"Do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem" (Bertolt Brecht).
Mais um pouco desta série, na qual, pouco a pouco, procurarei reencontrar os leões de Muidumbe, pois a história desses leões é bem mais do que um conjunto articulado de violências, é, especialmente, um excelente campo de utensílios analíticos.
Escrevi no número anterior que havia cinco coisas sobre as quais iria debruçar-me um pouco, designadamente: 1. Atracção pela moralização; 2. Protocolos correntes de leitura e análise na imprensa; 3. Características da revolta; 4. Possíveis causas; 5. Questões em aberto. Colocadas, já, algumas ideias sobre o primeiro ponto, avancei para o segundo. Neste segundo ponto, propus quatro protocolos que foram correntes na imprensa no concernente à leitura e à análise das manifestações. Tendo já escrito sobre o primeiro (produção de estigma), avanço para o segundo.
2.2. Produção sistemática de causalidade externa para justificar os problemas internos. Efectivamente, este foi e continua a ser um momento maior nas análises. Preços internacionais, preços dos combustíveis, preço do trigo, imposições dos doadores, pressões do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, mercado cambial nada propício, etc. Isto, sem, por agora, considerar as conspirações de determinados actores que serão motivo de análise proximamente. Por outras palavras, toda a imensa rede local de relações sociais, toda a enorme e variada carga de história habitando as redes relacionais dos habitantes das nossas periferias urbanas, toda a acção estatal, todo esse dialéctico, vasto e conflitual mundo ficou e fica fora das causalidades, das respostas sociais activas. Então, as pessoas revoltaram-se (sem motivo, afinal, pois o problema não era interno - dedução implícita em vários círculos) e foram violentas porque as coisas lá fora não estão bem, sendo o Estado apenas uma vítima disso, em última análise a revolta foi contra o exterior, foi uma revolta de impotência, uma revolta igual às que têm acontecido um pouco em todo o mundo (frase típica: o nosso país não é o único afectado), uma revolta prevista, uma revolta típica, uma revolta-já-vista. Mais: a revolta popular foi encaixada numa teoria de fácil acessibilidade, a teoria do estômago. Aqui, a guerra do pão foi uma das frases causais mais correntes, acompanhada de um provérbio de grande efeito psicológico: em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão (foto reproduzida daqui).
(continua)
Nota: a base desta série (que está igualmente a ser reproduzida no semanário "Savana") é constituída pelos temas que desenvolvi recentemente em palestras proferidas no Observatório Juvenil e no Parlamento Juvenil.
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