para apanhar as prostitutas e encaminhá-las para campos de reeducação. As mini-saias foram severamente desaconselhadas, muitas vezes por decisão espontânea de pessoas que se auto-designaram curadoras da moral pública. E não menos vezes eram as mulheres mais velhas que mais severas eram para com a exposição do corpo feminino. Ao longo do período revolucionário, era muito difícil encontrar as nossas jovens vestidas com roupas que exaltassem o seu corpo e a sua sexualidade. Os anos 90 são, creio, um marco importante para a subversão dos valores androcêntricos que exigiam e exigem a sobriedade e o resguardo. Penso que se casam, então, nas cidades, o desejo feminino de libertação corporal e a exaltação neo-liberal do sexismo. A disseminação da televisão, o surgimento em massa do vídeo, tudo isso trás consigo a visão de espaços de comparação e de aparente emancipação, espaços que passam a fazer parte da vida e do imaginário das nossas mulheres urbanas. A tchuna-baby, por exemplo, foi e é, apenas, um dos produtos desse casamento ainda não estudado, se a minha hipótese puder ser tida em conta. Ora, há alguns anos que se sucedem as vozes de pessoas clamando por um retorno à sobriedade, ao recato, que exigem um combate contra o que chamam costumes dissolutos. São homens e mulheres que se se queixam, entre outras coisas, de que a criminalidade sexual tem como uma das causas a nudez feminina. O seu ponto de comparação é o passado, que dizem ter sido bem melhor, um tempo - argumentam - no qual havia respeito. Em meio a esta angústia geracional, um dos alvos é a novela brasileira. Anos atrás, membros da Organização da Mulher Moçambicana chegaram, já, a pedir ao presidente da República a elaboração de uma lei que repusesse ordem no porte e no vestuário.
3 comentários:
Seja bem-vinda (o) ao blogue "Diário de um sociólogo"! Por favor, sugira outras maneiras de analisar os fenómenos, corrija, dê pistas, indique portais, fontes, autores, etc. Não ofenda, não insulte, não ameace, não seja obsceno, não seja grosseiro, não seja arrogante, abdique dos ataques pessoais, de atentados ao bom nome, do diz-que-diz, de acusações não provadas e de generalizações abusivas, evite a propaganda, a frivolidade e a linguagem panfletária, não se desdobre em pseudónimos, no anonimato protector e provocador, não se apoie nos "perfis indisponíveis", nas perguntas mal-intencionadas, procure absolutamente identificar-se. Recuse o "ouvi dizer que..." ou "consta-me que..."Não serão tolerados comentários do tipo "A roubou o município", "B é corrupto", "O partido A está cheio de malandros", "Esta gente só sabe roubar". Serão rejeitados comentários e textos racistas, sexistas, xenófobos, etnicistas, homófobos e de intolerância religiosa. Será absolutamente recusado todo o tipo de apelos à violência. Quem quiser respostas a comentários ou quem quiser um esclarecimento, deve identificar-se plenamente, caso contrário não responderei nem esclarecerei. Fixe as regras do jogo: se você é livre de escrever o que quiser e quando quiser, eu sou livre de recusar a publicação; e se o comentário for publicado, não significa que estou de acordo com ele. Se estiver insatisfeito, boa ideia é você criar o seu blogue. Democraticamente: muito obrigado pela compreensão.
Brilhante.
ResponderEliminarBoa Prof!!!!!!!!!!!
ResponderEliminarFaço minhas as palavras do Langa.
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