I
Ora, o que está realmente em causa na
Dama do Bling (aliás, Ivânia), o que a torna perigosa ao cantar e dançar expondo não o corpo, mas a sexualidade nele contida?
É a desagregação da posse androcêntrica privada, é o desmurar ostensivo do exclusivo da posse, é a contaminação instintiva que ela efectua simbolicamente da sexualidade das outras mulheres, é a desprivatização do prazer possível. A moral vem a terreiro não por causa da nudez da Dama, mas por causa do reflexo impiedoso que ela introduz nos corpos de outras mulheres, de todas as mulheres.
II
Escreveu o Lázaro Mabunda que na sua terra natal as partes sagradas são vedadas ao olhar público, as partes mais sagradas devem ficar cobertas "
desde os joelhos até ao pescoço". Tem razão no perímetro histórico que é o seu e o nosso, período no qual o vedamento do corpo, o vedamento do que ele chama partes sagradas, se tornou uma regra, acompanhado da moral consequente. Porém, época houve já, bastante longa, na qual na terra natal de Mabunda - bem como nas nossas outras terras natais do país - o
corpo não estava coberto como hoje. Os seios, por exemplo, estavam expostos e não tenho conhecimento de que, por esses tempos recuados, do século XIX para trás, proponhamos assim, a moral reinante fosse de condenação. O corpo feminino exposto não dava lugar (naturalmente que não estou a ter em conta as excepções, eventualmente as haveria) à crítica porque o controlo androcêntrico da sexualidade se fazia através de outras instâncias, especialmente através de uma fixação quase permanente das mulheres nas casas e na machamba. O espaço urbano ainda não existia e portanto a mobilidade das mulheres era restrita. As cidades são, sempre, o campo por excelência da desprivatização da sexualidade feminina. Por isso os homens criticam frequentemente e das mais variadas formas as cidades e a dissolução da moral e dos costumes.
III
A Dama do Bling, como outras damas espalhadas pelo mundo, pertence a uma época histórica que se firma muito rapidamente, cuja cadência é veloz, uma época histórica que desnuda sistematicamente o corpo e o dota de sexualidade em estado puro, total. Aqui, na net, podemos folhear milhares de sites e de blogues que tratam sem limites o corpo, a sexualidade, a polivalência do prazer sexual. Esses espaços são produzidos por mulheres e por homens, especialmente por homens: aquelas ampliando a desprivatização androcêntrica, estes a um tempo pilotando a nova étapa histórica (aparentemente emancipados, perversa coisa, das grilhetas sagradas de Mabunda) e dando corpo a um registo imagético que nem sempre a privacidade permite pôr em marcha (muito haveria que analisar neste campo, claro). Ao Mabunda - como, afinal, à maior parte de nós, eu aqui incluído por inteiro - apenas resta o exercício de uma consciência moral crítica que pertence a um outro período histórico, em decomposição. Analisamos a nova era com as categorias analíticas da antiga. Estamos confrontados, permitam-me dizer, com o paradigma da língua, a saber: a aprendizagem de uma nova língua faz-se sempre retraduzindo-a na língua natal. A nova língua só é verdadeiramente falada quando somos capazes de a falar esquecidos do espírito da língua materna. Ora isto não é nem nunca será fácil. Por quê? Porque somos habitados em permanência pelos espíritos dos mortos.
IV
O jornalista Mabunda não é o único a ver nos estrangeiros a razão de ser de muitos males (é assim que vemos as coisas, como males, como doenças) que nos apoquentam. Regra geral temos tendência para atribuir ao Outro a razão de uma evolução, negativa ou positiva. Quais são os pressupostos? Os pressupostos são dois: (1) a assunção de um estado social primordial puro, doce, cândido, sem história; (2) a atribuição a outrem (ao estrangeiro) do fabrico e da condução do motor da história. É com esses dois pressuposos que damos depois corpo ao embelezamento do passado e à formulação de uma espécie de integrismo moral por forma a que possamos proteger-nos e sentir-nos bem quando os ventos da história nos fustigam e temos dificuldade em dotar-nos da pedalada da Lurdes Mutola.
V
Finalmente e a propósito da nossa natureza, da nossa africanidade: criticamos a nudez da Dama, mas achamos natural que as nossas dançarinas dancem como dançam, frequentemente com o corpo frontalmente exposto, no interior de uma sexualidade pujante e variada que atravessa em permanência cada passo, cada torção, cada combinação corporal. Cada uma das nossas danças é um hino saudável à sexualidade, à sua naturalidade, ao bem-estar que nos dá.
Um trabalho todo ele muito a favor das mulheres. Estou a favor do Mabunda. Mas sem duvida um trabalho brilhante. Tenho dito.
ResponderEliminarEscrevi sobre a sexualidade de uma étapa histórica que analisamos com os olhos da antiga. Naturalmente que tb procurei descontruir a visão androcêntrica que temos da sexualidade feminina. Se o texto lhe parece ter uma vertente pró-feminina, só me resta aceitar a multiplicidade de sentidos com que a escrita pode ser recebida. Abraço.
