Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
Outros elos pessoais
25 setembro 2007
O que se faz a um ladrão?
A equipa da Unidade de Diagnóstico Social prossegue a sua investigação sobre linchamentos. Uma das veredas desse trabalho consiste em pedir a estudantes de escolas primárias do 2.º grau que escrevam uma redacção na qual digam o que se deve fazer a um ladrão. Eis três respostas dadas numa escola de Maputo, na disciplina de Ciências Sociais. Comecemos pela Regina, que propõe que se bata e se queime o ladrão "para não roubar mais", sendo a polícia dispensável:
20 comentários:
Seja bem-vinda (o) ao blogue "Diário de um sociólogo"! Por favor, sugira outras maneiras de analisar os fenómenos, corrija, dê pistas, indique portais, fontes, autores, etc. Não ofenda, não insulte, não ameace, não seja obsceno, não seja grosseiro, não seja arrogante, abdique dos ataques pessoais, de atentados ao bom nome, do diz-que-diz, de acusações não provadas e de generalizações abusivas, evite a propaganda, a frivolidade e a linguagem panfletária, não se desdobre em pseudónimos, no anonimato protector e provocador, não se apoie nos "perfis indisponíveis", nas perguntas mal-intencionadas, procure absolutamente identificar-se. Recuse o "ouvi dizer que..." ou "consta-me que..."Não serão tolerados comentários do tipo "A roubou o município", "B é corrupto", "O partido A está cheio de malandros", "Esta gente só sabe roubar". Serão rejeitados comentários e textos racistas, sexistas, xenófobos, etnicistas, homófobos e de intolerância religiosa. Será absolutamente recusado todo o tipo de apelos à violência. Quem quiser respostas a comentários ou quem quiser um esclarecimento, deve identificar-se plenamente, caso contrário não responderei nem esclarecerei. Fixe as regras do jogo: se você é livre de escrever o que quiser e quando quiser, eu sou livre de recusar a publicação; e se o comentário for publicado, não significa que estou de acordo com ele. Se estiver insatisfeito, boa ideia é você criar o seu blogue. Democraticamente: muito obrigado pela compreensão.
Estou verdadeiramente sem palavras, Professor. Permita-me um desabafo: apetece-me chorar.
ResponderEliminarFátima Ribeiro
Este estudo e estas respostas são extremamente interessantes (e preocupantes, vindos de quem vêm), mas coloco uma questão:
ResponderEliminar- não deveria omitir a identidade dos autores das respostas?
Apenas uso primeiros nomes, a real identidade não é revelada. Mas tudo isto precisa ser analisado, integrado em vários contextos. E há variabilidade de situações em Maputo, Beira e Nampula. Falarei disso no seminário de 14 de Novembro. Enquanto isso, aguardo poder ainda hoje entrar em contacto com Jacqueline (investigadora brasileira que virá a Maputo e estará no seminário)para que ela eventualmente comente estas redacções.
ResponderEliminarNORMAL: De acordo com a norma, com a regra; comum.
ResponderEliminarEntao, estas criancas sao muito normais. Estao desenvolvendo capacidades que lhes permitem ajustar-se ao meio em que vivem.Nao creio que se trata de um trauma. Estas criancas nao vivem num ambiente hermeticamente isolado do resto da socieade. Eh talvez daquelas situacoes em que o anormal passou a ser normal.
A violencia (em todas as suas vertentes)que carateriza a nossa sociedade tornou-se algo muito normal. Logicamente, ha que nos defendermos contra ela, e nada melhor que responder com violencia. Depois torna-mo-nos todos seres violentes, sem amor nem compaixao pelo proximo.
Eu acho que, de uma forma mais profunda o caso de estudo nao devia ser as criancas por si so. Seria uma analise isolada, de um problema mais amplo.E creio que estes inqueritos sao apenas parte de um estudo mais amplo. Do meu ponto de vista, estes exemplos apenas trazem ao de cima o que por vezes nos passa despercebido ou tentamos omitir. O elevado grau de selvagaria que se apoderou de nos.
Tem que haver uma mudanca de atitude a todos os niveis. Tem que haver uma campanha civica, ou melhor de civilizacao a larga escala. Porque com criancas a pensar assim, questiono que futuro queremos!!!
Com este panorama, só nos falam de ensinar patriotismo e auto-estima nacional?
