No penúltimo número dei-vos a conhecer a remota desconfiança aldeã em relação aos processos de acumulação. Todo aquele que sobressaía em meio à pobreza local era acusado de feitiçaria. A tese era a de que o seu enriquecimento só poderia ter acontecido à custa da comunidade.
No último número dei-vos conta de que os chefes eleitos a nível aldeão eram aqueles que mais posses tinham e que o seu reinado (cito) "durava enquanto tivessem com que gastar com a comunidade. Eram obrigados a tudo gastar: comida, pombe, jóias, tecidos, etc. Quando nada mais lhes restasse, eram destituídos e passavam a pertencer ao grupo dos grandes por mérito, com direito ao uso de um chapéu de palha e de um bordão".
Ao fazer uso do tecto da história, a minha ideia é a de mostrar que certas crenças, que um certo padrão da imaginário social no nosso país, são bem anteriores aos tempos em que estamos e que provavelmente permanecem como uma espécie de arquétipos junguianos, de um inconsciente colectivo que, volta e meia, ressurge. Não apenas em Moçambique, mas um bocado por todo o nosso continente. E creio que cada vez mais. As sociedades de hoje não são as dos séculos XVI e XVII, são, naturalmente, bem mais complexas, bem mais desiguais, mais flagrantemente desiguais. E é por isso que a crítica dos processos de acumulação de riqueza - por parte de jovens bloqueados na ascensão social, que ao mesmo tempo criticam a acumulação e a exigem - é, hoje, bem mais aguda em África. Mais do que podemos pensar, o mundo da feitiçaria concernente aos processos de acumulação de riqueza é bem moderno, bem agudo. Regressarei a este tema lá mais para a frente.
No próximo número tenciono falar-vos da crença na chuva intencionalmente amarrada do céu devido à olowa (acção) de um ou de uma mukwiri (portador ou portadora do Mal), lá para os lados da Zambézia. E a partir daí tentarei mostrar que a feitiçaria é, frequentemente, uma linguagem política. E, volto a repetir, bem moderna, cada vez mais moderna e interventora.
(continua)
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