Os linchamentos regressaram à ribalta na periferia da cidade de Maputo após um aparente breve interregno de algumas semanas. A primeira notícia sobre eles data, neste diário, de 2 de Maio de 2006. Por isso é chegado de novo o momento de falarmos deles. Especialmente de tentar teorizá-los. Para abrir esse caminho, vou indicar aqui dois excelentes textos. No primeiro, o sociólogo José de Souza Martins coloca as condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil. No segundo, três autores discutem homicídio, delinquência e violência em São Paulo. Fiz preceder cada um desses trabalhos de um extracto. Leiam, vale a pena.
I
"No nosso caso, os linchamentos sugerem que há um arraigado sistema de valores subjacente ao comportamento coletivo violento. E, ao mesmo tempo, uma combinação difícil entre tal sistema e os valores racionais da lei e da justiça. Há uma dupla moral envolvida nessas ocorrências – a popular e a legal. Na verdade, esta última está sendo julgada por aquela. A legitimidade desta está em questão. Com seu ato, os linchadores indicam que há violações insuportáveis de normas e valores, mesmo para um delinqüente preso: no período recente há vários casos de presos que lincham companheiros de cela quando sobre eles pesa a acusação de estupro de crianças.
A questão central é esta: por que a população lincha? A partir do conhecimento que se tem de diferentes modalidades de linchamento em diferentes lugares do país, a hipótese mais provável é a de que a população lincha para punir, mas sobretudo para indicar seu desacordo com alternativas de mudança social que violam concepções, valores e normas de conduta tradicionais, relativas a uma certa concepção do humano. Uma hipótese decorrente é a de que o linchamento é uma forma incipiente de participação democrática na construção (ou reconstrução) da sociedade, de proclamação e afirmação de valores sociais, incipiente e contraditória porque afirma a soberania do povo, mas nega a racionalidade impessoal da justiça e do direito.
O linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de questionamento da desordem. Ao mesmo tempo, é questionamento do poder e das instituições que, justamente em nome da impessoalidade da lei, deveriam assegurar a manutenção dos valores e dos códigos."
II
"Vários estudos brasileiros vêm, há mais de uma década, colocando sob suspeição uma tese clássica que sustenta a existência de relações de causalidade entre pobreza, delinqüência e violência. Em particular, os estudos de Zaluar (1994 e 1999), de Coelho (1988), de Beato (1998) e Sapori e Wanderley (2001) contestam profundamente essa associação. Observando o comportamento da criminalidade violenta, na região metropolitana do Rio de Janeiro, entre 1980 e 1983, período caracterizado pela crise econômica e por elevadas taxas de desemprego, Coelho constatou o declínio das taxas de homicídio, de estupro e de roubo. Estudando os determinantes da criminalidade no Estado de Minas Gerais, Beato concluiu que os municípios de menor incidência de crimes são justamente os mais pobres; ao contrário, a riqueza e a circulação de dinheiro estão mais associadas à maior incidência e prevalência de crimes, em especial os violentos. Beato e Reis (1999) não identificaram qualquer correlação positiva entre as taxas de desemprego urbano no município de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, e as taxas de criminalidade. Sapori e Wanderley, por sua vez, observando quatro regiões metropolitanas do Brasil - Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul - aplicaram testes estatísticos (medida de Granger e testes econométricos) não encontraram indícios significativos de que as variações nas taxas de desemprego implicassem variações, presentes ou futuras, nas taxas de criminalidade. Por fim, em seu estudo sobre as relações entre renda, desigualdade social e violência letal, Cano e Santos (2001) afirmam não ser possível identificar clara influência da renda sobre as taxas de homicídio."
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