Outros elos pessoais

17 abril 2007

Linchamentos: apelo extremo a um Estado distante

No Brasil: "Estudo revela como as redes de vizinhança em comunidades estão ligadas a casos de linchamento. A pesquisa mostra que, com a distância entre instituições e cidadãos, o linchamento surge como alternativa contra a ineficiência do Estado." (imagem pertencente ao portal aqui indicado)

Seguem-se alguma ideias e hipóteses a propósito do ressurgimento dos linchamentos na periferia de Maputo.
Não foi porque inventámos a ciência que deixámos de caçar feiticeiros, foi porque deixámos de caçar feiticeiros que inventámos a ciência. Li isto em René Girard.
Mesmo assim, com a ciência, nós, seres humanos, parecemos fadados a esquecer as causas naturais dos fenómenos - longínguas e inacessíveis -, em favor das causas socialmente significativas e que exigem uma intervenção correctiva. Também aqui está o dedo de Girard*.
Não é a ciência com as suas causas naturais que habita os bairros periféricos de Maputo.
Nem é ela que habita os nossos actos do dia-a-dia, não importa de quem nem onde.
Linchar alguém, de forma sistemática, é, evidentemente, bárbaro. A história da humanidade está cheia desse tipo de barbaridade. História que sempre passa ao largo da ciência.
Mas, do ponto de vista científico, o problema está em encontrar a racionalidade da irracionalidade, o problema está em encontrar a chave cognitiva que permite compreender por que e como cidadãos pacatos se transformam de repente em assassinos conjunturalmente organizados em multidões furiosas.
O problema está em compreender a racionalidade da catarse, da busca de purificação que os seres humanos parecem sentir em determinadas alturas, como, aqui, em Maputo.
Temos e temos a tendência - legítima - de considerar o linchamento como uma manifestação de desordem.
Mas bem mais difícil é e será aceitar que o linchamento - em toda a sua desordem - pode ser um protesto extremo contra a desordem, um apelo à ordem em sua forma de protesto contra a desordem, contra um certo tipo de anomia que as pessoas sentem de forma intensa.
O linchamento é, por hipótese, uma linguagem errada para expressar um mal-estar real, para traduzir uma crise e pôr em acto uma acção correctiva. O linchamento é uma busca de Estado lá onde ele surge ausente. Um linchamento é a condenação do Estado ausente.
A acção correctiva é tão mais extrema em sua acção quão mais sentida for a ausência de quem, legalmente, devia repor a ordem.
Em última análise, os linchados são, simbolicamente, os representantes dos tribunais e da polícia. Mas, talvez, bem mais: são, também, os responsáveis pela gestação da pobreza que leva uns a roubar, outros a defenderem-se e, eventualmente, inocentes a pagarem a factura das assimetrias sociais.
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*Girard, René, Le bouc émissaire. Paris: Grasset&Fasquelle, 1982, pp. 299-300.

4 comentários:

  1. Caro Carlos,

    Aqui no Brasil, sempre que ocorre algum crime bárbaro cometido por menores de 18 anos, fala-se em diminuir a maioridade para 16 anos.

    Sempre penso na ausência do Estado no que diz respeito a evitar que esses jovens optem pelo crime.

    A violência desses jovens, assim como no caso dos linchamentos, é a condenação do Estado ausente, como você bem disse. Também acredito que se trata de uma espécie de pedido de socorro, emitido através de uma linguagem errada.

    Abraço,

    Leonardo

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  2. Obrigado. Estou a tentar trazer aqui alguém que, aí, tenha trabalho em linchamentos. Vamos a ver se consigo. Tentei José de Souza Martins e falhei, acho que o sujeito é um pouco...petulante. Tento agora Jacqueline Sinhoretto. Conhece-a?

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  3. Em uma rápida pesquisa na internet, encontrei um artigo sobre linchamentos na Bahia. O elo é o seguinte:

    http://www.scielo.br/pdf/pe/v9n2/v9n2a03.pdf

    Na bibliografia desse artigo é possível encontra várias indicações sobre o assunto.

    No mesmo sítio, encontrei dois trabalhos de Jacqueline Sinhoretto, mas acredito que não tratem especificamente sobre os linchamentos.

    Se eu encontrar algo mais, apareço aqui novamente!

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  4. Muito, muito obrigado, Leonardo. Entretanto, Jacqueline já respondeu a um email meu e poderá estar aí o início de uma mutualidade científica vantajosa para os nossos países, povos e universidades. Ela virá aqui. Estamos juntos, como aqui dizemos!

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