"Racismo e etnicidade são exercícios sociais de inclusão/exclusão que, interiorizados e assumidos, funcionam como os semáforos (o verde para os nossos, o vermelho para os outros)"
A xenofobia é um termo que reenvia para diferentes tipos de construção social negativa de seres humanos diferentes de nós. É um exercício de canibalização do Outro que assume múltiplas formas. A propósito de aparentes indícios de xenofobia em Nampula, vou tentar criar aqui alguma reflexão sobre o tema. E começo por fazer uso de um livro publicado em 2000, produto de um estudo que conduzi em 1999 sobre racismo e etnicidade em cinco cidades do nosso país:
"Os seres humanos não nascem egoístas, racistas ou étnicos. Eles tornam-se nisso devido às lógicas combinadas de três fenómenos: interacção social, disputa de recursos de poder e educação. É aqui que se tecem os sistemas de referência e os meandros categoriais, é aqui que crescem, se consolidam e se tornam naturais os jogos de alteridade, que se desenvolvem o racismo e a etnicidade, é aqui que o bom senso deixa de ser, como queria Descartes, a coisa melhor partilhada do mundo.
A multiplicidade fenoménica da vida obriga os seres humanos a produzir quadros e categorias simplificadoras do social.
A vida humana é, em grande medida, uma constante disciplina do pormenor, da incerteza e da dúvida.
Essa disciplina opera, normalmente, através de três movimentos: o movimento do julgamento retrospectivo (do género "se assim foi no passado, sempre assim será"), o movimento da indução simplificadora (trata-se do "efeito do corvo negro": se encontramos um corvo negro, somos tentados a supor que todos os corvos são negros) e o movimento infra-intelectual da precedência afectiva (primeiro os nossos, depois os outros).
É com esses três movimentos que naturalizamos o que é socialmente produzido. E fazemo-lo apenas com alguns indícios, com alguns dados. Com meia dúzia de fragmentos enfrentamos o futuro, com o que temos atrás vamos ao encontro do que está à frente. Os hábitos são a chave que abre e domestica o imprevisto. Na verdade, face às coisas novas, somos tentados a reconduzi-las, rapidamente, às coisas velhas.
Toda a nossa vida é a conversão do desconhecido ao conhecido.
Quando entramos em contacto com o Outro, apresentamo-nos como o coágulo instintivo de milhares de percepções social e culturalmente trabalhadas e armazenadas.
O que julgamos ser natural, é, afinal, socialmente trabalho e construído, como se em nós houvesse uma espécie de genética social.
Racismo e etnicidade têm, aí, na sua elementaridade e na sua funcionalidade, um campo de acção exemplar.
Na verdade, eles apelam, ao mesmo tempo, para uma essencialidade original e para uma especificação de diferença irredutível supostas preceder a interacção social.
No racismo actua-se por marcadores físicos elementares - é a racialização do social; na etnicidade, por marcadores simbólicos (língua, "costumes", anterioridade de chegada a um território, heróis epónimos) da comunidade imaginada de origem - é a etnicização da identidade. Num caso temos a visibilidade somática, no outro a visibilidade da história.
Em ambos faz-se a apologia de um certo tipo de superioridade, seja de origem, seja de características intelectuais e morais, seja de ambos ao mesmo tempo.
É racista quem defende a superioridade genética de um grupo; é étnico quem defende a superioridade da sua comunidade imaginada de origem. Ambos procuram monopolizar os recursos de poder em função de marcadores, pigmentação num caso, comunidade imaginada de origem no outro.
Racismo e etnicidade são exercícios de inclusão/exclusão sociais que, interiorizados e assumidos, funcionam como os semáforos (o verde para os nossos, o vermelho para os outros).
Ambos erigem sistemas acabados de verdades do dia-a-dia em referenciais de conduta e atribuição instintiva de significado social, cuja característica é de comportarem como tropismos sociais, federando atitudes, unindo comportamentos e estabelecendo fronteiras intolerantes entre os seres humanos.