ResponderEliminarE se analisarmos a sexualidade com os olhos da actual etapa, a "visão androcêntrica que temos da sexualidade feminina" desapacerá?
ResponderEliminarQue nos garante que estamos perante problemas de etapas históricas, de normatização ou de controlo da sexualidade feminina.
Por que razão ou, o quê que nos leva a olhar a "Dama de bling" com os olhos de passado? Saudosismo de puritarismo sexual? Dificuldades de nos inserirmos na etapa histórica actual, a etapa "Damablinguiana"? Estarão, dentro do nosso contexto social, a Dama do bling e as pessoas que fazem apologia do seu desempenho artistico, a viver e a olhar com os olhos do presente a etapa histórica actual. Muitas perguntas...Beúla
Sem dúvida, muitas e boas perguntas. A minha preocupação foi, apenas, a de colocar algumas notas teóricas para um debate. Abraço.
ResponderEliminarA sexualidade é por excelencia masculinizada. se a dama do Bling expoe o seu corpo nos espetcaulos é porque provavelmente ha homens que o permitiram. Engraçado é que esta discusao foi levantada por homens!Continua a ser debatida por homens. reparem nos blogs e nos jornais. Qdo as mulheres mantem blogs abordando a sexualidade nas suas multiplas vertentes aparecem como anonimas para o grande publico.Mas, com o conhecimento do seu parceiro, exemplo Diva e Escorpiao em momentos de vida.
ResponderEliminarUma amiga minha disse-me ontem a frase que transcrevo a seguir "mulher sozinha nao tem direito de existir". Assim pergunto, a sexualidade nas diferentes etapas historicas nao sera reflexo dos olhos sempre "actuais" do mundo masculinizado? IA
Uma boa questão, sem dúvida. Seria interessante que, por exemplo, Diva e o Escorpião lhe respondessem, para nos situarmos no contexto que sugere....
ResponderEliminarA VERGONHA CULTURAL COLECTIVA DE UM POVO
ResponderEliminarPor José Belmiro
“A juventude de hoje está corrompida até ao coração. É má, ateia e preguiçosa. Jamais será o que a juventude deve ser, nem será capaz de preservar a nossa cultura”.
(de uma inscrição gravada numa tabuínha babilónica do século XI antes de Cristo...)
De um tempo a esta parte um grupo de jovens sob capa de autores da “música jovem moçambicana” tem vindo ocupar espaços reservados a música em todos os canais de rádios e televisão.
Estes músicos que o corajoso José Mucavel intitulou-os de músicos do PIMBA, na sua generalidade não trazem nada nas suas mensagens musicais. Neste contexto iremos ouvir frases do tipo:
“Eu sou patrão, tenho carros, tenho damas bonitas, sou talentoso, brilho no Brasil… enfim, um conjunto de barbaridades”.
Também é “arma” destes “jovens músicos” o recurso a bajulação. Os seus alvos preferidos são Chefes de Estado, o partido no poder e as empresas públicas.
Neste tipo de músicas pontifica o nome do controverso músico Mc Roger. Dele ouvimos dizer que viajou para o Brasil com apoio do Ministério do Turismo! Confesso que fiquei indignado ao saber que os impostos que pagamos mensalmente ao Estado são agora disponibilizados a artistas não credenciados para representar culturalmente o nome de Moçambique bem como 19 milhões de moçambicanos!
O Brasil ficou com uma impressão errada da cultura moçambicana. A cultura reflecte a alma de um povo. A música do Mc Roger não representa nem de longe a alma dos moçambicanos.
Tenho escutado as diversas intervenções deste e doutros cantores da alegada “música jovem”.
Orgulham-se por terem nas crianças os maiores consumidores da sua música. Olha as crianças são por naturezas ingénuas e vulneráveis. Neste vale de aguas turvas por onde a nossa música encontra-se mergulhada, a componente nudismo é usada pelas “jovens da música” para que a todo o custo sejam assistidas (normalmente a televisão é o principal palco de acção), não se importando pelos exemplos que vão deixando para as suas fãs adolescentes.
Quando os mais adultos se indignam, elas mandam todo mundo para a RUA, alegadamente porque só elas sabem de si!
Esquecem-se no entanto que precisam destas mães e pais, pois estes são os que deixam os filhos menores irem para os Cine-África, Coconuts assistirem os seus Shows!
Pena é que um dos poucos melhores compositores jovens da Praça o Mahel decidiu render-se ao mundo do PIMBA alegadamente porque precisa viver bem. Remove-se desta feita um dos últimos redutos de alguma música jovem com algum sentido e coerência lógica!
Belmiro, vou destacar o seu texto. Abraço!
ResponderEliminarÉ interessante como há pessoas, neste país, que se interessam e se aproveitam de ninharias (mesquinhices), para alcançarem os seus intentos pouco claros.
