Outros elos pessoais

29 janeiro 2008

De novo racismo e etnicidade (1)

Como reparam, regresso uma vez mais ao racismo e à etnicidade.
Racismo e etnicidade são formas elementares de interacção social e não exercícios fenotípicos de origem, não sendo mais do que subprodutos de um mesmo fenómeno político: a luta inter-grupos pelo acesso privilegiado a recursos de poder raros. Por outras palavras, racismo e etnicidade nascem com eles, a partir daí e não antes.
Poder? Poder não é uma "coisa", mas a capacidade de um grupo conseguir que nas suas relações com outro grupo ou com outros grupos os termos de troca lhe sejam favoráveis.
Para chegar a essa situação de "direitos adquiridos", os actores munem-se de recursos estratégicos, recursos de poder, como sejam o controlo dos aparelhos do Estado, de normas, valores, estatuto social, riqueza material, honra, formação escolar, anterioridade de chegada, interpretação da história, etc.
A interacção social é, nesse sentido, portanto, assimétrica. Uma sociedade constitui-se diferenciando-se e excluindo. Como escreveu alguém, formar um grupo "é criar estrangeiros". Uma estrutura bipolar, essencial a toda a sociedade, coloca um "de fora" para que exista um "entre nós"; fronteiras, para que se desenhe um país interior; "outros", para que um "nós" tome corpo".
É nesse contexto que nasce e se fossiliza o que Freud chamou "narcisismo das pequenas diferenças", uma "pulsão instintiva" que acaba por aparecer, afinal, como que natural e estrangeira às relações sociais e à sua conflitualidade.
Mas esses "narcisismos" têm origem quer nas diferenças de classe, quer nas diferenças regionais. A este último nível tem curso o conflito a que chamo centro/periferia (isto não significa esquecer a multiplicidade de situações, colectivas e individuais, geradoras e reprodutoras de ambos os fenómenos).
Com efeito, o conjunto de actores gestores de "direitos adquiridos" vive numa configuração social, digamos num país, na qual um centro produtor (que participa da natureza do sagrado) das regras, das crenças e dos valores (a capital do País, a capital de uma província) está confrontado com uma periferia (o resto do País, o resto da província).
Os que estão na periferia relacionam-se com os que estão no centro através de um sentimento ambivalente de ciúme, repulsa e imitação.
Entre os mais sensíveis ou os mais inteligentes da periferia, pode surgir a sensação exacerbada de se encontrarem marginalizados da zona vital do centro.
As relações assimétricas dão origem à produção de imagens constantes e unificadas sobre o Outro, a essências supostas imutáveis e "automáticas" chamadas estereótipos.
Esses estereótipos são, ao mesmo tempo, (1) exercícios de identificação que confortam a imagem de honra que os grupos e as pessoas têm de si e (2) armas de combate na luta pelo acesso a recursos de poder raros.
Adaptado de Serra, Carlos (dir), Racismo, etnicidade e poder. Um estudo em cinco cidades de Moçambique. Maputo: Livraria Universitária, 2000, pp. 22-24.

2 comentários:

  1. Gostei! :)
    Interesso-me muito por estes temas, vou estar atenta à continuidade dos próximos post's.

    Está este seu livro à venda em Portugal?

    ResponderEliminar

Seja bem-vinda (o) ao blogue "Diário de um sociólogo"! Por favor, sugira outras maneiras de analisar os fenómenos, corrija, dê pistas, indique portais, fontes, autores, etc. Não ofenda, não insulte, não ameace, não seja obsceno, não seja grosseiro, não seja arrogante, abdique dos ataques pessoais, de atentados ao bom nome, do diz-que-diz, de acusações não provadas e de generalizações abusivas, evite a propaganda, a frivolidade e a linguagem panfletária, não se desdobre em pseudónimos, no anonimato protector e provocador, não se apoie nos "perfis indisponíveis", nas perguntas mal-intencionadas, procure absolutamente identificar-se. Recuse o "ouvi dizer que..." ou "consta-me que..."Não serão tolerados comentários do tipo "A roubou o município", "B é corrupto", "O partido A está cheio de malandros", "Esta gente só sabe roubar". Serão rejeitados comentários e textos racistas, sexistas, xenófobos, etnicistas, homófobos e de intolerância religiosa. Será absolutamente recusado todo o tipo de apelos à violência. Quem quiser respostas a comentários ou quem quiser um esclarecimento, deve identificar-se plenamente, caso contrário não responderei nem esclarecerei. Fixe as regras do jogo: se você é livre de escrever o que quiser e quando quiser, eu sou livre de recusar a publicação; e se o comentário for publicado, não significa que estou de acordo com ele. Se estiver insatisfeito, boa ideia é você criar o seu blogue. Democraticamente: muito obrigado pela compreensão.