ResponderEliminarVamos avançando na pesquisa. Mas nem todas as crianças pensam como estas. Contudo, muitas vezes o excepcional é que é "normalmente" preocupante.Abraço!
ResponderEliminarEstas crianças, mais do que qualquer empresa ou empreendimento, levam o rótulo MADE IN MOZAMBIQUE.
ResponderEliminarÉ triste, muito triste tudo isso, O potencial de crueldade e violência que parece existir (em que percentagem?) na seiva da nação, nas flores do amanhã, no homem novo que se disse pretender construir. E nós, individualmente, completamente impotentes...
No leitor que escreveu sobre a normalidade existem excelentes janelas teóricas. Espero no aprofundamento desta pesquisa usar algo de Georges Canguilhelm sobrer a normalidade. Abraço a todos. E Fátima, não fique triste, por favor.
ResponderEliminarCompreender o paiis ( e as nossas criancas) implica capacidade de comparacao. Comparar a realidade do nosso paiis com outras latitudes. Vi em algum lugar deste blog alguee a ficar triste porque criancas se ameacam umas aas outras com tabefes (o tal de vou ti bater). A minha pergunta ee se isto ee realmente anormal? Algueem conhece criancas de algum paiis que nao se ameacem!
ResponderEliminarAas vezes eu penso que as nossas frustracoes se devem a que nos idealizamos um paiis que nao existe em parte nenhuma. Nao seria melhor clocarmos para noos proprios objectivos e metas realistas.
Eu creio que as nossas criancas sao normais. Nao precisamos de nenhuma ONG para nos civilizar.
Obed Khan
Aqui fica o seu parecer. Muito obrigado.
ResponderEliminarObed, creio que sim as nossas criancas sao normais e nao ha ONG que nos civilize. ONGs so atrapalham.
ResponderEliminarMas, tenho ca para mim que a normalidade da violencia pode ser descrita de acordo com o contexto sobre o qual pretendemos fazer a analise. E essa analise podemos faze-la no contexto de uma casa, localidade, distrito, provincia ou pais. Por exemplo, na swazilandia aquelas dancas com o peito desnudado em publico eh normal. Mas, talvez nao o seria em Mocambique.
Dai que sim, pode ser que as manifestacoes de violencia destas criancas seja normal no contexto em que elas vivem. Mas se-lo-a no contexto nacional?? Pode ser que sim, pode ser que nao.
Acho interessante quando pergunta qual o pais que as criancas nao se ameacam. Confesso que nem eu nem o Obed tem a resposta. Mas se formos a comparar com varios paises, podemos encontrar uns com graus de violencia mais elevados que os outros. Dai que poderiamos colocar outra questao, sera que a violencia eh aceitavel? Pode ser que para uns seja e outros nao. Mas se formos a olhar para o facto de que nenhum (creio eu) ser humano civilizado e racional gosta de ser violentado, entao porque iremos violentar os outros?
Mas tem um pormenor interessante que, estamos a falar de criancas em tenra idade.Creio que deve conhecer este proverbio: De pequeno se torce o Pepino.
Por ultimo, devia ler os posts do Prof. Serra para compriender melhor o contexto em que estas ameacas se enquadram.
PP
Ps: O primeiro post sobre normalidade eh meu..desculpe reclama-lo so depois das suas palavras Prof.Serra.
Haverá uma altura em que falaremos (eu e a minha equipa) sobre isso, primeiro em seminário, depois em livro. A análise não é fácil, mas vamos tentá-la. Temos ainda muita coisa a analisar e a compreender. Naturalmente que não está em causa depositarmos nas nossas crianças uma anormalidade ab initio, específica. O fundamental é compreender o contexto social e histórico em que certas atitudes e certos comportamentos se tornam normais mesmo que nos choquem. Nem sequer os conceitos são extáticos. O problema consiste em furtarmo-nos a concepções que pagam, regra geral, uma boa factura ao interior de definições que parecem evidentes. Existem em Foucault e Canguilhem, por exemplo, excelentes páginas que discutem o conceito de normal e de normalidade, conceitos que têm muito a ver com a medicina.
