Eis algumas conclusões provisórias que ontem apresentei, no anfiteatro principal da Faculdade de Medicina, perante numerosa assistência e após as intervenções de oito colegas, no primeiro seminário (mais dois se seguirão) de divulgação de resultados preliminares de uma pesquisa que a Unidade de Diagnóstico Social executa sobre linchamentos em Maputo:
- Nas percepções populares, o Estado é sentido como incapaz de resolver os problemas dos cidadãos, em especial no que concerne à Polícia.
- Nesse contexto percepcional, os linchamentos são um protesto contra essa incapacidade.
E são um protesto que se faz com a privatização da violência e da justiça face a uma situação em que os cidadãos não confiam na polícia e, eventualmente, nos tribunais. - Se são uma manifestação de desordem social, os linchamentos não são menos um protesto contra essa desordem.
- Todo o processo linchatório é sentido como uma catarse social, como uma purificação, como uma espécie de expulsão dos males sociais. A transformação de um criminoso ou de um inocente em vítima sacrificial é, no fundo, ao mesmo tempo uma crítica e um apelo que se faz ao Estado.
- Não é vital que o linchado seja efectivamente culpado de um crime: basta que ele se constitua como bode expiatório, como um corpo estranho, suspeito, como que o repositório imediato de uma violência contida e à espera de jorrar.
- A festa linchatória que tanto condenamos e na qual participam mulheres e crianças, é, também, a festa que comemora a “purificação” da comunidade dos males que ela acha que a apoquentam.
- Um linchamento é tacitamente assumido por toda uma comunidade pois cada morador sente-se vitimado quando alguém é violado, roubado ou morto ou quando um crime se dá em outro bairro mas repercute localmente e é simbolicamente assumido como local, como tendo sido localmente cometido.
- Essa a razão do imperativo da cultura do silêncio, mecanismo de auto-defesa pelo qual ninguém viu, ouviu ou disse algo em relação aos linchamentos. O linchamento é assumido como acto comunitário global, independentemente de todos terem ou não participado nele.
A cultura do silêncio é, de alguma forma, o manifesto da privatização da violência e da justiça e o símbolo de um curto-circuito na relação entre cidadãos e Estado, entre as expectativas daqueles em relação a este. - A polícia (mas tb os jovens membros que fazem o policiamento comunitário) é tida como a responsável pela falta de segurança nos bairros. Todavia, os linchamentos têm à sua retaguarda muitos fenómenos percutores que só colocados em rede, em conjunto e em interacção permitem compreender todo o processo que desagua no linchamento. A polícia é, apenas, uma parte dessa rede fenoménica, rede que tentaremos futuramente aprofundar.
Caro Prof,
ResponderEliminarDe facto foi um bom seminário e teve valiosas contribuições, mormente sob o ponto de vista metodológico. Comecei uma reflexão ontem que aínda está inacabada. Gira em torno do conceito justiça. Pelo que percebi, as massas equiparam o linchamento à justiça. Daí justiça pelas próprias mãos. Recuando para os anos subsequentes à independência nacional, tivemos a dita justiça popular que de uma ideia nobre descambou em espectáculos gratuítos de violência, sancionados pelo partido-estado (M Cahen). Falo dos fuzilamentos dos supostos traídores da pátria.
Estamos aquí perante dois fenómenos que têm características diferentes, mas, quanto a mim, com alguns traços comuns. A justiça popular, vulgo linchamento, não será herança ou resquícios da justiça popular sancionada? Se atentarmos ao comportamento da polícia que quase nunca nos diz quem foram os autores morais e materiais, o que percebemos? Me parece que há uma aparente conivência da corporação, e uma autorização tácita da mesma. E se factorarmos para o facto da mesma polícia também ser acusada de execuções sumárias (privatização de crime), podemos especular a existência de uma psique generalizada manisfestada ou em linchamentos para o povo, ou execuções sumárias para a polícia. Portanto, a convivência com as leis aínda é uma quimera. E o que dizer sobre o conhecimento de lei?
Aí estão tópicos merecedores de reflexão e pesquisa. Se quiser, apareça nas sessões da UDS às quartas-feiras, 12 horas, Centro de Estudos Africanos...
ResponderEliminarMuito obrigado pelo convite. Hei-de honrá-lo sempre que puder.
ResponderEliminarAbração