Outros elos pessoais

29 maio 2006

Diálise do senso comum

Quero defender, uma vez mais, que é fundamental estarmos atentos à evidencialização teimosa da vida, que é fundamental procedermos a todo o momento a uma espécie de bisturização ou, se preferirdes, de diálise das camadas de senso comum (porque, na realidade, no fundo é o senso comum que está aqui em causa) sedimentadas em nós e no nosso inesgotável capital de crença e de credulidade.
É fundamental, enfim, pôr a evidência não como um dado adquirido, mas como um problema e como um campo interactivo.
Proponho-vos que tenhamos da vida, na esteira de um Kurt Lewin, não uma concepção aristotélica, mas uma concepção galileana, não uma concepção de estados substantivos, mas uma concepção de dinâmica de campo.
Na verdade, numa concepção aristotélica, a qual é, em última análise, homologante do senso comum, coisas e fenómenos têm em si, na suas propriedades, a sua razão de ser[1]. Na concepção aristotélica o mundo é normativamente visto como pré-arrumado, preexistente e pós-existente. O que não é claro, ordenado e regular nos seus movimentos circulares e rectilíneos (tal como os fenómenos celestes) é considerado inferior.
Ao contrário, numa concepção galileana, todos os fenómenos são inseridos numa dinâmica de campo, interactiva, viva, dinâmica, conflitual, onde cada parte depende da outra[2].
E propondo as coisas assim, é, também, propor que se tenha da cultura, por exemplo, a concepção de um processo vivo, formado de inúmeras interacções sociais, de invisíveis sincretismos, de fecundações permanentes. Escreveu Lewin: «Com um rio, cuja forma e velocidade são determinadas pelo equilíbrio entre aquelas fôrças que tendem a fazer a água correr mais depressa, e a fricção que tende a fazer a água fluir mais devagar, o padrão cultural de um povo, numa época dada, é mantido por um equilíbrio de fôrças em contraposição.»[3]
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[1]A partir da frequência de certos comportamentos concluímos que eles são propriedades intrínsecas de algo ou de alguém, tal como, para Aristóteles, a queda era uma propriedade intrínseca dos corpos. Na verdade, nada é explicado aqui e estamos, portanto, perante um exercício de raciocínio circular - veja, a propósito, Garcia-Roza, Luiz Alfredo, Psicologia Estrutural em Kurt Lewin. Rio de Janeiro, Vozes, 1972, p. 11. Veja, também, Malherbe, Michel, Qu'est-ce que la causalité? Hume et Kant. Paris: J. Vrin, 1994, pp.5-23.
[2]ibid., pp.1-28.
[3]Lewin, Kurt, Problemas de dinâmica de grupo. São Paulo: Cultrix, s/d, p.62.

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