À força de se sentir o diverso e de o produzir como símbolo e acto, atinge-se a intolerância mesmo quando se faz a apologia multicultural. Tecemos e retecemos, então, com o ardor de Penélope, o espírito da casa fechada.
Nos casos mais extremos e trágicos, aqueles da alteridade absoluta erigida em armas e extermínio, racismo e etnicidade dão origem a um corpo doutrinário para o qual se busca uma fundamentação científica."
A multiplicidade fenoménica da vida obriga os seres humanos a produzir quadros e categorias simplificadoras do social.
A vida humana é, em grande medida, uma constante disciplina do pormenor, da incerteza e da dúvida.
Essa disciplina opera, normalmente, através de três movimentos: o movimento do julgamento retrospectivo (do género "se assim foi no passado, sempre assim será"), o movimento da indução simplificadora (trata-se do "efeito do corvo negro": se encontramos um corvo negro, somos tentados a supor que todos os corvos são negros) e o movimento infra-intelectual da precedência afectiva (primeiro os nossos, depois os outros).
É com esses três movimentos que naturalizamos o que é socialmente produzido. E fazemo-lo apenas com alguns indícios, com alguns dados. Com meia dúzia de fragmentos enfrentamos o futuro, com o que temos atrás vamos ao encontro do que está à frente. Os hábitos são a chave que abre e domestica o imprevisto. Na verdade, face às coisas novas, somos tentados a reconduzi-las, rapidamente, às coisas velhas.
Toda a nossa vida é a conversão do desconhecido ao conhecido.
Quando entramos em contacto com o Outro, apresentamo-nos como o coágulo instintivo de milhares de percepções social e culturalmente trabalhadas e armazenadas.
O que julgamos ser natural, é, afinal, socialmente trabalho e construído, como se em nós houvesse uma espécie de genética social.
Racismo e etnicidade têm, aí, na sua elementaridade e na sua funcionalidade, um campo de acção exemplar.
Na verdade, eles apelam, ao mesmo tempo, para uma essencialidade original e para uma especificação de diferença irredutível supostas preceder a interacção social.
No racismo actua-se por marcadores físicos elementares - é a racialização do social; na etnicidade, por marcadores simbólicos (língua, "costumes", anterioridade de chegada a um território, heróis epónimos) da comunidade imaginada de origem - é a etnicização da identidade. Num caso temos a visibilidade somática, no outro a visibilidade da história.
Em ambos faz-se a apologia de um certo tipo de superioridade, seja de origem, seja de características intelectuais e morais, seja de ambos ao mesmo tempo.
É racista quem defende a superioridade genética de um grupo; é étnico quem defende a superioridade da sua comunidade imaginada de origem. Ambos procuram monopolizar os recursos de poder em função de marcadores, pigmentação num caso, comunidade imaginada de origem no outro.
Racismo e etnicidade são exercícios de inclusão/exclusão sociais que, interiorizados e assumidos, funcionam como os semáforos (o verde para os nossos, o vermelho para os outros).
Ambos erigem sistemas acabados de verdades do dia-a-dia em referenciais de conduta e atribuição instintiva de significado social, cuja característica é de comportarem como tropismos sociais, federando atitudes, unindo comportamentos e estabelecendo fronteiras intolerantes entre os seres humanos.
À força de se sentir o diverso e de o produzir como símbolo e acto, atinge-se a intolerância mesmo quando se faz a apologia multicultural. Tecemos e retecemos, então, com o ardor de Penélope, o espírito da casa fechada.
Nos casos mais extremos e trágicos, aqueles da alteridade absoluta erigida em armas e extermínio, racismo e etnicidade dão origem a um corpo doutrinário para o qual se busca uma fundamentação científica."
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Adaptado de Serra, Carlos (dir), Racismo, etnicidade e poder. Um estudo em cinco cidades de Moçambique. Maputo: Livraria Universitária, 2000, pp. 20-22.
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