Outros elos pessoais

20 abril 2006

Os leões mágicos de Muidumbe

Entre Junho de 2002 e Maio de 2003 sete leões provocaram pânico generalizado durante vários meses no distrito de Muidumbe, província de Cabo Delgado, com uma população de cerca de 63.000 pessoas. Comeram 46 pessoas e feriram outras seis.
Na altura havia fome nesse distrito de agricultura de subsistência à base de milho e com 60% de analfabetos. Campeava a seca. Mas não só: a guerra civil afastara as pessoas da região durante alguns anos. Finda a guerra, elas regressaram e encontraram um ecossistema onde os animais viviam, onde os leões tinham antílopes para comer. O regresso dos humanos desarticulou o habitat dos animais, os antílopes afastaram-se. Os leões passaram a caçar, então, os humanos.
Acontece, porém, que o comum dos mortais locais não tomou em consideração essas subtilezas do meio-ambiente e achou que os leões eram magicamente comandados à distância por outros seres humanos ou que eram pura e simplesmente pessoas encarnadas em leões. Impotentes, habitantes enfurecidos deram então curso à catarse, espécie de rito de purificação social total, linchando 18 dos seus compatriotas, acusados de participarem no comando.
Todavia, os principais acusados de comandarem os leões à distância eram pessoas bem distintas: o administrador distrital, os régulos, membros do partido no poder, um comerciante, etc. O administrador foi acusado de ter sacos de dinheiro, de possuir um helicóptero silencioso e invisível, de fazer negócios estranhos com os “brancos”. Um doente mental foi também acusado, coisa anómala. Todavia, essa figura pertencia igualmente à família perturbadora da alteridade da crise.
Foram chamados os curandeiros para aplacar o mal. As mortes aumentaram de número. Dois caçadores vieram muito tempo depois, meses depois, após montes de burocracia de permeio finalmente vencida (a sede da administração distrital não possuía uma única espingarda) : os leões foram abatidos, pânico e chacina terminaram.
Estamos perante uma crença irracional?
O fundamental a reter aqui é que os principais acusados de comandar os leões à distância eram figuras do Estado ou a ele associadas ou com “bem-estar” acima da média local (o comerciante).
Numa situação de crise, de eclipse do social, os pobres lançaram aos ricos a culpa do seu mal-estar e das suas privações. E, sobretudo, foi clara a sua mensagem: o Estado afastara-se deles, não atalhou o mal a tempo.
Assim, as figuras do Estado, a figura do comerciante (acusado de usar a magia para enriquecer), figuras do bem-estar, surgiram aos olhos dos camponeses, em meio à sua privação, como intrusos perigosos, como a substância plena de uma alteridade subversiva, desestabilizadora.
Uma linguagem errada para traduzir um problema real, o da privação.

Colegas: a crise social e a busca de bodes expiatórios têm belos momentos de análise em Edgar Morin e René Girard. Farei correcções oportunamente.
Referências:
“Questão de fundo”, Rádio Moçambique, 29/11/2003, 20 horas

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