ResponderEliminarObed,
ResponderEliminarUma coisa é o "Vou ti bater", outra o que está nestas composições. A primeira, acontecendo ocasionalmente, é natural nas crianças, e até, em determinadas circunstâncias, compreensível nos adultos. Um certo grau de agressividade toda a gente tem. Mas estas composições falam-nos de espancar até à morte, de enterrar, matar, queimar vivo, aparentemente com grande naturalidade, e em pleno século XX. São escritas por meninos de 12 ou 13 anos, identificando-se, em situação formal, em registos escritos que sabem que vão ser lidos por adultos, até seus professores. Não são criancinhas, mas já adolescentes, com consciência do que dizem, que têm um certo grau de policiamento das suas afirmações. Elas parecem estar a dizer sinceramente o que pensam e o que julgam ou sabem ser aceite pelo seu grupo social, pela sociedade. Elas são normais, sim, porque se ajustam ao meio em que vivem, tal como as dos outros países.
Ao Professor e à equipa do estudo eu queria contar uma experiência pessoal, de 1983, também com crianças da idade e nível escolar do estudo.
Quando foi decretada a aplicação pública da pena de chicotada, eu dirigia a Escola Secundária Heróis Moçambicanos, de Moatize, uma escola que na altura só tinha a quinta e a sexta classes. Nessa condição, recebi uma nota oficial dizendo que no dia seguinte a escola devia mobilizar alunos, professores e outros trabalhadores para irem assistir à aplicação da pena de chicotada, para que servisse de exemplo. Como achei tratar-se de uma orientação que eu não devia, nem conseguiria cumprir, reuni os professores e combinei com eles uma forma de manter os alunos na escola.
Na altura, eu era um dos dois juízes populares do distrito, daqueles que eram eleitos pelas Assembleias Distritais, e, por isso, bem ou mal, achei que não podia deixar de ir à “cerimónia”. A certa altura, vi ali entre a multidão a escola em peso. A excitação era tanta que nenhum professor tinha conseguido reter os alunos nas salas. No final, eram estes os comentários de muitas das crianças: Bateram tão pouco! Aquilo nem doeu. Foi para isso que chamaram as pessoas?
Estávamos em guerra, e vigilância, definição e punição severa do inimigo, comandavam as nossas vidas. Incapaz de aceitar que o que eu vira fosse normal naquela idade ou tratar-se de uma questão cultural que eu nunca poderia compreender, assim entendi a reacção daquelas muitas crianças.
Também hoje espero que assim seja, que em nós, adultos, no sistema e nas circunstâncias esteja a culpa, para ter a certeza que podemos agir tentanto criar um mundo mais justo e mais humano. E entristece-me profundamente ver que não temos sido capazes de o fazer.
Fátima Ribeiro
Há muita coisa por analisar e compreender.
ResponderEliminarEste país ´viveu, durante a fase do seu surgimento, uma fase que eu costumo designar de espartana: níveis de consumismo baixíssimos, corrupção controlada, criminalidade quase inexistente (podia-se ir dormir e deixar a roupa nos estendais). Ora, isto era conseguido por uma combinação de ideologia marxista com um policiamento quase que asfixiante, onde cada um vigiava seu vizinho.
ResponderEliminarMuitos de nós não nos apercebemos de que os contextos mudaram. A ideologia marxista esfumou-se, o policiamento asfixiante foi removido, o consumismo apareceu em grande força, a competição entre as pessoas é feroz, a criminalidade sobe em espiral, a corrupção instala-se com todas as suas forças. É isto anormal?
Creio eu que o anormal seria mudar o contexto e continuarmos naquele estado idílico dos primeiros anos da independência.
É evidente que estamos todos perplexos (incluindo a polícia) com o surgimento rampante da criminalidade, da corrupção e da violência. Nesta perplexidade o elo mais fraco (precisamente a polícia) é que sofre. Tenho ouvido várias pessoas dizerem que a criminalidade se deve à má actuação da polícia.
Parece-me perfeitamente lógico que, perante a nossa perplexidade e confusão perante o crime e a violência, se desenvolva em nós (incluindo nas nossas crianças) uma tendência de controlar a situação com alguma violência. Esta que o Professor e a sua equipa têm estado a testemunhar nos bairros de Maputo. Não me parece contudo que o nosso país possa ser descrito, com rigor, como um país de pessoas violentas, ou de crianças violentas.
Obed L. Khan
Dou toda a razão a praticamente tudo o que foi dito na última entrada, chamando apenas a atenção para dois pontos: 1)a necessidade de se ver até onde é aceitável essa "alguma" violência "normal"; 2)O mais "anormal" na corrupção parece ser a tolerância ou o sentimento de impotência com que muitos a vêem.
