Outros elos pessoais

09 setembro 2015

"Avião" mágico "aterra" de novo em Moatize

Leia a reportagem no "Malacha", aqui.
Adenda: em 2012 também ocorreu uma "aterragem". A esse propósito escrevi em 2013 uma série neste diário, divulgada em 2014 em livro, cujo texto completo é este:
As três racionalidades
Em Moatize, pátria do carvão a cerca de 20 quilómetros da cidade de Tete, alvo das multinacionais, um havido avião mágico – prosaico boneco de trapos com ar estranho -, supostamente usado para transporte nocturno de feiticeiros, "aterrou" dia 31 de Dezembro de 2012 no quintal de um jovem casal. Momento de grande azar para o casal, pois o marido perdera o pai em Setembro e a carta de condução já em Dezembro, enquanto a esposa abortara em Agosto. Esta foi a terceira vez que um avião mágico aterrou na vila, os habitantes estão de novo preocupados.
Há que queimar o avião de 31 de Dezembro, sentenciou um ancião. Por sua vez, a polícia entendeu que não havia crime, o fenómeno não tinha enquadramento no código penal, o assunto devia ser tratado pelo “médicos tradicionais”, por outras palavras, pelos curandeiros. Enquanto isso, o secretário do bairro afectado apontou o dedo acusador aos curandeiros malawianos e prometeu que o seu executivo iria promover uma campanha em todos os quarteirões da vila de apelo à vigilância. O ancião mencionado é o veículo da racionalidade popular; a polícia exemplifica a racionalidade estatal; finalmente, o secretário do bairro é o porta-voz da racionalidade da mão estrangeira.
A racionalidade popular aqui em causa tem a ver com regras de inferência. O surgimento do avião nada tem a ver, localmente, com irracionalidade ou com ilógica. Trata-se de uma crença colectiva numa relação ao mesmo tempo de intencionalidade e de causalidade, relação que faz sentido para aqueles que nela acreditam. De nada servirá sustentar que estamos perante uma crença objectivamente falsa. Na verdade, a crença é subjectivamente sentida como legítima, como verdadeira, quer como intenção, quer como causa. Como intenção, na medida em que se acredita que o avião foi prepositada e mágicamente construído para provocar efeitos maléficos; como causa, na medida em que não importa que fenómeno desagradável ou dramático ocorra no período de aterragem do avião, será imediatamente havido como consequência natural da força maléfica.
Perante o avião invasor e atemorizante para certos círculos de Moatize, eis a posição do Estado veiculada através da polícia: "(...) as autoridades policiais consideram que a presença de “avião tradicional” não é crime, porque não tem enquadramento no código penal. Poderia ser crime se no interior houvesse um nado-morto ou algum membro do corpo humano, conforme avançaram, acrescentando que o fenómeno só pode ter interpretações a partir dos médicos tradicionais, por se tratar de factos meramente mágicos."
Através do porta-voz da polícia, o Estado colocou-se formalmente à margem do que chamou "fenómenos mágicos". Na verdade, perante esse tipo de fenómenos, aparelhos do Estado têem por regra encaminhá-los para a Ametramo.
Por outras palavras, através do seu representante, no caso vertente a polícia, o Estado colocou uma fronteira rígida entre visibilidade e comprovação material e crença nas forças do invisível. Sem dúvida que os polícias individualmente considerados podem acreditar (e acreditam, muitas vezes) nessas forças, mas o Estado formal exige que essa crença fique na penumbra.
Passo à terceira racionalidade.
Quem foram os obreiros de tão malévola acção? O secretário do bairro onde aterrou o misterioso avião não teve dúvidas: foram os curandeiros malawianos. Estes pérfidos seres merecem cuidado e por isso o secretário prometeu que iria desencadear uma campanha em todos os bairros da vila de Moatize para que as pessoas pudessem estar vigilantes. Esta, a racionalidade da mão estrangeira.
Qualquer das racionalidades fez e faz sentido para os seus defensores e, provavelmente, podem ter dado origem a combinações.
- Serra, Carlos, Observar, sentir, analisar. Lisboa: Escolar Editora, 2014, pp. 127-129.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Seja bem-vinda (o) ao blogue "Diário de um sociólogo"! Por favor, sugira outras maneiras de analisar os fenómenos, corrija, dê pistas, indique portais, fontes, autores, etc. Não ofenda, não insulte, não ameace, não seja obsceno, não seja grosseiro, não seja arrogante, abdique dos ataques pessoais, de atentados ao bom nome, do diz-que-diz, de acusações não provadas e de generalizações abusivas, evite a propaganda, a frivolidade e a linguagem panfletária, não se desdobre em pseudónimos, no anonimato protector e provocador, não se apoie nos "perfis indisponíveis", nas perguntas mal-intencionadas, procure absolutamente identificar-se. Recuse o "ouvi dizer que..." ou "consta-me que..."Não serão tolerados comentários do tipo "A roubou o município", "B é corrupto", "O partido A está cheio de malandros", "Esta gente só sabe roubar". Serão rejeitados comentários e textos racistas, sexistas, xenófobos, etnicistas, homófobos e de intolerância religiosa. Será absolutamente recusado todo o tipo de apelos à violência. Quem quiser respostas a comentários ou quem quiser um esclarecimento, deve identificar-se plenamente, caso contrário não responderei nem esclarecerei. Fixe as regras do jogo: se você é livre de escrever o que quiser e quando quiser, eu sou livre de recusar a publicação; e se o comentário for publicado, não significa que estou de acordo com ele. Se estiver insatisfeito, boa ideia é você criar o seu blogue. Democraticamente: muito obrigado pela compreensão.