Outros elos pessoais

10 novembro 2006

Desmaboazudando a maboazuda


____________________
"Negra, mulata, leva
europeia, chinesa, apanha
filipina, monhé, dá-lhe
até albina"
(da letra de maboazuda)

I
Não tenho qualquer dúvida de que o cantor Zico gosta de mulheres. Isso é bem saudável. Cá por mim também amo mulheres e amo sexo.
Igualmente não tenho qualquer dúvida de que o ritmo leva fogo ao corpo, o que é bem saudável. E au amo o casamento entre a marrabenta e o rap, ainda que abomine o rap em si.
O meu problema começa quando penetro na alma da letra. Esta alma suscita debate desde que na edição do "Savana" da semana passada, o jurista Carlos Serra Jr a analisou à sombra da Constituição da República e procurou mostrar como Zico ofende a dignidade de outrém (03/11/06, p. 10); e desde que, na edição de hoje do mesmo semanário, Bayano Valy procura mostrar a diversidade de opiniões sobre a canção, tomando o meu blog como ponto de referência, ainda que, infelizmente, ele mostre que Zico se recusou a comentar o que da letra da canção se diz (10/11/06, p. 30).
Ora, maboazuda (escrevo com "z") é, para além de um manifesto amoroso pujante e cheio de força da natureza, um exercício pleno de desqualificação da mulher, um manifesto de androcentrismo primário.
O cantor sente-se em condições óptimas para "levar", "apanhar" e "dar", quer dizer, para transformar as mulheres em objecto sexual, instintivo e violento. Nem as albinas escapam à ilimitada fome androcêntrica de Zico.
Efectivamente, a mulher surge na letra como mero receptáculo sexual, como mero objecto sexual, no caixilho unilateral imposto pelo cantor-garanhão (seja este autor ou não da letra).
O cantor (e/o autor da letra) procede a um autêntico exercício de fagocitose social.
Em que consiste a fagocitose social? Consiste em negar o Outro como sujeito reflexivo, dotado de liberdade, do direito de produzir a sua própria historicidade, de dispor da sua vontade. Assim fazendo, a letra violenta simbolicamente esse Outro, no caso vertente essa Outra.
Ao cantor não importa se as negras, se as mulatas, se as europeias, se as chinesas, se as filipinas (estranha referência esta), se as monhés (termo injurioso) e se, até, as albinas, estão de acordo com a pulsão amorosa expressa univocamente: o fundamental é pura e simplesmente Zico matá-las ("eu vos vou matar com fofinhas, boasudas, gostosas, jeitosas"), absorvê-las, devorá-las na sua masculinidade.
Assim, Zico é o gestor definitivo da verticalidade; às mulheres da letra apenas compete aceitar horizontalmente a vontade zaratustreana do cantor.
Suspeito de que há gente que partilha o zicoísmo, a masculinidade matadora. E também suspeito de que há por aí muito matador convencido de que as mulheres amam tanto mais quanto mais apanham.
E, já agora, pode acontecer que tanta discussão amplie ainda mais o raio de acção da canção, tornando-a ainda mais ouvida, cantada, dançada, enfim, maboazudada.

II
Mas não é Zico que é sociologicamente fundamental, não é a maboazuda que é sociologicamente fundamental: o que é fundamental é o imaginário social ávido de novidade que torna um herói e a outra, uma necessidade.
A nossa sociedade é cada vez mais um caleidoscópio de expectativas, de culturas, de mitos, de ansiedades, uma interface de muitas coisas, um mata-borrão social. Absorvemos intensamente o que nos chega do exterior e depois procuramos fazer localmente a digestão o melhor que sabemos e podemos. O casamento da marrabenta com o rap é um modelar exemplo.
Nesse mundo mestiço, no qual as tradições se modernizam e as modernidades se tradicionalizam, Zico é apenas uma emanação de um social prismático, capaz de dotar o machismo com os condimentos do espectáculo e de o fazer absorver naturalmente por uma espécie de alma feminina: digamos, de forma provocadora, numa ensaio de semiologia à Roland Barthes, que se a letra zicoísta é masculina, a dança é feminina; ao macho que canta altaneiro em seu harém onírico, junta-se e ajoelha-se pela dança erotizada a mulher, mesmo a albina maboazudada.
E assim, numa vertigem zicoísta, a marrabenta americaniza-se, o rap moçambicaniza-se.

______________________
Fotografia de Zico reproduzida do "Savana" de hoje. Por outro lado, quero dizer que a letra da canção, por mim aqui reproduzida em entrada anterior, está cheia de erros. Não não me preocupei com eles.