ResponderEliminarNo qu nos toca prosseguimos o estudo, sempre na saudável maneira de colocarmos novos problemas aos problemas e novas perguntas às respostas.
ResponderEliminarEh Obed, parece que estamos a caminhar na mesma linha de pensamento. Optimo.
ResponderEliminarInteressante a correlacao que faz entre o marxismo, vigilancia e a criminalidade. Realmente, bons tempos. Mas, creio eu que em Paises como Inglaterra, Suica (sei que sao paises desenvolvidos..e porque nos nao podemos desenvolver-nos tambem??) e outros tantos nao ha tanta vigilancia mas sim o sentido de respeito pelas leis, normas e o civismo. Por exemplo, enquanto em Mocambique eh normal deitar uma casca de banana no chao, na Inglaterra voce pode deitar, mas depois tens uma multa de 80 Libras. Ninguem vigia ninguem, mas cada um tem o sentido de responsabilidade,sabendo quais sao os seus direitos, deveres e obrigacoes.
Entretanto, nao devemos confundir o NORMAL com o ACEITAVEL. Na minha opiniao, podem parecer a mesma coisa mas nao creio que sejam. pOR Exemplo, a mudancas politicas em Mocambique que culminou com a queda do Marxismo pareceu-me algo muito normal, tomando em consideracao o que estava acontecendo no Mundo fora. Seria anormal se nos tivessemos agarrado a um sistema que por si so estava em decadencia. Se o Obed acha que era melhor o Marxismo, isso ja eh outra questao.
Quanto a normalidade da corrupcao e criminalidade, creio eu que no periodo marxista era algo muito anormal. Mas, com as mudancas sociais, economicas e politicas tornou-s algo muito normal. Ou por outra, tornou-se COMUM. As razoes por detras desta normalidade sao varias. Mas nao acho que seja um comportamento aceitavel. Uma vez fui assaltado na zona do Xipamanine, jurei nunca mais voltar a aquela zona e a minha irma disse-me " oh, relaxa, isto eh assim mesmo". Quer dizer que ser assaltado, nao era novidade, era comum, frequente, normal.Se essa convivencia com a criminalidade era normal e as pessoas conformavam-se, para mim era inaceitavel.
Quando o Obed diz "Creio eu que o anormal seria mudar o contexto e continuarmos naquele estado idílico dos primeiros anos da independência." O Obed tem toda razao. Mas acha que esta "normalidade da violencia" eh aceitavel no contexto de uma sociedade civilizada? Por outra, acha que a limitacao das liberdades individuais, a falta de sossego, a falte de paz (nao necessariamente relacionada com a guerra), as agressoes sao a forma mais adequada de vivermos felizes e em harmonia?
Claro a criminalidade pouco tem a ver com a ma actuacao da Policia. Mas a ineficacia do nosso sistema de Justica, no qual podemos incluir a policia, cria um sentimento de impunidade dos actos crimanais, estimulando consequentemente a sua pratica. Por outro lado, aos termos criancas que desde a tenra idade desenvolvem um espirito violento, corremos o risco de viver numa sociedade em que o respeito, amor ao proximo, a compaixao deixem de ser normais.A porrada passa a ser normal. E ai pergunto, sera uma sociedade "normalmente violenta" que nos pretendemos?
Por ultimo, de uma forma muito pessoal, para mim nao ha violencia aceitavel nem toleravel. Todos temos direito a viver em paz, harmonia e de nao sermos sugeitos a qualquer tipo de violencia.
PP
Com Obed, estou junto. Com PP e os outros, juntinho.
ResponderEliminarPP e Obed concordo convosco.
ResponderEliminarHá porém um facto que me preocupa e que gostaria de obter a vossa opinião: as crianças estão a escrever nas suas redacções que SE DEVE queimar os ladrões. São percepções do meio em que vivem. Aliás nas reportagens televisivas sobre linchamentos assistimos que participam a vovo, a mamã, o papá, o mano, a mana (com bebé nas costas) e o maninho (papaíto de 7 anos que depois quando questionado sobre o que fazer com o ladrão não exita em transcrever o que VIU fazer).
Haverá alguma forma de inverter o sentido desta marcha?
haverá alguma forma de, no futuro, as crianças escreverem o que achamos que deviam ter escrito?
Estas crianças não são anormais meus caros.