ResponderEliminarDevíamos nos preocupar mais com os problemas do nosso país (a corrupção generalizada, a criminalidade por todos os cantos, as eleições, a saúde, a educação,etc), no lugar de criticar a maneira como a "nossa" DAMA DO BLING se apresenta em palco!!!
O mal das sociedades em desenvolvimento é que acham-se todos pensantes (no seu verdadeiro sentido)!
O país necessita, de facto, de pessoas que pensam, pessoas com ideias claras sobre o que desejam desenvolver. Pois estes constituirão a mais valia para o desenvolvimento do país.
A maneira de a DAMA DO BLING se apresentar em palco (que esteje bem, claro,em PALCO), não é um assunto de debate nacional!
Abrimos as portas do país ao mundo, foi, penso, para aproveitarmos do que eles têm de bom (o conceito de o que é BOM, é extenso e dicutível). É preciso ensinar a nossa juventude a Pensar! A viver em sociedade, sem alienar a sua cultura alheia.
O caos está instalado. Levamos uma vida apressada, preocupados com ganhos económicos, deixando para trás a educação do filhos que nos mesmos geramos. Enfim, uma mentalidade de terceiro-mundistas.
Mechisso Gerson
Aqui fica o seu comentário, certamente o lerão. Abraço!
ResponderEliminarA "sociedade" tem agora assunto para debater, esta Dama envolta numa carnificina cujos precedentes são as suas opções - conscientes - para se dar à fala. Dá-me a impressão de que o que está a acontecer é tanta fúria a ser descarregada num saco já pequeno, definhado. A crítica à Dama é uma espécie de barómetro para a repudiar o que a nossa sociedade não quer ou não aceita. Explico-me melhor:
ResponderEliminarNão se está a analisar um assunto - salvo pouquíssimas opiniões, algumnas delas neste blog - mas uma pessoa. Fala-se de moral mas ataca-se à Dama sem se olhar para o que a rodeia. Os defensores da moral, ao invés de virem com "argumentos" do tipo "ela fere a moral africana" deviam dizer o que tem de mal alguém escolher a "nudez" para se definir como artista.
Neste aspecto, para mim ela tem todo o direito de fazer o que quiser com o seu corpo - com ela mesmo -, incluindo "streapar". Os promotores de espectáculo é que devem saber onde pô-la. A Dama do Bling não está a fazer seja o que for de imoral, porque moral é um mundo de várias percepções e de nenhum padrão, para o nosso caso, que censuramos o comportamento dos outros "porque no tempo dos nossos avós..."
Quero acreditar que a presente algazarra se deve à falta de preparação da nossa sociedade para encarar alguns fenómenos. Uma mulher seminua é um agrado para seja quem for no seu "eu", mas para o colectivo ao invés de se multiplicar ou somar a opinião de cada "eu", que totaliza o "eu" colectivo, o que sai é um "nós" repudiador, envolto numa falsidade opinativa pobre e de senso zero. Descasque-se a opinião colectiva, se for possível...
Qual foi a opinião colectiva quando a falecida Zaida Hlongo era ainda débutant em matéria de ser escandalosa? Imoral, baixa e até puta, para além de 1003 outros nomes. E como terminou? Ídolo de "toda" a nação. Que hipocrisia colectiva, né?
Pessoalmente gosto e não gosto de ver a Dama do Bing, aliás Ivânea. Gosto porque, como mulher, é algo tangível, no sentido de fisicamente apreciável. Deploro é a sua vaidade, que se tornou no invólucro de uma rebeldia despida de razão. O conteúdo das suas letras sustenta o que quero dizer.
Mais: o facto de ela aparecer a dançar no Coconuts e no Cine África a "streappar" é da exclusiva responsabilidade dos gestores destes espaços. Fosse eu dono de uma discoteca e defendendo a "moral" que muitos apregoam, simplesmente não a contratava. E aquela televisão? Quais são as fronteiras que conhece entre o permitido e o proibido? Que critérios usa? Isso é lá com a STV. Eu, fosse gestor daquele canal, não passava aquele espectáculo não porque a Dama do Bling fosse imoral mas porque a sociedade não está preparada para a aceitar como ela é. O indicador disso é o que se diz por aí.
Penso que a menina faz bem o que quer fazer mas não deve ser ali. Que seja nas boites!
A Ivânea não é imoral mas não gostaria de ver as nossas filhas segurem-lhe o exemplo porque ainda são caroço verde, sem a necessária maturidade para poderem destrinçar o bom e o mau. Ela fa-lo conscientemente e não por nenhuma imitação, de que nós somos exímios especialistas.
Em resumo, ao invés de se linchar à Ivânea, que se comece a definir padrões de moral, a começar pelos hábitos das meninas e senhoras que andam semi-nuas por aí, mesmo mais grávidas do que estava a Dama do Bling antes do aborto "motivado por críticas", conforme justificado no "Domingo" de semana passada. Gostaria que o debate mudasse de qualidade!