7 comentários:

  1. Nao penso entrar no debate dos posts anteriores a este, sobre a mesma cancao, que penso que se esgotou nos argumentos entao apresentados. Nem ha como discordar com esta entrada, que penso esta incisiva e bem construida em todo seu argumento. Gostaria, no entanto, de inquirir sobre um pequeno pormenor. Trata-se do pormenor 'matar'... Penso que o Professor interpreta este 'matar' como parte da accao voraz e predadora (como bem mencionou Egidio anteriormente) de Zico. Eu percebo mais como parte da exposicao da sua 'macheza', ou seja, Zico propoem-se nao a 'matar' as suas negras, chinesas, etc., mas converter-se no objecto de inveja de outros 'machos' (necessariamente menos machos que ele), matando-os (de inveja) por ele aparecer com aquela variedade de 'femeas' (boasudas, gostosas, etc.).

    Portanto, nao so ele nao considera que a mulher e um objecto sem vontade. Como tem certeza que a sua coisificacao e estatutariamente aprovada pela sociedade.

    ResponderEliminar
  2. Excelente o seu reparo sobre o "matar". Entretanto, como pode reparar, ampliei o trabalho.

    ResponderEliminar
  3. As suas duas belas perguntas ficam de pé: (1) Que tipo de sociedade produz Zicos?; 2)Como se explica a "normalidade" maboazudiana?

    ResponderEliminar
  4. PL: juntar materiais para análise é, concordará comigo, um imperativo. Neste campo, julgo que a "tvzine" é um modelar laboratório de estudo da sociedade maputense. Por outro lado, a normalidade zicoísta é perfeitamente normal aqui, na grande Maputo e, certamente também, na periferia. Ignoro, porém, o que acham disso os nossos compatriotas por exemplo de Quissanga, aqueles que disseram há dias ao governador de Cabo Delgado que não acreditam no fim da pobreza absoluta.

    ResponderEliminar
  5. Boa Noite! nao sou sociologa e nem tenho capacidade de analise como os Srs, mas, quando escutei esta musica pela primeira vez, fiquei totalmente conturbada. A letra, tocou me bastante pelo facto de ter filho albino. Sem perder muito tempo, no mes de Agosto liguei para o cantor a expor o meu total desampotamento. Parecia estar a advinhar quando na discussao com o cantor informei que esta musica se tornaria polemica.
    Para nos que temos familia portadora de albinismo esta musica que é adorada pela maioria da populaçao é um pesadelo.o ªate albinaªé a parte que nos toca.

    B.Tsurre

    ResponderEliminar
  6. Boa Noite! nao sou sociologa e nem tenho capacidade de analise como os Srs, mas, quando escutei esta musica pela primeira vez, fiquei totalmente conturbada. A letra, tocou me bastante pelo facto de ter filho albino. Sem perder muito tempo, no mes de Agosto liguei para o cantor a expor o meu total desampotamento. Parecia estar a advinhar quando na discussao com o cantor informei que esta musica se tornaria polemica.
    Para nos que temos familia portadora de albinismo esta musica que é adorada pela maioria da populaçao é um pesadelo.o ªate albinaªé a parte que nos toca.

    B.Tsurre

    ResponderEliminar
  7. Oiçam, Carlos Serra Jr volta no próximo Savama ao tema, com uma análise processual. Entretanto, fonte digna de crédito disse-me ontem que Zico deu uma entrevista radiofónica na qual declarou que pessoas que lhe criticam a letra, como eu, apenas querem ganhar dinheiro com isso...Enfim, enfim!!!

    ResponderEliminar

Seja bem-vinda (o) ao blogue "Diário de um sociólogo"! Por favor, sugira outras maneiras de analisar os fenómenos, corrija, dê pistas, indique portais, fontes, autores, etc. Não ofenda, não insulte, não ameace, não seja obsceno, não seja grosseiro, não seja arrogante, abdique dos ataques pessoais, de atentados ao bom nome, do diz-que-diz, de acusações não provadas e de generalizações abusivas, evite a propaganda, a frivolidade e a linguagem panfletária, não se desdobre em pseudónimos, no anonimato protector e provocador, não se apoie nos "perfis indisponíveis", nas perguntas mal-intencionadas, procure absolutamente identificar-se. Recuse o "ouvi dizer que..." ou "consta-me que..."Não serão tolerados comentários do tipo "A roubou o município", "B é corrupto", "O partido A está cheio de malandros", "Esta gente só sabe roubar". Serão rejeitados comentários e textos racistas, sexistas, xenófobos, etnicistas, homófobos e de intolerância religiosa. Será absolutamente recusado todo o tipo de apelos à violência. Quem quiser respostas a comentários ou quem quiser um esclarecimento, deve identificar-se plenamente, caso contrário não responderei nem esclarecerei. Fixe as regras do jogo: se você é livre de escrever o que quiser e quando quiser, eu sou livre de recusar a publicação; e se o comentário for publicado, não significa que estou de acordo com ele. Se estiver insatisfeito, boa ideia é você criar o seu blogue. Democraticamente: muito obrigado pela compreensão.